“Como são belos nos montes os pés daqueles que anunciam boas novas,
que proclamam a paz, que trazem boas notícias,
que proclamam salvação, que dizem a Sião: ‘O seu Deus reina!’” (Is 52.7)
“‘Paz, paz, aos de longe e aos de perto”. (Is 57.19)
“Ele [Jesus] veio e anunciou paz a vocês que estavam longe
e paz aos que estavam perto” (Ef 2.17)
A chegada do Quarto Congresso de Lausanne, em 2024, nos oferece a oportunidade de refletir sobre a melhor forma de trabalharmos juntos para que Jesus Cristo seja conhecido em todo o mundo. Com esse objetivo em mente, abordamos neste artigo três obstáculos à colaboração frutífera: a divisão, a diferença e a distância do poder. Esta nossa conversa tem como porta de entrada o texto de Efésios 2.11-22 e baseia-se num livro que ainda será publicado.1
Alguns estudiosos afirmam que Efésios 2.17 é uma referência a Isaías 52.7 e 57.19.2 Lemos em Efésios 2.17 que “ele [Jesus] veio e anunciou paz a vocês que estavam longe e paz aos que estavam perto”. As correspondências são claras. Jesus é Aquele sobre o qual Isaías profetiza, que anuncia boas novas e proclama paz e salvação (52.7) “[…] aos de longe e aos de perto” (57.19).3
Jesus é o ponto central da grande história bíblica. Cristo é a nossa paz; Cristo faz a paz; Cristo anuncia a paz (Ef 2.14,15,17).
Superando a divisão por meio da cruz de Cristo
Em Efésios 2.13-16, observamos a ênfase no corpo, no sangue e na crucificação de Cristo. Os gentios que “antes estavam longe, foram o aproximados mediante o sangue de Cristo” (v. 13). Jesus “destruiu [em seu corpo] a barreira, o muro de inimizade” (v. 14). Jesus reconcilia judeus e gentios “com Deus em um corpo, por meio da cruz, pela qual destruiu a inimizade” (v. 16). Cristo cria “em si mesmo, dos dois, um novo homem, fazendo a paz” (v. 15).
Em Cristo, há uma nova maneira de ser humano. Jesus reconcilia a humanidade corrompida, promovendo o shalom. Povos antes divididos estão agora juntos, membros da família de Deus (2.19-22).
Superando a divisão
O texto aponta para uma verdade muitas vezes esquecida: por meio da cruz, Cristo alcançou um objetivo social. Cristo reúne “em si mesmo” judeus e gentios – povos divididos, separados e inimigos. A cruz não os reconcilia apenas com Deus, mas também uns com os outros. Por meio de sua crucificação e ressurreição, Jesus expia, Jesus salva e Jesus reconcilia pessoas e povos divididos.
Como essa reconciliação se aplica às danosas divisões na igreja global? É possível que a cruz de Cristo já tenha solucionado o problema da divisão “destruindo a inimizade”? E se tanto a reconciliação vertical – com Deus – quanto a reconciliação horizontal – entre pessoas — forem parte da obra gloriosa de Cristo na cruz? Cristo sempre nos exorta à reconciliação.
[Olivia]: Durante uma visita ministerial ao Togo, fui surpreendentemente recebida com certa tensão por parte dos nossos parceiros. Eles disseram que não havíamos cumprido nossas promessas. Estávamos divididos. Logo percebi que era hora de ouvir com empatia e resisti ao desejo de ter uma atitude defensiva. Com certa dificuldade, absorvi a culpa pelas ações dos meus antecessores. Ao pedir perdão, também me comprometi a restabelecer a confiança. Mantendo os olhos em Jesus e na cruz, senti o auxílio do Espírito Santo. Nossa parceria ferida começou a ser restaurada quando desaceleramos, demonstramos vulnerabilidade e ouvimos de fato.
Superando a diferença por meio da glória de Cristo
Em Efésios 2.11, Paulo escreve a “vocês, gentios por nascimento e chamados incircuncisão pelos que se chamam circuncisão”. Isso nos remete a Davi, zombando de Golias: “Quem é esse filisteu incircunciso?” (1Sm 17.26). Para os judeus, a palavra “incircuncisão” carrega uma pesada carga de estigma. Os gentios são estrangeiros impuros, adoradores de ídolos, inimigos do povo de Deus.
Paulo continua: “Naquela época vocês estavam sem Cristo, separados da comunidade de Israel, sendo estrangeiros quanto às alianças da promessa, sem esperança e sem Deus no mundo” (Ef 2.12).
Paulo está enfatizando a diferença entre judeus e gentios. Em comparação ao povo escolhido de Deus, os gentios são “um povo sem relevância”. Mas, alguns versículos depois, Paulo revela uma bela inversão da vergonha para a honra: “[…] pois por meio dele [Cristo] […] vocês já não são estrangeiros nem forasteiros, mas concidadãos dos santos e membros da família de Deus” (18-19). Somos todos parte do povo de Deus! Cristo é a nossa glória!
Superando a diferença
Nossa glória em Cristo nos ajuda a superar nossas diferenças. Eis aqui a razão. Quando partilhamos da glória de conhecer Cristo, não precisamos competir para ver quem é o melhor. Em Cristo temos um excedente de honra. Na verdade, se comparadas à glória de conhecer Cristo, Paulo considera todas as suas outras fontes de honra como “perda” (Fp 3.5-8).
