“É bom ser convidado para sentar-se à mesa, mas é muito melhor ser convidado para a cozinha”, sussurrou certo líder africano a Todd Johnson em uma conferência de líderes missionários onde apenas um punhado de líderes africanos estavam representados.[1] A mesa é onde o menu e os talheres já estão postos. A cozinha, no entanto, é onde os ingredientes e pratos são preparados do zero. A cozinha é caótica e bagunçada, à medida que cozinheiros e membros da equipe usam a culinária de fusão, com a mistura de ingredientes inusitados e conflitantes e técnicas incomuns, para criar novas versões de uma receita. Na cozinha, os líderes cristãos ocidentais são alguns entre muitos “chefs”. Eles não põem a mesa para todos os outros. Devemos, em vez disso, inovar juntos a culinária internacional.
O ponto crucial está na forma como nos reunimos. Jeff Adams, que pastoreou uma grande igreja americana e foi missionário durante a guerra em El Salvador, lembra-se de estar formando um conselho multiétnico para uma grande organização missionária, quando um líder asiático protestou: “Como podemos liderar como conselho se sequer tomamos chá juntos ou sabemos os nomes dos filhos uns dos outros?”[2] Enquanto os líderes cristãos ocidentais “tomam chá” com seus colegas, certo líder de origem não ocidental comentou: “Eu era bem-vindo, mas agora sou esperado”.
Tendências contemporâneas globais
Não se trata de uma redução da liderança ocidental, mas sim do crescimento da liderança não ocidental. O contexto para a liderança cristã ocidental passa por uma mudança tectônica no cristianismo: do Norte Global para o Sul Global.[3] Se em 1900, 82% dos cristãos estavam no hemisfério Norte, hoje, apenas 33% dos cristãos estão na Europa e na América do Norte. De 2020 em diante, 67% da população mundial localiza-se na Ásia, África, América Latina e Oceania, e as projeções indicam que, em 2050, a população cristã no hemisfério Sul corresponderá a 77%.[4]
A mudança global é dramática. Os locais onde o cristianismo experimenta um crescimento mais rápido são a África (667 milhões de cristãos) e a América Latina (612 milhões). De cada 100 cristãos, 26 vivem na África, 24 na América Latina, 23 na Europa, 15 na Ásia, 11 na América do Norte e 1 na Oceania.[5] Algo semelhante acontece nas missões globais. Depois dos Estados Unidos, os países que mais enviam missionários estão no Hemisfério Sul, a saber, Brasil, Coreia do Sul, Filipinas, Nigéria e China.[6] Isso significa que os líderes cristãos ocidentais devem encorajar o surgimento de uma missiologia e uma teologia não ocidentais. A Teologia Minjung coreana, por exemplo, se identifica com o sofrimento dos pobres [minjung significa “povo pobre”] ou das “massas” oprimidas. Nos últimos anos, iniciativas como a Parceria Langham,[7] de John Stott, divulgaram a perspectiva bíblica de líderes teológicos nascidos no Hemisfério Sul. Estamos vivendo em uma era global e a Igreja precisa de líderes com uma mentalidade mais abrangente não apenas de estilos de liderança e textos ocidentais que são exportados para o resto do mundo.[8]
Além disso, é alarmante que esse crescimento explosivo da Igreja cristã no Sul Global esteja ocorrendo em locais onde o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH)[9] é o mais baixo – onde abundam a pobreza, o analfabetismo, o conflito civil e as enfermidades. A maior parte das missões e do crescimento cristão virá de regiões subdesenvolvidas e problemáticas.
