O servo-líder é um paradoxo, um oxímoro. É a fusão controversa de aparentes opostos — um servo e um líder — que produz um líder por excelência. Num século XXI global, os líderes e trabalhadores de missões não lidam com situações lineares mas com dilemas complexos.[1] O servo-líder é o modelo de liderança universal intemporal capaz de lidar com elas.
O servo-líder
O termo servo-líder, exemplificado por Jesus, foi cunhado por Robert Greenleaf no seu trabalho pioneiro de 1970, The Servant as Leader (O servo como líder), em que ele fundiu os dois extremos do “líder primeiro e servo primeiro”.[2] Greenleaf inspirou-se no servo Leo em The Journey to the East (Viagem ao oriente), o romance de Hermann Hesse, que insiste que «aqueles que querem uma vida longa devem servir; não viverão muito aqueles que desejam governar».[3] Um servo-líder vive naturalmente além-fronteiras. Não escolhe entre valores opostos. Em vez disso, combina esses valores para se tornar o líder identificado em Good to Great (De bom a excelente) como «uma mistura paradoxal de humildade pessoal e vontade profissional».[4] O século XXI global requer líderes que tenham a competência transcultural essencial de conciliar valores polarizados.[5]
Em Defining Moments (Momentos determinantes), Joseph Badaracco observa que os líderes de hoje têm de saber «o que fazer quando uma coisa certa tem de ficar por fazer para que se faça outra, ou quando fazer a coisa certa requer que se faça a coisa errada»?’[6] Conciliar dilemas permite a um servo-líder tirar o melhor partido de situações errado-vs-errado e certo-vs-certo. Este artigo mostra como Jesus exemplifica as qualidades paradigmáticas do servo-líder, conforme descritas pelos peritos culturais Fons Trompenaars e Ed Voerman em Servant-Leadership Across Cultures (Liderança de serviço na cultura).[7]
Trompenaars e Voerman empregam três símbolos para ilustrar as competências do servo-líder:
1. A liderança de serviço significa que as palavras servo e líder são igualmente importantes. Esta é uma liderança composta em que o todo é maior do que as partes.
2. É um círculo de duas vias, começado por qualquer pessoa, em qualquer ponto, em qualquer direção. Alguns líderes começam com um desejo de servir, outros com um desejo de liderar. Cada líder começa com a sua força e depois acrescenta outras características.
3. Embora muitos líderes descrevam o conceito como uma pirâmide invertida, o nosso mundo em mudança requer uma pirâmide rotativa, porque algumas situações requerem o serviço, outras a capacidade de decisão.
Universal e intemporal
Qualquer pessoa pode tornar-se um servo-líder. Existe um ponto de partida para cada uma no contínuo circular em qualquer direção. Vince Lombardi. o famoso treinador de futebol, observou que «Ninguém nasce líder. Um líder cria-se com esforço, o preço que todos temos de pagar para alcançar qualquer objetivo que valha a pena».[8]
Além disso, os servos-líderes vêm de todas as culturas — e são capazes de alcançar pessoas de todas as culturas e religiões. A liderança de serviço é universal:
- existe em culturas antigas, em todas as grandes religiões e nas filosofias de Aristóteles, Sócrates e Platão.
- O estudo de referência Culture, Leadership, and Organizations: The GLOBE Study of 62 Societies (Cultura, liderança e organizações: o estudo da GLOBE de 62 sociedades) [9] confirma a presença de dimensões de liderança de serviço no Judaísmo, Cristianismo, Islamismo, Budismo e Taoísmo.
- A investigação contemporânea de Rakesh Mittal e Peter Dorfman em 59 países também conclui que «a liderança de serviço é percecionada como importante para a liderança eficaz em todas as sociedades»[10]
No entanto, em Servant Leadership: A Worldview Perspective (Liderança de serviço: uma perspetiva mundividente), Randall Wallace nota que, das cinco maiores religiões, representando 82% da população mundial, o Cristianismo e o Judaísmo são as mais compatíveis com liderança de serviço.[11] Embora todas as culturas e religiões apresentem aspetos do conceito, Jesus Cristo é a derradeira personificação de um servo-líder.
Jesus, o servo-líder dilemático
Jesus deu o maior salto cultural na história, de divino no Céu para humano na Terra. Ele integrou perfeitamente os estilos de liderança combinados de um servo-líder. Jesus era Deus na sua natureza eterna essencial, ou morphe (grego); e no entanto assumiu a morphe de um doulos (grego), um escravo (Fil. 2:6-7). Jesus serviu na Terra como um Deus-escravo. Para sempre, ele está no trono divino, acima de qualquer autoridade (Ef. 1:21), enquanto serve humildemente toda a humanidade.
Trompenaars e Voerman identificaram sete binários da liderança de serviço que abrangem todos os dilemas transculturais. Embora estas dimensões não sejam abertamente espirituais, Jesus exemplifica cada uma delas:
1. Liderança versus serviço
A liderança de serviço não é nem servidão nem o alcançar de sucesso notável. Em culturas orientadas para o desempenho, os líderes alcançam objetivos da equipa e valorizam os sucessos de indivíduos. As suas estruturas organizacionais definem papéis, tarefas e coordenação. Em contraste, as culturas de atribuição retiram estatuto do nascimento, idade, género, riqueza e família.
