Editor's Note
Este documento de posicionamento foi preparado pela Rede Temática de Diásporas do Movimento de Lausanne. Os autores principais são Paul Sydnor (EUA/França), Sam George (Índia/EUA), Jeanne Wu (Taiwan/EUA) e Clene Nyiramahoro (Ruanda/Quênia) e foi escrito em junho de 2024. Foi desenvolvido com muitas contribuições da equipe executiva da Rede Global de Diáspora, composta por TV Thomas (Malásia/Canadá), Bulus Galadima (Nigéria/EUA), Rev. Joel Wright (EUA/Brasil), Elizabeth Mburu (Quênia), Hannah Hyun (Coreia do Sul/Austrália) e John Park (Coreia do Sul/EUA). Revisão adicional fornecida por alguns dos líderes do GDN NextGen: Stephen Kim (Coreia do Sul/EUA), Miho Buchholtz (Japão), Fabiana Braun (Brasil/Alemanha), Minwoo Heo (Coreia do Sul/EUA), Suhandy Wei Xuan Yao (Indonésia/Cingapura) e Beatriz Tielmann (Brasil/Costa Rica).
Introdução
O deslocamento humano produz a criação de estrangeiros, forasteiros, migrantes, exilados, nômades, refugiados e pessoas em situação de servidão. A fé, a esperança e o amor na tradição cristã são forjados em meio ao deslocamento. Este artigo inicia com breves descrições de diversas terminologias associadas ao deslocamento forçado, oferecendo também um panorama histórico e o estado atual das populações deslocadas forçadamente ao redor do mundo. Em seguida, aborda a questão do deslocamento forçado tanto na Bíblia quanto na literatura teológica. Por fim, apresenta temas selecionados relacionados ao ministério eficaz junto a pessoas em situação de deslocamento forçado.
Terminologias
O deslocamento forçado é a saída involuntária do país de origem e da comunidade nativa em busca de segurança e sobrevivência. Envolve o uso de força com risco à vida, bem como pressões acumuladas ou repentinas que obrigam a pessoa a se deslocar. Existem vários tipos de pessoas deslocadas forçadamente, algumas com definições claras, como deslocados internos, refugiados, requerentes de asilo, pessoas vulneráveis, indocumentados, refugiados climáticos e outros. Contudo, este artigo também inclui outros grupos com status indefinido ou ambíguo, mas que igualmente necessitam de algum tipo de proteção. Trata-se de pessoas que cruzam diferentes fronteiras sob coerção externa ou interna, em busca de pura sobrevivência. Alguns deslocamentos forçados decorrem de movimentos diretos e intencionais; porém, a maioria resulta de eventos passivos e involuntários, fora do controle dessas pessoas. Embora compartilhem muitas semelhanças, falar de apenas um tipo de pessoa deslocada pode ser enganoso e negligenciar outras formas de deslocamento. Neste artigo, o termo “pessoas deslocadas forçadamente” (doravante PDF) será utilizado de forma ampla para se referir a uma diversidade de situações e perfis.
As pessoas deslocadas forçadamente (PDFs) diferem de outras pessoas em movimento, como migrantes, trabalhadores migrantes, migrantes por casamento, estudantes internacionais, comunidades da diáspora, entre outros. O deslocamento geocultural desses grupos é voluntário, enquanto as PDFs se deslocam de forma involuntária, geralmente sob condições de coação externa. Além disso, os países dispõem de leis e processos legais específicos para reconhecer e receber esses migrantes voluntários. Enquanto o Documento Ocasional de Lausanne (DOL) nº 70, intitulado “Pessoas em Movimento”1, aborde de forma ampla a missão cristã no contexto de todas as formas de mobilidade humana, este artigo concentra-se especificamente nas PDFs — pessoas obrigadas a se deslocar por uma série de fatores e circunstâncias adversas, cuja condição jurídica é muitas vezes indefinida, mas que necessitam de proteção. Algumas das categorias de PDFs incluem os seguintes grupos.