A tendência de urbanização é igualmente perturbadora. A maioria das futuras megacidades estará em países em desenvolvimento, desencadeando questões socioeconômicas complexas, como o aumento no número de mulheres e crianças em situação de risco, trabalhadores migrantes e moradores de favelas. A ONU estima que 35% da urbanização ocorrerá na China, na Índia e na Nigéria entre 2018 e 2050.[10] É vital, portanto, que os líderes cristãos ocidentais se engajem em uma “colaboração radical”[11] com seus pares não ocidentais a fim de lidar com as realidades, injustiças e desigualdades socioeconômicas complexas que confrontam a Igreja global. Precisamos de líderes cristãos com o “paradigma do reino” para a transformação holística da comunidade[12] aonde quer que o evangelho seja levado e anunciado. “Não podemos dicotomizar o evangelho entre o espiritual e o físico. Temos que levar todo o evangelho para as pessoas em sua totalidade”, insiste Bekele Shanko, fundador e presidente da Aliança Global para a Multiplicação de Igrejas (GACX), que serviu por 27 anos em seu país natal, a Etiópia, bem como em Uganda, Zimbábue, África do Sul e nos EUA.[13]
Além disso, cerca de 85% dos povos menos alcançados do mundo – Frontier People Groups (FPG) com menos de 0,1% de cristãos – são muçulmanos ou hindus[14] e concentram-se em países de perseguição forte ou moderada. Na verdade, vivemos em uma época sem precedentes de perseguição e martírio aos cristãos. Mais cristãos foram perseguidos nos últimos anos do que em qualquer outra era da história[15] e o prognóstico é que o martírio de cristãos chegue a 1 milhão entre 2015-25.[16] Os líderes cristãos são desafiados a conduzir a Igreja global à conclusão da tarefa de levar o evangelho a todos os grupos de pessoas que ainda não o ouviram. Isso envolverá risco, sofrimento e sacrifício, ao custo de vidas. Shanko testemunhou em primeira mão como o sofrimento e a perseguição refinam a nossa fé por meio da entrega, renúncia e vida de oração com fervor e clamor.[17]
Implicações para a liderança cristã ocidental
Os líderes cristãos ocidentais, portanto, podem ser líderes globais eficazes quando:
- servem e aprendem humildemente com a Igreja global, que é predominantemente não ocidental e situa-se no hemisfério Sul;
- engajam-se em colaboração radical para lidar com as questões socioeconômicas e legais enfrentadas pela Igreja global;
- defendem o “paradigma bíblico do reino” para a transformação holística da comunidade, tanto espiritual quanto socioeconômica;
- adotam um paradigma robusto e uma teologia de risco, sofrimento e sacrifício;
- absorvem a fé ardente daqueles que sofreram pelo evangelho;
- promovem missiologia, teologia e obtenção de subsídios de países não ocidentais para o estudo; e
- desenvolvem um modelo de liderança bíblico que tenha relevância universal não apenas no ocidente.
Shanko acredita que a humildade do servo-líder[18] é a chave para a liderança cristã ocidental. Humildade significa dizer: “Quero aprender. Como posso aprender com a sua experiência?”[19] Quando nos reunimos, ele aconselha os líderes cristãos ocidentais a que venham dispostos a ouvir e aprender antes de fazer qualquer contribuição.
Da mesma forma, quando Jeff Adams estava de partida para El Salvador, o melhor conselho que recebeu foi de seu mentor: “Não faça nada… Mas defina primeiro o que Deus está fazendo e onde ele está, e deixe o Espírito Santo mostrar o caminho”. Adams acredita que devemos estabelecer um relacionamento antes de anunciar Jesus; adotar a “teologia do comum” – como tomar chá juntos – e deixar a mensagem de Jesus afetar todas as esferas da vida. O verdadeiro poder da liderança está em viver a vida de Jesus no dia a dia. Nossa responsabilidade não é mudar o mundo, mas mudar a maneira como vivemos a fim de impactar o mundo para Cristo.
Angel Cabrera e Gregory Unruh insistem que “líderes globais criam soluções reunindo pessoas e recursos que ultrapassam fronteiras nacionais, culturais e até organizacionais. Líderes globais são visionários inspirados por um desafio mundial que permanece sem solução, uma injustiça social ignorada ou uma oportunidade de negócios que não foi explorada”.[20] Líderes globais são “cruzadores de fronteiras” que adquiriram as três principais competências de liderança global: 1) mindset global para se conectar com outros além das fronteiras organizacionais, culturais e nacionais; 2) empreendedorismo global para criar valor e inovar soluções; e 3) cidadania global que produz contribuição positiva e benefícios além das fronteiras.[21]
A cultura e os estilos de liderança
O que é liderança ocidental? Mesmo entre os países da América do Norte e da Europa, os estilos de liderança ocidentais variam conforme as diferenças culturais. Em 2004, um estudo pioneiro do GLOBE Project entrevistou 17 mil líderes de 951 organizações em 62 países.[22] Seis estilos principais de liderança desejados foram identificados, com base em 112 atributos de liderança e 21 dimensões primárias de liderança:[23]
- Liderança carismática/baseada em valores (C/VB), que é decisiva, visionária, inspiradora e capaz de motivar os outros a alcançar um desempenho excepcional com base em valores fortes, incluindo integridade e altruísmo;
- Liderança voltada à equipe, que é diplomática, não dolosa e valoriza a colaboração da equipe, a integração e a competência administrativa.
