Global Analysis

Liderança abusiva

Prevenindo o abuso e o uso indevido de poder no ministério cristão

Merethe Turner jul 2024

Se houvesse uma lista dos dez temas que mais merecem a atenção dos líderes cristãos, a questão do abuso e do uso indevido de poder certamente deveria estar entre os primeiros. Nos últimos anos, temos visto diversos casos de líderes cristãos de renome mundial que abusaram do poder, deixando, muitas vezes, mais de uma vítima em seu rastro. É algo que causa profunda tristeza. Infelizmente, é provável que as histórias que ouvimos sejam apenas a ponta do iceberg. A questão também se complica pelo fato de que nós, você e eu, talvez estejamos contribuindo para facilitar o abuso, ferindo pessoas involuntariamente, enquanto acreditamos estar realizando um bom trabalho. Isso nos leva a uma pergunta muito importante: Como podemos evitar que isso aconteça?

Quero destacar, neste artigo, quatro áreas importantes, tanto na prevenção da agressão deliberada como no abuso não intencional ou na sua facilitação. São elas: Educação e capacitação; Políticas e procedimentos; Cultura; e Caráter e bem-estar emocional.1

Como prevenir a prática da liderança abusiva: 01-Educação e capacitação; 02-Políticas e procedimentos; 03-Cultura; 04-Caráter e bem-estar emocional

Abuso

O que é abuso? Essa talvez seja uma pergunta difícil de responder, pois uma ação profundamente prejudicial pode não ser ilegal. A dra. Diane Langberg, especialista na área de traumas no ambiente religioso, tentou respondê-la contrastando uma atitude abusiva com uma atitude humana.2 Sua resposta pode ser vista nas ilustrações abaixo:3

Ser humano é ter ua voz, expressão criativa. O abuso silencia palavras, sentimentos pensamentos, escolhas pessoais
Ser humano é relacionar-se com outros, ansiar por relacionamentos seguros. O abuso destrói e prejudica os relacionamentos. Resulta em medo, apatia, traição, vergonha, isolamento, humilhação, desconexão
Ser humano é ter poder, moldar o mundo. O abuso aniquila e destitui o poder. A pessoa acaba se sentindo impotente, inútil, desesperada, Improdutiva.

Como é possível ver nas ilustrações, o abuso não pode ser definido de forma objetiva, pois variam os limites e limiares que desencadeiam o sentimento de impotência.

Políticas e procedimentos

No Reino Unido, é uma exigência legal ter uma política para proteger crianças e adultos em situação de vulnerabilidade. A realidade, no entanto, é que qualquer adulto pode estar vulnerável a abusos e é difícil encontrar políticas e procedimentos que tratem essa questão. Um estudo mostra que apenas 8% das igrejas nos EUA têm uma política de aconselhamento às vítimas [mulheres adultas].4 Um agravante da questão é que os sobreviventes levam um tempo até conseguirem aceitar a realidade de que são as vítimas. É importante que as igrejas e organizações adotem um procedimento que esteja facilmente acessível a todos e determine com quem falar, quem deve assumir a iniciativa de agir e que tipo de ajuda acionar nas mais variadas circunstâncias. Os limites imprecisos entre autoridade e amizade ou relacionamento espiritual representam um desafio no ministério cristão. Por exemplo, um pastor que também pode ser um amigo, ou a “cultura de família” que é usada como desculpa para não seguir os procedimentos oficiais: “Vamos resolver isso como irmãos e irmãs em Cristo”.

Cultura

A cultura apresenta três aspectos importantes. O primeiro é garantir que a organização não tenha uma cultura de abuso sistêmico, na qual o próprio sistema sirva para encobrir o abuso. Um exemplo disso é a prática da Igreja Católica de enviar para outra igreja/paróquia os padres acusados de abuso, em vez de investigar as alegações.

