Global Analysis

Colaboração, sim. Controle, não

Repensando o modelo de organização internacional em favor de parcerias mútuas com o Mundo Majoritário para o envio de missionários

Michael Prest jul 2024

“Queremos trabalhar com vocês, não para vocês”

A frase acima resume de forma perfeitamente compreensível a reflexão de três líderes de organizações missionárias indonésias sobre a interação entre suas próprias organizações e aquelas com uma estrutura internacional.1

Referindo-se à sensatez desse apelo para o estabelecimento de parcerias missionárias, Webster comenta:

A resposta não está nos padrões de dependência ou independência, mas no resgate daquela interdependência de um único espírito que marcava as igrejas do Novo Testamento. Nessa unidade espiritual básica e na interdependência de igrejas mais novas e mais antigas reside hoje o futuro da obra missionária da igreja no mundo.2

Poucos teriam argumentos para contestar esses princípios bíblicos fundamentais. No entanto, muitos têm enfrentado dificuldades para vê-los na prática. Em uma conferência missionária com o lema “Parceria na obediência”, certo pastor indonésio visitante fez o seguinte comentário a um professor holandês: “Sim, parceria para você, obediência para nós”. 3

É triste que experiências como essas persistam. O fato de que isso ainda aconteça hoje, quando mais obreiros são enviados pelo Mundo Majoritário do que pelo Ocidente, é razão suficiente para uma reflexão séria sobre o modelo de organização missionária internacional.4 O que precisa mudar? Que novos modelos podemos buscar? Aqueles que promovem atitudes humildes, e não arrogantes; de mutualidade, e não de gestão; colaborativas, e não de controle.

E como as organizações e as igrejas do Mundo Majoritário podem encorajar os cristãos que estão no Ocidente, como nós, a ponderar suas boas intenções visando estabelecer parcerias no envio mútuo de missionários para a igreja em todo o mundo?

Os desafios do modelo internacional

Em toda a discussão sobre o policentrismo nos círculos missionários de hoje e nas organizações missionárias internacionais, é a estrutura multinacional que costuma prevalecer. Seguindo estratégias de internacionalização de anos mais recentes as bases de envio em outras nações ocidentais simplesmente expandiram suas atividades em países do Mundo Majoritário.

Embora a intenção de ampliar o alcance da mobilização tenha sido bem-intencionada, essas organizações enfrentam de perto as consequências de ter estrutura, liderança, língua, cultura e processos de tomada de decisão que são centralizados: “A organização pode ser internacional no que se refere à equipe, mas é ocidental em sua organização e estruturas”.5

Kang-San Tan explora mais a fundo as consequências, afirmando que “. . . continua a existir um enorme risco de que o poder não seja descentralizado”[6]. Ele propõe um caminho que exige que a liderança missionária ocidental seja “radical, em vez de reformista, e esteja disposta a fazer mudanças estruturais intencionais em vez de se envolver em retórica e teorias missionárias”.7 A pergunta-chave é: Como seriam essas mudanças? E também, mudanças assim, tão radicais, serão possíveis em grandes organizações internacionais, nas quais pode haver lentidão na tomada de decisões, um histórico difícil de superar e resistência para abrir mão do controle?

A organização missionária da qual sou um dos líderes – a UFM Worldwide, sediada no Reino Unido – tem refletido de forma profunda sobre essas questões. Considerando os desafios descritos acima, queremos descobrir como podemos firmar parcerias com movimentos emergentes do Mundo Majoritário para o envio de missionários, sem expandir as nossas estruturas para esses países. A seguir estão três exemplos práticos de como temos procurado fazer isso.

Recuando antes de avançar: transferindo nossas estruturas no Brasil

Profissionais dedicados às missões normalmente preferem desenvolver estruturas do que fechá-las ou abandoná-las. Mas se realmente há um tempo para todas as coisas debaixo do sol, então não devemos nos apegar tanto à nossas organizações.

Durante mais de 50 anos, a UFM trabalhou em parceria com outras duas organizações missionárias ocidentais no Brasil, criando uma organização chamada MICEB (Missão Cristã Evangélica do Brasil).8 Essa “estrutura de campo” era como tantas outras: propriedades, veículos, liderança de projetos e estratégias. Pela bondade de Deus, a organização foi usada de forma maravilhosa, e muitos vieram a conhecer o Senhor. Uma pequena placa na entrada do escritório da UFM homenageia a memória de três parceiros missionários martirizados ao levarem o evangelho a uma tribo não alcançada.

No entanto, o tempo passou, igrejas se estabeleceram, o contexto mudou. Radicalmente. O que fazer, então, com a antiga estrutura missionária ocidental?

Considero um privilégio ter participado da conferência especial de nacionalização da MICEB, em novembro de 2021. Nessa ocasião, a liderança da MICEB foi transferida para quatro líderes brasileiros da AICEB (Aliança das Igrejas Cristãs Evangélicas do Brasil), uma denominação que conta com quase 600 igrejas, ao lado das quais os missionários da UFM serviram ao longo dos anos.9 A MICEB agora se tornará a agência missionária local, a serviço da AICEB, com a missão de enviar mais missionários brasileiros a outros países.