- Liderança participativa, que não é autocrática e incentiva a participação na tomada de decisões.
- Liderança humanizada, que é atenciosa, solidária, generosa e compassiva para com os outros e marcada pela discrição.
- Liderança autônoma, que exibe atributos de liderança extremamente individualizados, imparciais e específicos.
- Liderança autoprotetora, que prioriza segurança, proteção, status, procedimentos, é baseada na polidez, na competição interna e é egocêntrica.
Os resultados são os seguintes:
Fig. 1 Estilos de liderança nos grupos de dez países
Ocidental
Grupo de países
Carismática
Voltada à equipe
Participativa
Humanizada
Autônoma
Autoprotetora
Anglo
1
4
2
3
5
6
Europa germânica
2
5
3
4
1
6
Europa nórdica
1
3
2
5
4
6
Europe oriental
3
4
6
5
1
2
Europe latina
1
2
3
5
6
4
Não ocidental
Grupo de países
Carismática
Voltada à equipe
Participativa
Humanizada
Autônoma
Autoprotetora
América latina
1
2
4
5
6
3
Asia Confuciana
4
2
6
3
5
1
África subsaariana
2
3
4
1
6
5
Sul da Ásia
2
4
6
3
5
1
Oriente médio
4
5
6
2
3
1
Legenda: maior pontuação menor pontuação
A pesquisa do GLOBE Project concluiu que “a chave, e talvez, o ponto central de uma liderança executiva bem-sucedida em um mundo global é que os executivos… lideram… com protótipos de liderança que são consistentes com sua própria cultura”.[24] Em outras palavras, “os líderes romanos lideram da maneira esperada em Roma”.[25] Os líderes cristãos ocidentais, portanto, não podem exportar a liderança ocidental para o resto do mundo sem filtro e autoconsciência. A tabela oferece aos líderes ocidentais dicas de como ajustar seus estilos de liderança para que sejam eficazes em diferentes culturas. Por exemplo, a maioria dos países ocidentais prefere uma liderança carismática/baseada em valores (C/VB), especialmente nos países anglo-europeus,[26] nórdicos[27] e latino-europeus.[28] Os países anglo-germânicos[29] e nórdicos também não costumam ter o estilo de liderança autoprotetora, predominante entre os líderes asiáticos e do Oriente Médio. Sendo assim, seria proveitoso que os líderes cristãos ocidentais dessas regiões se esforçassem para honrar o padrão da polidez, do status e da autoridade predominante entre os parceiros asiáticos e do Oriente Médio.
Há boas notícias para os líderes ocidentais. A pesquisa conduzida pelo GLOBE Project indicou que o estilo de liderança com maior pontuação foi o C/VB. Sem exceção, as pessoas apreciam os “líderes bem-sucedidos (que) adotam comportamentos essenciais desejados universalmente, que compreendem a liderança carismática baseada em valores… isso significa desenvolver uma visão, inspirar outras pessoas, demonstrar integridade, ser decisivo e criar uma cultura voltada para o desempenho”.[30] Além disso, o compromisso e a solidariedade da equipe também foram altamente valorizados em todos os estilos de liderança. Sendo assim, em várias culturas, um líder cristão ocidental geralmente teria sucesso se adotasse os estilos de liderança C/VB e liderança voltada à equipe. Ambos os estilos de liderança são altamente relacionais. Portanto, os líderes ocidentais fariam bem em “tomar chá” com frequência e priorizar o relacionamento acima das regras, das operações e da eficiência.
Conclusão
Passar de líder cristão ocidental para líder cristão global é um processo difícil. E custoso. Adaptar-se a outras culturas não significa apenas ampliar ou reformar uma cozinha moderna pré-existente. Significa demolir e reconstruir toda a cozinha desde os alicerces e reconfigurar os espaços. Muitas cozinhas não ocidentais ficam ao ar livre, têm um fogo aceso em seu interior ou uma churrasqueira embutida na parede. Por essa razão, não devemos apenas convidar os líderes globais para a velha cozinha que tanto apreciamos, mas sim reconstruir uma cozinha variada, com vários estilos. E devemos fazer isso juntos. Depois poderemos jantar e tomar chá juntos.