Em segundo lugar, deve haver uma cultura de conscientização. As pessoas precisam saber identificar [o abuso]. É fácil imaginar que todos nós reconheceríamos um agressor, mas a dura verdade é que até mesmo profissionais treinados podem ter dificuldade de identificar mentirosos.5 Outra dura verdade é que cinco em cada seis estupros contra mulheres são cometidos por alguém que elas conhecem.6 Visto que uma em cada cinco mulheres já sofreu abuso sexual,7 é provável que você conheça alguém que tenha passado por essa terrível experiência e conheça o agressor.

É fácil imaginar que todos nós reconheceríamos um agressor, mas a dura verdade é que até mesmo profissionais treinados podem ter dificuldade de identificar mentirosos.

E terceiro, a cultura organizacional precisa propiciar um ambiente psicologicamente seguro onde seja aceitável dizer “não” – mesmo a algo tão pequeno como o voluntariado – sem ser induzido ao sentimento de culpa; um ambiente onde a pessoa não tema ser excluída se disser ou fizer algo “errado”. Uma cultura na qual as pessoas conhecem e respeitam os limites umas das outras e se relacionam com empatia.

Caráter e bem-estar emocional

Um caráter como o de Cristo é certamente o que esperamos de todos os cristãos. Infelizmente, os agressores assumem deliberadamente uma vida dupla8 e usam uma tática conhecida: procuram ser vistos como “bonzinhos” para atacar suas vítimas.9 Sua arma mais poderosa é a postura gentil e generosa, para que as pessoas respondam de forma automática: “É impossível que essa pessoa tenha feito isso!” Noventa por cento dos agressores sexuais afirmam ser religiosos,10 provavelmente porque os cristãos são vistos como crédulos e ingênuos.11 Portanto, além de atacar especificamente as comunidades religiosas, os agressores também sabem como agir para que sejam apreciados, vistos como simpáticos e dignos de confiança, e suas mentiras dificilmente serão detectadas. Para a maioria de nós é tão difícil encarar a verdade de que o líder que conhecemos e amamos também é um agressor, que recorremos automaticamente à dissonância cognitiva12 e acabamos por rejeitar as provas. Como resultado, podemos até culpar a vítima, pois não queremos permanecer no desconforto do nosso juízo equivocado e enfrentar as consequências. Então, o que fazemos? É nesse ponto que está a importância da educação e da capacitação.

Educação e capacitação

A educação e a capacitação são elementos cruciais na prevenção. No que se refere à prevenção de agressores, muitas áreas já foram mencionadas: a compreensão do que é abuso, as estatísticas que mostram que ele acontece no nosso meio, a dificuldade em detectar mentiras e o uso da tática de ser “a pessoa simpática”. Os agressores, contudo, fazem uso de outras táticas, muitas vezes, de forma simultânea, e seu ponto de partida é usar do poder para tentar obter o controle.

Poder

Qualquer tipo de abuso caracteriza-se pelo uso indevido de poder ou, em outras palavras, de influenciar e manipular. Muitos acreditam que ser humano é ter poder.13 Infelizmente, muitos desconhecem o seu próprio poder e o de quem está à sua volta, nos níveis tanto micro como macro, e, portanto, também não têm consciência da dinâmica de poder que está em jogo. Os menos poderosos, por sua vez, podem ficar em uma posição vulnerável. O nível micro trata do poder que exercemos como indivíduos e pode ser expresso de várias formas: física (altura e força muscular), verbal (voz forte e fala assertiva), emocional (provocar medo e ficar irado), posicional (ter conhecimento especializado ou um título determinado) ou espiritual (reivindicar, por exemplo, que “Deus mandou que eu…”). O nível macro de poder pode estar oculto em nossas normas, teologia e visões de mundo. Indiretamente, temos poder através da cultura que defendemos e da perspectiva teológica que ensinamos. Hiebert afirma que deveríamos perguntar a nós mesmos quem está sendo beneficiado e quem está sendo oprimido por nossos pontos de vista bíblicos e teológicos.14 Também precisamos ter em mente o importante papel desempenhado pela linguagem que usamos e por suas interpretações nesse contexto. Se refletirmos regularmente sobre os pontos expostos acima, teremos mais probabilidades de discernir se estamos causando danos e traumas em nível macro.