Jesus era voltado para a tarefa. Ele disse ao Pai «Eu te glorifiquei na terra, completando a obra que me deste para fazer» (João 17:4), e mais tarde declarou «Está consumado!» (João 19:30) na cruz.
No entanto, lavou os pés dos discípulos porque sabia que «viera de Deus e estava voltando para Deus» (João 13:3). Ele era «igual a Deus» e, no entanto, escolheu esvaziar-se desses privilégios (grego: ekenosen) (Fil. 2:6-7). Jesus veio de uma família divina; no entanto, abraçou o seu destino de servo conforme as instruções do Pai.
2. Regras versus exceções
Algumas culturas valorizam regras, códigos e padrões. Culturas relacionais enfatizam exceções, amizades e circunstâncias específicas em vez de regras universais. Servos-líderes não exigem que a sua cultura seja o centro da realidade. Em vez disso, aceitam diferenças culturais e adaptam-se a circunstâncias especiais.
Jesus estabeleceu a regra universal sem exceção para justiça, cura e vida: «Isto traz-nos a uma verdade fundamental … Todo o mal que merecemos, por justiça, passou para Jesus, para que todo o bem que Jesus merecia, conquistado pela sua obediência sem pecado, pudesse ser-nos dado»[12]
Apesar desta regra universal, Jesus ministrou por exceção. Mostrou a Tomé as marcas feitas pelos pregos; redimiu as três negações de Pedro perguntando-lhe três vezes «Amas-me?», e chamou Maria Madalena, que chorava junto do seu túmulo, pelo nome. Quando as pessoas vacilaram, Jesus viu oportunidades para elas crescerem.
3. Partes versus todo
Os servos-líderes ligam peças individuais ao todo. Culturas individualistas valorizam a independência, criatividade e bem-estar individual. Por exemplo, a economia ocidental é baseada no princípio de Adam Smith de que o lucro individual beneficia toda a sociedade. Em contraste, as culturas coletivistas valorizam o bem-estar do grupo, até a custo do indivíduo.
Os servos-líderes encorajam indivíduos a inovar numa equipa com uma visão partilhada. Em The Light Prize, Gary Oster afirma que o papel do líder é «integrar a ampla capacidade dos funcionários excêntricos, individualistas e altamente inteligentes que ignoram as tentativas da empresa de os tornar mais eficientes»’[13] Jesus mudou o mundo ao recrutar uma mão-cheia deles: Paulo, o perseguidor; Mateus, o cobrador de impostos; Pedro, a ‘rocha’ instável; e Maria Madalena, a prostituta. Ele escolheu indivíduos improváveis para mudar o todo:
Não tinha ele vindo salvar o mundo? … Certamente o Filho de Deus poderia ter adotado um programa de recrutamento em massa mais atrativo. … No entanto, o que tinha ele no fim? Uns poucos discípulos andrajosos. … Tinha de se dedicar primeiro a alguns homens, não às massas, para que no fim as massas pudessem ser salvas.»’[14]
4. Controlo versus paixão
Os servos-líderes combinam controlo com paixão. Prosperam tanto em culturas neutras que enfatizam o controlo das emoções, o pensamento racional e uma abordagem realista à vida, como em culturas afetivas que vivem com paixão, beleza, humor e descontração. Os servos-líderes fundem as duas abordagens ao mostrar as suas emoções no momento certo.
Com um controlo perfeito, Jesus dormiu com a cabeça numa almofada durante um «forte vendaval» e ordenou à tempestade: «Aquiete-se! Acalme-se!» (Marcos 4:35-41). Da mesma forma, quando encontrou uma mulher adúltera a ser atacada, escreveu calmamente no chão e disse, como censura: «Se algum de vocês estiver sem pecado, seja o primeiro a atirar pedra nela» (João 8:7). No entanto, quando Jesus entrou no templo onde gentios adoravam, derrubou mesas e expulsou mercenários. Ele libertou raiva controlada contra aqueles que impediam que os gentios orassem e que o templo fosse «casa de oração para todos os povos» (Marcos 11:15-17).
5. Específico versus difuso
Culturas específicas preferem factos, números e variáveis mensuráveis. Em culturas difusas, o contexto mais abrangente é mais importante do que as partes. Culturas difusas valorizam a empatia e o desenvolver de uma relação antes de fazer negócios. Uma vez aceites, os amigos são amigos em todas as áreas da vida.
Jesus ministrou de forma difusa quando descreveu como «meu irmão, minha irmã e minha mãe» os discípulos que faziam «a vontade de meu Pai» (Mat. 12:50). Quando se forma um relacionamento, um estranho torna-se família. E no entanto, Jesus disse que «de forma alguma desaparecerá da Lei a menor letra ou o menor traço, até que tudo se cumpra» (Mat. 5:18). Ele era meticuloso quando a situação o exigia. Ele iniciava ‘momentos de verdade’ ao dar às pessoas aquilo de que elas precisavam no momento em que precisavam. Para responder ao dilema dos impostos, ele fez surgir um peixe precisamente com os quatro dracmas necessários para os pagar (Mat. 17:24-27). Ele preservou a relação com a provisão exata no momento exato.