Pessoas Deslocadas Internamente (PDIs)
O termo deslocados internos refere-se a pessoas que foram forçadas a fugir dentro do próprio país devido a conflitos, guerras, desastres naturais ou colapsos econômicos. A principal característica que distingue os deslocados internos é que eles não cruzam fronteiras nacionais, mas são obrigados a deixar sua região de origem e se realocar para outras áreas dentro da mesma unidade geopolítica. Trata-se de um dos maiores grupos entre as pessoas deslocadas forçadamente (PDFs) no mundo. Não há leis ou normativas internacionais específicas para os deslocados internos, pois, tecnicamente, continuam sob a soberania e proteção do seu Estado-nação, mesmo que este esteja em colapso ou em zona de guerra. Os PDIs são incluídos na categoria de PDFs porque seu deslocamento ocorre sob pressão extrema e em razão da falta de recursos ou redes de apoio que lhes permitiriam buscar abrigo fora de suas fronteiras nacionais. Os deslocados internos são particularmente vulneráveis, pois não há órgãos governamentais ou leis nacionais que garantam sua proteção. Importante destacar que não se incluem aqui os migrantes internos que se deslocam voluntariamente dentro do próprio país por motivos socioeconômicos, educacionais, profissionais, familiares, comerciais, entre outros.
Refugiados
Os refugiados diferem dos deslocados internos (PDIs) porque deixam seu país de origem e cruzam uma fronteira internacional, passando a viver em outro país que não aquele em que nasceram ou do qual têm cidadania. Quando uma pessoa foge de seu país natal devido a temores fundamentados de perseguição ou morte, ela pode se qualificar para proteção segundo a Convenção de Genebra de 1951, além de outras formas complementares de proteção. Para que alguém seja reconhecido como refugiado, é necessário que sejam atendidos os quatro critérios estabelecidos no Artigo 1 da Convenção de Genebra: a) Deve haver um temor bem fundamentado; b) Esse temor deve se basear em pelo menos um de cinco motivos: raça, religião, nacionalidade, pertencimento a um determinado grupo social ou opinião política; c) A pessoa não pode obter proteção em nenhum outro lugar; d) A pessoa está incapacitada ou teme pela própria vida caso retorne ao seu país de origem2. Aqueles que conseguem comprovar que se enquadram nessa definição legal restrita podem receber o status oficial de refugiado. Em certos contextos, são chamados de “refugiados da Convenção” e representam apenas uma pequena parcela do total de pessoas deslocadas forçadamente.
Solicitantes de refúgio
Um solicitante de refúgio é uma pessoa que apresenta um pedido de proteção em outro país ou que chega a esse país solicitando ser reconhecida como refugiada. O termo também inclui aqueles que estão aguardando a decisão oficial sobre sua solicitação. Nem todo solicitante de refúgio será reconhecido como refugiado, mas todo refugiado, em algum momento, foi um solicitante de refúgio. A maioria dos refugiados e solicitantes de refúgio se desloca por motivos não econômicos, e geralmente não pode ou não deseja retornar ao seu país de origem devido a ameaças como guerra, conflito, violência, perseguição, genocídio ou desastres naturais. Os solicitantes de refúgio buscam proteção de outro Estado, com base em seu território, diante de situações de perseguição ou grave ameaça à vida em seu país de origem. O status de refugiado envolve aspectos como o princípio de não devolução (non-refoulement), permissão de permanência no país de refúgio e padrões humanitários de acolhimento e tratamento.
Vulneráveis
As pessoas vulneráveis mencionadas em documentos normativos e legislações incluem indivíduos como apátridas, menores desacompanhados e vítimas de tráfico de pessoas. São consideradas populações de interesse e compartilham diversas características com os deslocados forçados. Apesar de não possuírem status legal ou vínculo reconhecido com o local onde residem, encontram-se em situação de extrema vulnerabilidade e necessitam de proteção com base na dignidade humana universal e na salvaguarda contra leis e práticas políticas e socioeconômicas injustas.
Refugiados Climáticos
Quando pessoas são forçadas a deixar suas casas, comunidades ou países devido aos efeitos das mudanças climáticas, elas se tornam refugiados climáticos. Esses deslocamentos podem ocorrer dentro do próprio país — com a mudança para outras regiões — ou através de fronteiras internacionais, em busca de segurança e meios de subsistência. Também são conhecidos como refugiados ambientais ou migrantes por eventos climáticos extremos. Esta é uma nova e crescente realidade global, impulsionada por fatores como o aquecimento global, incêndios florestais, desmatamento, desertificação, desastres naturais, fome, secas, inundações costeiras, tsunamis, ilhas submersas, derretimento de geleiras, padrões climáticos irregulares, terremotos, erupções vulcânicas, entre outros. A frequência e intensidade desses fenômenos têm gerado um número crescente de mortes e impactos econômicos sem precedentes. As condições climáticas comprometem meios de subsistência e obrigam muitas pessoas a buscarem locais mais habitáveis no mundo. Embora o termo refugiado climático seja utilizado desde 1985, esse tipo de deslocamento é considerado uma das supercrises do século XXI, pois tende a forçar mais pessoas a migrarem por questões de sobrevivência do que qualquer outra causa de deslocamento forçado.