Qualquer tipo de abuso caracteriza-se pelo uso indevido de poder ou, em outras palavras, de influenciar e manipular… infelizmente, muitos desconhecem o seu próprio poder e o de quem está à sua volta, nos níveis tanto micro como macro, e, portanto, também não têm consciência da dinâmica de poder que está em jogo.

Conscientização sobre o trauma

A última área a mencionar como parte da educação é a importância de informar-se sobre o trauma. Estar informado aqui significa ter uma compreensão básica de como funcionam nosso cérebro e sistema nervoso, do que consiste o trauma e o que acontece em nosso corpo quando ele se sente ameaçado. O que é estar em modo de sobrevivência, uma condição também conhecida como estar fora da nossa Janela de Tolerância?15 Nossa Janela de Tolerância tem relação com nossa capacidade de lidar com emoções e sentimentos difíceis. Quando uma situação parece excessivamente opressora para nosso sistema nervoso, este pode gerar o conjunto de reações lutar-fugir-congelar-bajular [fight-flight-freeze-fawn] (modo de sobrevivência), e isso acontece quando estamos fora da nossa Janela de Tolerância. Veja alguns exemplos de como é ter uma das diferentes reações:16

Na Janela de Tolerância, eu me sinto: Compassivo, Amoroso
Empático, Satisfeito, Calmo, Curioso, Relaxado, Esperançoso, Forte, Feliz, Capaz de tomar decisões racionais, Capaz de assumir riscos sem me sentir oprimido, Disposto e capaz de me conectar socialmente.
Reações Lutar/Fugir/Bajular: Comportamentos aditivos, Exigir perfeição de si mesmo e/ou dos outros, Falta de limites, Bullying/(Intimidação), Necessidade de agradar, Workaholic/não conseguir ficar parado, Tendências narcisistas, Comportamento compulsivo, Sobrecarga emocional, Comportamento controlador, Modo de reparo, Ansiedade, Sensibilidade, Impulsividade, Medo, Pavor, Irritabilidade, Ira
Reações de congelamento/paralisia: Medo de realizações, Sentimento de impotência, Viver no piloto automático, Dificuldade de tomar atitude, Morosidade, Depressão, Isolamento, Exaustão repentina, Afastamento, Dificuldade de tomar decisões, Confusão mental
Codependência, Medo de tentar coisas novas, Torpor, Paralisia

É importante observar que a forma como reagimos não é uma escolha consciente, e a resposta passiva a uma situação que o corpo pode entender como ameaçadora é muito frequente, especialmente entre as mulheres.17 Uma resposta passiva significa que o corpo é incapaz de dizer “não”, paralisar, e pode até chegar a ter uma atitude de bajulação, dificultando que o abuso seja detectado. As vítimas podem pensar que “desejavam” aquela situação ou podem culpar a si mesmas; um líder pode abusar de alguém de forma involuntária, e é fácil culpar as vítimas por se calarem. A dinâmica de poder desempenha um papel significativo, pois a pessoa em posição de autoridade pode desencadear a resposta de modo de sobrevivência em muitas pessoas. Pode também provocar sentimentos como impotência, vergonha e desconexão. É essencial, portanto, promover uma cultura que exclua o medo e que envolva compreensão e respeito pelos limites pessoais. Além disso, em termos de bem-estar emocional, os líderes que operam fora da sua Janela de Tolerância podem acidentalmente tornar-se abusivos se recorrerem a mecanismos de enfrentamento pouco saudáveis, tais como atitude controladora, tendências narcisistas ou intimidação. O esgotamento é um fator que pode levar alguém a sair da sua Janela de Tolerância. Portanto, é importante que possamos nos instruir, reconhecer quando estamos operando fora da nossa Janela de Tolerância e compreender que as situações podem desencadear tal resposta.