6. Curto versus longo prazo
Algumas culturas têm um horizonte de curto prazo e outras um de longo prazo. Um servo-líder traça uma visão para o grande plano; completa tarefas diárias; e desenvolve estratégias emergentes ao recolher informação. Jesus revelou o grande plano da sua crucificação, ressurreição e até do final dos tempos. No entanto, ele mudou o plano de ministrar apenas aos judeus quando a mulher cananeia lhe implorou que lhe curasse a filha. Em cada cultura, o servo-líder escuta, recolhe informação, consulta conselheiros e toma uma decisão fundamentada com a qual se compromete.
Um servo-líder integra retrospetiva, discernimento e precaução, porque culturas diferentes colocam um peso diferente no passado, presente e futuro. Culturas orientadas para o passado veem o futuro ao repetir experiências anteriores, sabedoria antiga e memória coletiva. Culturas orientadas para o presente focam-se em executar tarefas diárias, e culturas orientadas para o futuro criam estratégias. Jesus é o Alfa e o Ómega. Ele exorta-nos a orar pelo pão de cada dia e a não nos preocuparmos com o amanhã. No entanto, diz-nos que estejamos preparados, «porque o Filho do homem virá numa hora em que vocês menos esperam». (Mat. 24:44).
7. Arrastão versus empurrão
Os servos-líderes são tanto internamente inspirados como externamente motivados pelo ambiente. Conseguem orientar-se em «culturas de arrastão» em que os princípios interiores determinam comportamentos e decisões. Estes líderes têm uma grande força de vontade. Dão valor a falar antes de ouvir e à iniciativa antes da cautela. Em contraste, líderes em «culturas de empurrão» retiram sabedoria e força externas da natureza e relações sociais. Ouvem e adaptam-se com cautela e modéstia.
Jesus tinha uma motivação interna. Ele conhecia o coração humano. No entanto, respondia constantemente a exigências externas, especialmente apelos de cura. Ele parava no caminho e respondia «Eu quero» aos seus pedidos externos
Conclusão
Na Última Ceia, Jesus estabeleceu uma nova hipercultura que transcendeu todas as culturas quando nos exortou: «se eu, sendo Senhor e Mestre de vocês, lavei-lhes os pés, vocês também devem lavar os pés uns dos outros» (João 13:14). Nessa noite, ele ordenou-nos que nos amássemos uns aos outros, não simplesmente como nos amamos a nós próprios, mas como ele nos ama. É insondável, mas essa é a cultura transcendente da liderança de servo.
Notas de fim
- Nota do editor: Ver artigo de Mary Ho, intitulado «Global Leadership for Global Mission: How mission leaders can become world-class global leaders», na edição de novembro de 2016 da Análise Global de Lausanne https://lausanne.org/pt-br/recursos-multimidia-pt-br/agl-pt-br/2016-11-pt-br/lideranca-global-para-a-missao-global-como-formar-lideres-de-missoes-de-nivel-internacional.
- R. Greenleaf, Liderança Servidora (São Paulo: Centro Greenleaf Brasil de Liderança Servidora, 2006).
- H. Hesse, Journey to the East (Mansfield Centre: Martino, 2011).
- J. Collins, Good to Great (New York: HarperCollins, 2001).
- Nota do editor: Ver artigo de Scott Moreau, intitulado «Becoming a Healthy Multi-Cultural Team: How to Reach the ‘Effective Synergy’ Phase», na edição de março de 2019 da Análise Global de Lausanne https://lausanne.org/pt-br/recursos-multimidia-pt-br/agl-pt-br/criar-uma-equipa-multicultural.
- J. Badaracco, Defining Moments: When Managers Must Choose between Right and Right (Boston: Harvard, 1997).
- F. Trompenaars and E. Voerman, Servant-Leadership across Cultures: Harnessing the Strengths of the World’s Most Powerful Management Philosophy (New York: McGraw-Hill, 2010).
- Quoted in M. Hackman and C. Johnson, Leadership: A Communication Perspective (Long Grove: Waveland Press, 2009), 73.
- R. House, P. Hanges, M. Javidan, and P. Dorfman, Culture, Leadership and Organizations: The GLOBE Study of 62 Societies (Thousand Oaks: Sage, 2004).
- R. Mittal and P. Dorfman, ‘Servant Leadership across Cultures’, Journal of World Business 47, 2012.
- R. Wallace, ‘Servant Leadership: A Worldview Perspective’, International Journal of Leadership Studies, vol. 2, no. 2, Regent University, 2007.
- D. Prince, Bought with Blood: The Divine Exchange at the Cross (Grand Rapids: Chosen, 2000).
- G. Oster, The Light Prize: Perspectives on Christian Innovation (Virginia Beach: Gary Oster, 2011).
- Robert Coleman, ‘The Master Plan of Evangelism,’ Perspectives on the World Christian Movement, eds. Ralph Winter and Steven Hawthorne (Pasadena: William Carey Library, 2009).