Indocumentados
Aqueles que entram em países sem documentação oficial, bem como os que vivem de forma não registrada e sem autorização legal, são frequentemente chamados de pessoas em situação migratória irregular ou migrantes indocumentados. Embora esse não seja um termo jurídico oficial, ele abrange tanto aqueles que aguardam registro como solicitantes de refúgio quanto aqueles que tiveram seus pedidos negados, incluindo pessoas que fogem de condições econômicas extremas em seus países de origem. Essas pessoas são, por vezes, classificadas como migrantes “irregulares” ou “ilegais” devido ao seu ingresso clandestino e à situação migratória indefinida no país de destino. Muitas vezes, utilizam rotas e meios não oficiais, como redes de tráfico de pessoas ou contrabando de migrantes, o que contribui para que sejam erroneamente rotuladas como ilegais, estrangeiros indesejados ou outros termos pejorativos. Contudo, existem dispositivos legais que garantem o direito de solicitar refúgio e proteção, e, enquanto esses processos estiverem em andamento, a pessoa não pode ser considerada ilegal. O status de indocumentado reflete a complexidade dos processos migratórios e os motivos diversos que envolvem o deslocamento forçado. Uma pessoa pode iniciar sua jornada como refugiado e, diante de barreiras legais ou burocráticas, ser forçada a viajar sem documentos e permanecer em situação invisível. Da mesma forma, uma migração inicialmente motivada pela busca de trabalho ou por uma vida melhor pode se transformar em uma tentativa desesperada de sobreviver a condições perigosas e ameaçadoras. As distinções entre migrantes regulares e pessoas em situação migratória irregular são, muitas vezes, difíceis de identificar superficialmente e variam amplamente entre os países. Essas diferenças estão geralmente relacionadas à documentação legal, reconhecimento social, autorização para trabalho, acesso a serviços de saúde e possibilidades de regularização ou obtenção de cidadania.
Outros termos relacionados
Além das subcategorias mencionadas de pessoas deslocadas à força (PDFs), há outros grupos que, embora vivenciem situações similares, enfrentam condições muito distintas de deslocamento. Entre eles estão: pessoas detidas, deportadas, evacuadas, estrangeiros em situação irregular, pessoas que ultrapassaram o tempo de permanência do visto, repatriados, retornados, crianças nascidas de imigrantes não autorizados, pessoas traficadas ou contrabandeadas, escravizadas sexualmente ou submetidas a trabalho análogo à escravidão. Frequentemente, todas as pessoas deslocadas que fogem em busca de proteção são vistas como um fardo e retratadas de forma pejorativa pela mídia. São rotuladas e tratadas de forma desumana devido à dificuldade em se definir ou compreender suas situações específicas. Enfrentam discriminação com base em sua raça, gênero, religião ou país de origem. Essas pessoas devem ter assegurada a liberdade de professar sua religião e oferecer educação religiosa a seus filhos. Ao mesmo tempo, têm deveres em relação ao país que as acolhe, como obedecer às leis e regulamentos locais, bem como às medidas destinadas à manutenção da ordem pública. Como o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) não possui poder para fazer cumprir as disposições da Convenção de 1951, não há órgãos oficiais para fiscalizar o descumprimento nem mecanismos formais para apresentação de denúncias individuais.
Na ausência de um status legal, é fácil que essas pessoas sejam estigmatizadas, rotuladas, estereotipadas e mal compreendidas. É fundamental distinguir aquelas que são forçadas a se deslocar de outros grupos migratórios que deixam seus países por escolha e seguem procedimentos específicos de relocação, sendo, por isso, percebidos de forma distinta pelas sociedades de acolhimento. As narrativas de deslocamento e as experiências de exclusão moldam a identidade Como todas as outras comunidades da diáspora, suas histórias de deslocamento moldam suas lutas identitárias, suas experiências de alteridade e a criação de gerações futuras, mantendo múltiplos vínculos geoculturais e linguísticos que desempenham um papel vital na formação do cristianismo global do século XXI.