Em João 17.22, Jesus ora: “Dei-lhes a glória que me deste, para que eles sejam um”. Por partilharmos da glória abundante de Cristo, nosso anseio por honra é satisfeito. Deixamos de competir para obter honra. Em vez disso, competimos para dar honra. Paulo instrui: “Prefiram dar honra aos outros mais do que a si próprios” (Rm 12.10).
[Olivia]: Quando me encontro com outros cristãos, costumo perguntar: “Qual é a sua história com Jesus?” Nossa conexão acontece através das histórias individuais de como conhecemos Cristo. A diferença – seja de status, tribo ou nacionalidade –desaparece imediatamente. O próprio Cristo é a base para tudo o que realizamos juntos como parceiros ministeriais. Numa recente viagem ao Leste Africano, eu estava sentada na simples casa rural de um missionário queniano. Enquanto cantávamos juntos cânticos de adoração, senti a presença de Deus no nosso meio. Nada se compara à alegria que desfrutamos juntos quando a glória de Cristo se manifesta em nossa unidade.
Superando a distância do poder por meio da paz de Cristo
Em Marcos 10.42-43, Jesus descreve dois tipos de poder. “Aqueles que são considerados governantes das nações as dominam […]. Não será assim entre vocês. Quem quiser tornar-se importante entre vocês deverá ser servo”. O poder que há no mundo é o “poder sobre outros”. O poder divino tem como objetivo o serviço; é “poder sob” ou “com” o Espírito Santo.4
O Império Romano é o contexto do Novo Testamento – e o epítome do “poder sobre outros”. Roma cria uma “paz” mundana por meio da força e do derramamento de sangue. Seu célebre marketing imperial é a Pax Romana (Paz de Roma).
Paulo é capturado pelo poder romano e, na prisão, escreve aos efésios (Ef 3.1, 4.1, 6.20). Ele descreve um poder superior – “a incomparável grandeza” do poder de Deus em Cristo (Ef 1.19-21).
O poder romano “sobre outros” alcança a estabilidade política por meio da imposição do terror – a paz por meio do derramamento de sangue. O “poder sob”, exemplificado por Cristo ao derramar seu próprio sangue – produz um tipo de paz totalmente diferente. Perdoando e reconciliando os seres humanos, Cristo promove a paz com Deus e entre os povos (Ef 2.13-17). O “poder sob” exercido por Jesus repreende e subverte a violência.
Lembramos que, em Efésios 2.17, Cristo cumpre Isaías 52.7 e 57.19. Jesus é o Servo sofredor com belos pés, que está sobre os montes. Ele prega as boas-novas de shalom – “paz aos que estão longe e paz aos que estão perto”. Além disso, com Cristo os crentes também dão um testemunho do “evangelho da paz” (Ef 6.15).
Superando a distância do poder
A distância do poder é “a distribuição desigual de poder entre as partes e o nível de aceitação dessa desigualdade”.5
A distância do poder requer o “poder sobre outros”. Os dois conceitos caminham lado a lado. Os indivíduos são facilmente seduzidos pelo “poder sobre outros”. Mas Jesus diz: “Não será assim entre vocês”.6 Grupos também podem ser seduzidos pelo “poder sobre outros”. Por exemplo, visto que os Estados Unidos são uma liderança política mundial, eu e outros americanos podemos assumir o “poder sobre outros” no relacionamento com parceiros ministeriais globais. Mais uma vez, Jesus adverte – não será assim entre vocês.
Será que estamos atentos à exortação de Cristo a respeito do “poder sobre outros” para superar o obstáculo da distância do poder? Podemos dar um melhor testemunho do evangelho da paz quando andamos no “poder com” o Espírito Santo?
[Olivia]: A distância do poder não é um desafio pequeno para a igreja global. Como líder de um ministério de parceria transcultural, considero isso espantosamente verdadeiro. Por isso resisto de forma intencional a visões do tipo: abundância de recursos financeiros significa mais conhecimento ou maturidade espiritual – a expectativa de liderar e de ser seguido. Em vez disso, passei a apreciar os pontos de tensão ou as diferenças de opinião com os nossos parceiros ministeriais. Nossa discordância é um sinal de confiança. Nossa parceria está fundamentada em uma visão partilhada de ver o evangelho de Cristo alcançar e tocar vidas. Dito isto, talvez nunca superemos totalmente a distância do poder no ministério transcultural. Mas podemos, sim, estar mais atentos ao desafio à medida que seguimos Jesus humildemente. Podemos, sim, confiar no “poder com” o Espírito Santo e no evangelho da paz de Cristo para cumprir os seus propósitos apesar de nossas imperfeições.
Notas finais
- A ser publicado em 2025 pela William Carey Publishing, One New Humanity: Glory, Violence, and the Gospel of Peace by Kristin Caynor and Werner Mischke.
- Willard M. Swartley, Covenant of Peace: The Missing Peace in New Testament Theology and Ethics (Grand Rapids: Eerdmans, 2006), 200–201.
- Em Efésios 2.17 (ESV), “paz anunciada” é euēngelisato eirēnē. A palavra euēngelisato é a forma verbal de “evangelho”. A frase euēngelisato eirēnē significa “paz evangelizada” ou “pregou o evangelho da paz/harmonia”.
- Pela conversa sobre “poder sobre x poder com”, devo muito a David E. Fitch, Reckoning with Power: Why the Church Fails When It’s on the Wrong Side of Power (Brazos, 2024), Kindle edition.
- https://en.wikipedia.org/wiki/Power_distance.
- Novamente, devo a David Fitch por sua forma de expressar a ideia