Abrir mão de uma estrutura histórica cheia de experiências, sacrifícios e memórias não foi um processo indolor. Mas foi o ponto de partida para a criação de uma nova estrutura de envio de missionários, com liderança local. Os que vieram antes de nós poderiam ter desejado um legado mais emocionante do que esse?

As relações futuras entre a MICEB e a UFM ainda estão em discussão. O calor do companheirismo ao longo dos anos significa que existe um desejo natural de parceria futura. A equipe pastoral da UFM poderia auxiliar os parceiros missionários brasileiros que servem na Europa? Seria possível facilitar a vinda de missionários e profissionais brasileiros ao Reino Unido? O que os mobilizadores brasileiros podem ensinar à igreja do Reino Unido no que se refere a ver, em espírito de oração, uma nova geração de obreiros evangélicos treinados e capacitados para o serviço?

Parceria, sim. Paternalismo, não: revisitando nossas relações na Costa do Marfim

Um dos principais equívocos da estratégia de organizações missionárias internacionais parece ser a tendência de negligenciar as estruturas de envio de missionários que Deus já estabeleceu em todo o mundo – a saber, as igrejas locais e seus líderes. Qualquer envolvimento ocidental no envio de missionários deve começar com uma demanda de parceria por parte de igrejas nacionais, e não de uma intenção de crescimento por parte da organização ocidental.10

Um dos principais equívocos da estratégia de organizações missionárias internacionais parece ser a tendência de negligenciar as estruturas de envio de missionários que Deus já estabeleceu em todo o mundo – a saber, as igrejas locais e seus líderes.

Foi com esse espírito que a UFM recentemente revisitou sua parceria histórica com a denominação local da Costa do Marfim – a UEESO-CI.11 A UFM tem uma longa história de trabalho no país, mas hoje não há parceiros missionários da UFM servindo naquele local. Na verdade, a igreja envia seus próprios parceiros missionários, especialmente para a vizinha Libéria. Gueu Siméon, presidente da denominação, convidou a UFM para uma parceria visando treinamento, envio e suporte à nova geração de missionários que estão sendo enviados.

Para atingir esse objetivo, a UFM não pretende expandir suas estruturas organizacionais para a Costa do Marfim. Em vez disso, temos apoiado as estruturas que já existem ali, partilhando nossa experiência com o envio de missionários que pode ser introduzida no contexto da Costa do Marfim pelos próprios líderes locais.

Essa nova parceria foi iniciada por nossos irmãos e irmãs da África Ocidental, sem a nossa participação em qualquer função executiva. Cremos que isso resultará em menos risco de paternalismo e permitirá que uma parceria genuína prospere, à medida que juntos testemunhamos essa tremenda obra que o Senhor está realizando ao levantar uma nova geração de obreiros missionários da Costa do Marfim.

Colaboração, sim. Controle, não: uma nova rede que promove a mutualidade no envio de missionários

Quando propomos possíveis parcerias para o envio de missionários a toda a igreja global, será que nossa tendência é sermos excessivamente estruturais? Será que nosso esforço para desenvolver estruturas organizacionais acaba se tornando um impedimento para o próprio alvo que esperamos alcançar, por causa das limitações culturais ou financeiras que essas estruturas impõem ao envio?

Foi o que observamos no período em que servimos na Indonésia. Agus era um seminarista temente a Deus, com uma forte paixão pela obra missionária.12 O Senhor havia colocado em seu coração um forte encargo pelo Japão. Nós o incentivamos a fazer um estágio de verão naquele país e o colocamos em contato com amigos que serviam em uma organização missionária internacional ali. Resumindo essa história: a inflexibilidade do sistema financeiro da agência ocidental tornou-se uma barreira intransponível para que Agus ingressasse na organização.

Poderia haver uma alternativa às grandes estruturas de organizações missionárias multinacionais? Algo que preserve os benefícios das relações internacionais, mas transfira a tomada de decisões e os modelos apropriados de envio de missionários àqueles que estão no campo?

A UFM está buscando o que pode ser chamado de “resposta relacional, e não estrutural”, para essa questão. O modelo abaixo mostra uma rede ou grupo de organizações missionárias e igrejas que se associam voluntariamente.13

Igrejas enviadoras – UFM Worldwide no Reino Unido – Igrejas recebedoras / Novos contextos – Elo de comunhão – Igrejas enviadoras da Indonésia – Agências missionárias da Indonésia – País 3 Igrejas enviadoras – País 3 Agência missionária

Assim como aconteceu com os parceiros do Brasil e da Costa do Marfim que mencionamos, pretendemos colaborar de forma mútua com outros grupos de envio de missionários com os quais temos relações na República Democrática do Congo, na Indonésia e em Singapura.

Poderia haver uma alternativa às grandes estruturas de organizações missionárias multinacionais? Algo que preserve os benefícios das relações internacionais, mas transfira a tomada de decisões e os modelos apropriados de envio de missionários àqueles que estão no campo?