Contexto histórico
Em 1948, a Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que define os direitos fundamentais de todo ser humano. Entre esses direitos estão a igualdade, a liberdade e a segurança, incluindo a liberdade de locomoção, o direito de buscar asilo e a proteção contra prisão ou detenção arbitrária. A Convenção de Genebra de 1951, juntamente com seu Protocolo de 1967, concentrou-se especificamente na proteção de refugiados e estabeleceu uma definição internacionalmente reconhecida para o termo, além de normas para sua proteção. O princípio central desses acordos é que ninguém pode ser devolvido contra a sua vontade a um país onde possa correr risco, especialmente em casos de pessoas que fogem de conflitos ou perseguições. Com o apoio de outros tratados adicionais, esses documentos forneceram aos Estados uma base jurídica para a concessão do status de refugiado, fundamentada em valores humanitários, orientando a resposta estatal aos deslocamentos forçados e garantindo, por exemplo, viagens sem visto para portadores de documentos de viagem de refugiado.
Em 1969, a Convenção da Organização da Unidade Africana (OUA) ampliou os critérios de proteção a refugiados ao incluir outros fatores que ameaçam o bem-estar das pessoas. A hospitalidade estava na raiz da resposta africana, mas o grande número de deslocados na região dificulta o enfrentamento por parte de cada país. De forma semelhante, na América Latina, a Declaração de Cartagena de 1984 também expandiu a definição de refugiado para incluir situações que afetem a vida, a liberdade e a segurança das pessoas. O documento reforçou a difícil situação dos deslocados internos (IDPs), o direito ao asilo, o princípio do não-devolução (non-refoulement) e a importância da reunificação familiar. Essas respostas regionais evidenciam as limitações da Convenção de Genebra, especialmente sua definição estreita, individualizada e técnica. Ao fazer isso, reconheceram a complexidade crescente dos deslocamentos forçados, agora abrangendo um amplo espectro de pessoas, inclusive aquelas em situação irregular ou indocumentada. Até 2020, 146 Estados-membros haviam ratificado as convenções e obrigações mencionadas.
Com a constante redefinição de fronteiras e reconfiguração de governos ao redor do mundo, as questões relacionadas ao deslocamento humano cresceram consideravelmente. Em 2001, a Aliança Evangélica Mundial (WEA) reuniu diversas organizações e ministérios cristãos em Esmirna, Turquia, para uma consulta sobre refugiados, levantando a pergunta: “O que podemos fazer juntos que não conseguimos fazer sozinhos?”. Como forma de apoiar cristãos que atuam em contextos de deslocamento forçado, foi criado o documento “Melhores Práticas para o Ministério com Refugiados”, posteriormente revisado em 20153. Desde então, diversas redes e ministérios surgiram ao redor do mundo, como a Refugee Highway Partnership (RHP), com redes regionais em diferentes continentes, com o objetivo de promover um cuidado integral, educar a igreja global sobre como responder às necessidades de refugiados e atuar em defesa de seus direitos4. Para aumentar a conscientização contínua sobre a situação dos refugiados e os ministérios voltados para esse público, a RHP, em cooperação com a WEA, designou um final de semana de junho como o Domingo Mundial do Refugiado e desenvolvendo diversos recursos para serem utilizados por congregações em todo o mundo.
O Comitê de Evangelização Mundial de Lausanne (como o Movimento Lausanne era então chamado) realizou um Fórum Global em Pattaya, na Tailândia, em 2004, e elaborou um documento de referência intitulado “The New People Next Door” (LOP #55), sobre comunidades da diáspora e estudantes internacionais5. Na mesma ocasião, outro artigo focou especificamente nos refugiados, intitulado “At Risk People” (LOP #34)6. Anteriormente, em 1980, durante uma mini-consulta, Lausanne já havia produzido um documento que tratava diretamente do tema “Christian Witness to Refugees” (LOP #5)7. Esses documentos tiveram um papel fundamental no desenvolvimento do ministério entre refugiados em todo o mundo. No entanto, à medida que a questão do deslocamento forçado cresceu significativamente nas últimas duas décadas — tornando-se mais complexa e global —, surgiu a necessidade de desenvolver um documento mais aprofundado, baseado em uma compreensão evangélica sobre os povos deslocados no mundo. De fato, os diferentes tipos de migração humana têm exercido um impacto estratégico e de longo prazo na expansão e na formação do cristianismo contemporâneo em todo o mundo, e continuarão a fazê-lo nas próximas décadas e séculos.8
Uma rede de destaque que atua na questão do deslocamento forçado é a Rede Global da Diáspora (Global Diaspora Network – GDN), que é a rede temática oficial do Movimento Lausanne9. Desde sua criação, em 2010, a GDN tem focado em três grandes áreas: migrantes econômicos, estudantes internacionais e refugiados. A rede convocou importantes consultas regionais e globais anualmente em quase todas as principais regiões do mundo, sempre incluindo diferentes grupos de povos deslocados forçadamente (PDFs). A GDN tem sido fundamental no desenvolvimento de uma ampla gama de publicações usando lentes missiológicas e teológicas relacionadas à migração global e a diversas comunidades da diáspora10. A GDN trouxe missões de migrantes, missões da diáspora e missiologia da diáspora para a vanguarda da educação em seminários e treinamento missionário globalmente, e impulsionou ministérios e treinamento de liderança para comunidades de migrantes, refugiados e da diáspora em todo o mundo. A GDN desenvolveu um aplicativo móvel chamado GMove para conectar e fornecer recursos a líderes de ministérios virtualmente.