Notas
- Todd Johnson, https://www.gordonconwell.edu/blog/all-peoples-in-gods-kitchen/.
- Interview with Jeff Adams, Founder/President, Missional Impact, May 2021.
- Global North is a geopolitical designation, including 54 countries in the five regions of Northern America, Western Europe, Eastern Europe (including Russia), Northern Europe, and Southern Europe. Global South includes the 180 countries in the remaining seventeen UN regions: Central Asia, Eastern Asia, South Asia, Southeastern Asia, Western Asia, Eastern Africa, Middle Africa, Northern Africa, Southern Africa, Western Africa, Caribbean, Central America, South America, Australia/New Zealand, Melanesia, Micronesia and Polynesia.
- Todd Johnson and Gina Zurlo, eds., World Christian Encyclopedia, 3rd edition (Edinburgh: Edinburgh University Press, 2020), 3-4.
- Johnson and Zurlo, World Christian Encyclopedia, 3-4.
- Johnson and Zurlo, World Christian Encyclopedia, 32.
- https://us.langham.org.
- Nota da Editora: veja o artigo de Mary Ho, intitulado “Liderança global para a missão global: como formar líderes de missões de nível internacional”, na edição de novembro 2016 da Análise Global de Lausanne (https://lausanne.org/pt-br/recursos-multimidia-pt-br/agl-pt-br/2016-11-pt-br/lideranca-global-para-a-missao-global-como-formar-lideres-de-missoes-de-nivel-internacional).
- The United Nations’ Human Development Index (HDI) measures GDP, literacy, education, and life expectancy.
- Shelbi Austin, ‘The Ten Largest Cities in the World’, US News, 18 December 2019, https://www.usnews.com/news/cities/slideshows/the-10-largest-cities-in-the-world.
- Coined by T.V. Thomas, Global Mobilization Consultation, Brazil, December 2019.
- Christian community transformation involves a ‘change in the whole of the person—material, social and spiritual—as well as in the community—economics, social, and political.’ Samuel J. Voorhies, ‘Transformational Development: God at Work Change People and Their Communities’, Perspectives of World Christian Movement (Pasadena: William Carey Library, 2009), 603.
- Interview with Bekele Shanko, Founder and Chairman of GACX and Vice President for CRU Global Church Movement, June 2021.
- Rebecca Lewis, ‘Clarifying the Remaining Frontier Mission Task’, International Journal of Frontier Missiology, 35:4 Winter 2018: 155-68, https://www.ijfm.org/PDFs_IJFM/35_4_PDFs/IJFM_35_4-Lewis.pdf.
- ‘World Watch List 2020: Trends’, Open Doors, https://www.opendoorsuk.org/persecution/wwl20-trends/.
- Todd M. Johnson, Gina A. Zurlo, Albert W. Hickman, and Peter F. Crossing, ‘Christianity 2018: More African Christians and Counting Martyrs’, International Bulletin of Mission Research 42, no. 1 (2018): 25.
- Bekele Shanko, June 2021.
- Mary Ho, “A cultura transcendente do servo-líder: princípios para missão global no século 21”, Análise Global de Lausanne, março/2020, https://lausanne.org/content/lga/2020-03/transcendent-culture-servant-leadership.
- Bekele Shanko, June 2021.
- Angel Cabrera and Gregory Unruh, Being Global: How to Think, Act, and Lead in a Transformed World (Boston: Harvard Business Review Press, 2012), 12.
- Cabrera and Unruh, Being Global, 24-27.
- Peter Dorfman, Mansour Javidan, Paul Hanges, Ali Dastmalchian, Robert House, ‘GLOBE: A Twenty Year Journey into the Intriguing World of Culture and Leadership’, Journal of World Business, 47 (2012): 505-7.
- Dorfman, et al, ‘GLOBE’, 505.
- Dorfman, et al, ‘GLOBE’, 514.
- Dorfman, et al, ‘GLOBE’, 514.
- Canada, U.S., Australia, Ireland, England, South Africa (white sample), and New Zealand.
- Denmark, Finland, and Sweden.
- Israel, Italy, Switzerland (Francophone), Spain, Portugal, and France.
- Austria, The Netherlands, Switzerland, and Germany.
- Dorfman, et al, ‘GLOBE’, 514.