Conclusão

Este artigo apenas introduz o tema do abuso, sua prevenção e o uso indevido do poder pelos líderes cristãos.18 Para evitar o abuso ou a facilitação para que os ofensores prejudiquem involuntariamente outras pessoas, há quatro áreas cruciais que precisamos observar. São elas: Educação e capacitação; Políticas e procedimentos; Cultura; e Caráter e bem-estar emocional. Não podemos esperar resultados positivos a menos que todas essas áreas sejam abordadas, pois uma área está conectada à outra. Podemos, contudo, começar a fazer a diferença se falarmos abertamente sobre o assunto e estivermos conscientes da frequência com que acontece para que, quando alguém partilhar sua experiência dolorosa, ouçamos com atenção e empatia, e não a descartemos automaticamente.

Notas de fim

  1. Merethe Dahl Turner, ‘A critical evaluation of ForMission College’s strategy to prevent the abuse and misuse of power in missional leaders’ (MA diss., ForMission College, 2022), 19.
  2. Diane Langberg, Redeeming Power (Grand Rapids: Brazos Press, 2020), 7–8.
  3. Turner, ‘A critical evaluation,’ 19.
  4. David Kenneth Pooler, and Liza Barros-Lane, ‘A National Study of Adult Women Sexually Abused by Clergy: Insights for Social Workers,’ Social Work 67, no. 2 (January 2022), 123–133.
  5. Anna Salter, Predators (New York: Basic Books, 2003), 40.
  6. ‘Statistics about sexual violence and abuse,’ Rape Crisis UK, accessed 23 June 2022, https://rapecrisis.org.uk/get-informed/about-sexual-violence/statistics-sexual-violence/#key-statistics.
  7. ‘Statistics about sexual violence and abuse,’ Rape Crisis UK, accessed 23 June 2022, https://rapecrisis.org.uk/get-informed/about-sexual-violence/statistics-sexual-violence/#key-statistics.
  8. Salter, Predators, 31.
  9. Natalie Collins, Out of Control, (London: Society for Promoting Christian Knowledge, 2019), 18–19.
  10. Glen Scrivener, ‘Church abuse: protecting ministries, destroying souls,’ interview with Diane Langberg, The Speak Life Podcast, Podcast audio, 23 March 2021, https://podcasts.apple.com/gb/podcast/church-abuse-protecting-ministries-destroying-souls/id626198781?i=1000514583210.
  11. Salter, Predators, 139; Wade Mullen, Something’s Not Right: Decoding the Hidden Tactics of Abuse—And Freeing Yourself from Its Power (Illinois: Tyndale House, 2020), 15.
  12. Shira Berkovits, ‘Institutional abuse in the Jewish community,’ Tradition 50, no. 2 (2017), 12.
  13. Langberg, Redeeming Power, 3.
  14. Paul G. Hiebert, Transforming Worldviews (Grand Rapids: Baker Academic, 2008), 226.
  15. Daniel Siegel in Aundi Kolber, Try Softer: A Fresh Approach to Move Us Out of Anxiety, Stress, and Survival Mode—And Into a Life of Connection and Joy (Illinois: Tyndale House, 2020), 71.
  16. Illustrations by Merethe Dahl Turner with reference to Kolber, Try Softer, 74; Sarah Davies, ‘What is “Window of Tolerance”? Emotional regulation model explained,’ 13 July 2020, https://www.drsarahdavies.com/post/what-is-window-of-tolerance-emotional-regulation-model-explained; Caroline Leaf, ‘The 4 Main Trauma Responses & How to Recognize Your Dominant One + How to Use Self-Regulation & A Neurocycle to Heal Trauma,’ 27 July 2022, https://drleaf.com/blogs/news/the-different-types-of-trauma?_pos=8&_sid=3b7437a5d&_ss=r.
  17. Robert Scaer Natalie Collins, Out of Control, (London: Society for Promoting Christian Knowledge, 2019), 173.
  18. Nota da Editora: Veja “A cultura transcendente do servo-líder”, de Mary Ho, em Análise Global de Lausanne, março/2020, https://lausanne.org/pt-br/global-analysis/a-cultura-transcendente-do-servo-lider