Realidade atual
O Congresso de Lausanne, realizado na Cidade do Cabo em 2010, identificou “pessoas em movimento” como uma área estratégica de foco missionário para a igreja global. Este foi um chamado profético e, desde então, tem havido um aumento constante na migração e nos refugiados em todo o mundo. O deslocamento humano tornou-se uma questão de âmbito mundial — um desafio global que transcende as fronteiras nacionais e afeta a humanidade em larga escala — e impactará a missão de Deus nas próximas décadas.
Nos últimos dez anos, aproximadamente, milhões de pessoas foram deslocadas por guerras e conflitos em Mianmar, África Central, República Democrática do Congo, Etiópia, Sudão, República Árabe Síria e, mais recentemente, na Ucrânia e em Gaza. Além desses, há grandes desastres ambientais e climáticos no Paquistão, Bangladesh, Índia, China, Brasil, Filipinas e Colômbia, bem como enormes terremotos na Turquia e no norte da Síria. Juntos, esses desastres constituem os principais focos de deslocamento humano atualmente. Incêndios e inundações na Austrália, América do Norte e Europa forçaram muitas pessoas a deixarem suas casas. Ilhas afundaram ou foram totalmente despovoadas no Pacífico e no Caribe, e tsunamis no Oceano Índico ameaçaram milhões de pessoas a se mudarem para terras mais altas ou buscarem abrigo no exterior. O colapso da economia venezuelana levou quase um quinto de toda a população a ir para o exterior, e as pessoas continuam a sair a uma taxa média de 2.000 por dia. Além disso, a confusão e a incerteza geradas pelo deslocamento têm se convertido em importantes ferramentas políticas nos percursos das caravanas humanas que se dirigem à Europa e à América do Norte. É fundamental destacar que os principais países de acolhimento de PDFs estão majoritariamente no Sul Global, e não na Europa ou na América do Norte.
De acordo com o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), no final de 2023, havia um total de 117,3 milhões de PDFs no mundo, resultantes de PDIs (68,3 milhões), refugiados (37,6 milhões), asilados (6,9 milhões), apátridas (4,4 milhões em 95 países) e pessoas que necessitam de proteção internacional (5,8 milhões). Cerca de 40% (47 milhões) dos PDFs são crianças menores de 18 anos e, nos últimos cinco anos, 3 milhões de crianças nasceram como refugiadas. Setenta e três por cento dos refugiados vêm de apenas cinco países: Afeganistão (6,4 milhões), Síria (6,4 milhões), Venezuela (6,1 milhões), Ucrânia (6 milhões) e Sudão do Sul (2,3 milhões). A maioria dos PDFs foi acolhida em países próximos, como Irã (3,8 milhões), Turquia (3,3 milhões), Colômbia (2,9 milhões), Alemanha (2,6 milhões) e Paquistão (2 milhões).