Na rede de conexões, cada grupo parceiro é:

  • Liderado localmente, sem a necessidade de se reportar a uma liderança internacional.
  • Livre para seguir modelos de envio de missionários mais apropriados ao seu contexto.
  • Independente, sem que nenhum grupo exerça autoridade executiva sobre outro.

Como organização, queremos encorajar e apoiar grupos emergentes de envio de missionários e aprender com os novos modelos que Deus colocará nos seus corações.  Possivelmente, algo nestes moldes:

  • Partilhando percepções obtidas na história da UFM no apoio a missionários transculturais, com líderes nacionais fundamentando e aplicando esses princípios no seu próprio contexto.
  • Ajudando na formação de líderes de igrejas e de organizações missionárias, especificamente no que se refere ao envio de missionários.
  • Oferecendo parcerias financeiras, “sem imposição de condições”, como, por exemplo, o financiamento inicial para a liderança local de uma nova organização missionária.
  • Convidando líderes parceiros para testemunhar nas conferências da UFM.
  • Facilitando o envio de parceiros missionários do Mundo Majoritário à Europa.

O modelo funcionará melhor se houver nessa rede um real policentrismo, com o aprendizado partilhado em todas as direções e entre todos os participantes.14 Antes de definir em detalhes como essa rede poderá funcionar, planejamos ter, em 2025, a primeira reunião presencial desse grupo para ouvir as percepções, sugestões e expectativas de todos os parceiros.

Conclusão: o próximo passo

Começamos com as palavras de três líderes de organizações missionárias indonésias: “Queremos trabalhar com vocês, não para vocês”.

Enquanto você reflete sobre a forma como Senhor está levantando obreiros de toda a sua igreja global, aqui estão algumas perguntas para ajudá-lo a dar o próximo passo no sentido de desenvolver um maior senso de mutualidade no envio de missionários.

Se você estiver envolvido em uma organização missionária internacional:

  • Há, na sua organização, estruturas que poderiam ser eliminadas ou reaproveitadas para facilitar o serviço missionário de outros?
  • Sua organização tem um relacionamento histórico com igrejas nacionais que precisa ser renovado para promover a parceria, e não o paternalismo?

Se você estiver enviando do Mundo Majoritário:

  • Pense quais modelos de envio de missionários você gostaria de seguir se pudesse começar do zero. O que as organizações internacionais poderiam aprender com isso?
  • Que barreiras são apresentadas ao seu ministério de envio pelas bem-intencionadas estruturas de organizações internacionais? De que forma você pode comunicar-se melhor com esses grupos?

Notas de fim

  1. Michael Prest, ‘The West with the Rest? Exploring the Role of UFM Worldwide in the Sending of Overseas Cross-Cultural Missionaries from the Indonesian Church’ (MTh diss., University of Glasgow, 2022), 204–205.
  2. Warren W. Webster, ‘The Nature of the Church and Unity in Mission,’ in New Horizons in World Missions, ed. David J. Hesselgrave (Grand Rapids: Baker Book House, 1979), 247.
  3. Stan Nussbaum, A Readers’ Guide to Transforming Mission (Maryknoll, NY: Orbis Books, 2005), 120.
  4. Veja, eg Steve (Heung Chan) Kim, “A Newer Missions Paradigm and the Growth of Missions from the Majority World” Missions from the Majority World: Progress, Challenges and Case Studies, ed. Enoch Wan and Michael Pocock (Pasadena: William Carey Library, 2009),14.
  5. Marty Shaw, Jr., ‘The Future of Kingdom Work in a Globalizing World,’ accessed 27 April 2024, https://www.lausanne.org/content/lop/globalization-gospel-rethinking-mission-contemporary-world-lop-30.
  6. Kang-San Tan, ‘Western Dominance in World Mission: A Time for Change? A Response from an Asian Perspective,’ CMF Thinking Mission Forum, 25 May 2011, accessed 14 April 2024, https://www.academia.edu/1988925/The_modern_missionary_movement_an_era_of_Western_dominance_Was_it_all_bad_and_where_do_we_go_from_here.
  7. Tan, ‘Western Dominance.’
  8. Missão Cristã Evangélica do Brasil, the ‘Evangelical Christian Mission of Brazil’ was a partnership formed in 1967 between UFM Worldwide from the UK, Crossworld from the USA, and SAM-Global from Switzerland.
  9. Alianças das Igrejas Cristãs Evanélicas do Brasil, the ‘Alliance of Evangelical Christian Churches in Brazil.’
  10. Nota da Editora:VejaOs estrangeiros ainda são necessários na era da missão nativa?, de Kirst Rievan, em Análise Global de Lausanne, julho/2021.
  11. Union des Eglises Evangéliques Services et Oeuvres de Côte d’Ivoire, the Union of Evangelical Churches, Works and Services of Ivory Coast.
  12. Name changed for sensitivity reasons.
  13. Prest, ‘The West with the Rest?’ 208.
  14. Nota da Editora: Veja O policentrismo como o paradigma da nova liderança”, de Joseph W. Handley, em Análise Global de Lausanne, maio/2021.