A ACNUR identifica três soluções possíveis para as PDFs: a) retornar ao seu país de origem, b) reinstalar-se em um terceiro país, ou c) permanecer e se naturalizar no país de acolhimento. Pouquíssimas pessoas encontram uma dessas soluções. Em 2023, apenas uma fração de 1% dos refugiados pôde ser reassentada em um novo país. A grande maioria — 75% dos PDFs — é acolhida por países pobres ou de renda média, e os países menos desenvolvidos acolheram 21% dos PDFs em 2023. 1,2 milhão de refugiados retornaram ao seu país de origem e 158.700 foram reassentados em outras nações em 2023.11
Para muitas pessoas, imagens de deslocados à força trazem à mente pessoas desesperadas, sem esperança, ilegítimas, indefesas, incivilizadas e incultas, e até mesmo indignas e violentas. Essas imagens retratam os PDFs como indivíduos dependentes de outros, que não conseguem tomar decisões por si próprios e que roubam recursos valiosos das comunidades que os acolhem. Isso sugere erroneamente que os PDFs são incapazes e precisam do favor e da assistência de outros. Esses são mitos e mentiras que estão longe da verdade. Os próprios PDFs sabem que seus sonhos foram destruídos e perderam todo o senso de pertencimento. A pergunta persistente em suas mentes é: “Onde é meu lar? Como vou sobreviver a este dia?”. Eles perderam a voz e estão à mercê de agências humanitárias, que podem ter várias suposições sobre eles. Essas organizações se consideram especialistas em PDFs, mas podem até mesmo propagar os mitos sobre eles.
Como resultado, milhões de PDFs estão definhando em campos de refugiados em todo o mundo. Sejam reassentados ou vivendo em campos de refugiados, os PDFs têm uma coisa em comum: traumas complexos e desesperança. Se não os ajudarmos a lidar com isso com segurança, nossos esforços não darão frutos e nos sentiremos desanimados, exaustos e traumatizados. Encontrar soluções duradouras é extremamente difícil. Embora o número de PDFs que conseguiram uma solução tenha aumentado no primeiro semestre de 2023 em comparação com o mesmo período do ano anterior, a igreja global pode — e deve — se envolver ativamente nessa crise crescente, mesmo que, por vezes, pareça que alcançar soluções definitivas seja quase impossível.
Caminhos para o Futuro
O ministério entre PDFs exige um mapa que ajude todos a encontrar seu caminho em meio a situações difíceis e, muitas vezes, ameaçadoras à vida. As Escrituras certamente oferecem a bússola para orientar esse mapa. No entanto, a cada nova era de deslocamento, esse roteiro precisa ser redesenhado, incorporando marcos antigos e novos ao longo do caminho. Alguns dos marcos presentes nesse mapa do deslocamento incluem lugares de perda, restauração, senso de pertencimento, sensibilidade do exílio, pessoas vistas como amigas ou como estranhas, além de culturas marcadas pela etnicidade ou pelo egocentrismo. O grau em que reconhecemos e nos identificamos com esses marcos revela até que ponto lutamos para compreender, ou estamos dispostos a acolher, as PDFs.
A topografia ministerial do deslocamento forçado exige que todos os envolvidos se tornem observadores e ouvintes ativos, adotando uma postura de humildade. Esse é o exemplo do próprio Cristo, que renunciou a seu lugar no céu para vir a este mundo (Filipenses 2:6-7). Muitas igrejas podem não compreender plenamente as questões e necessidades daqueles que são impactados pelo deslocamento forçado. O aumento da presença desses novos vizinhos significa que as igrejas locais talvez precisem adaptar e contextualizar seu ministério para atender pessoas que enfrentam circunstâncias e necessidades muito específicas. Além disso, muitos dos que estão chegando ao Norte Global vêm de regiões do Sul Global onde o cristianismo tem crescido significativamente nos últimos anos, e estão trazendo consigo novas chamas de avivamento para lugares onde a fé tem enfrentado declínio.
Os refugiados são viajantes a caminho e, ao mesmo tempo, potenciais instrumentos e embaixadores da mensagem de Deus. As tempestades e os perigos não estão sinalizados em seus mapas de vida. Nesse mapa, as igrejas são como faróis, que indicam um caminho de segurança e esperança. A igreja e seu povo são como oásis e sentinelas no deserto, fontes de vida para aqueles que buscam refúgio, e que, ao mesmo tempo, também precisam profundamente da vida e da mensagem que Deus transmite por meio dos refugiados, solicitantes de refúgio e outras PDFs em suas jornadas. Os contornos e fronteiras desses encontros carregam tanto as bênçãos quanto as dores que acompanham os PDFs.
Assim como a terra é crucial para a compreensão do Antigo Testamento, o deslocamento também é crucial para compreender a maneira como Deus se move neste mundo, e o deslocamento forçado torna isso ainda mais urgente. Walter Brueggemann afirma na página inicial de seu tratado sobre a terra na teologia bíblica: “A sensação de estar perdido, deslocado e sem lar é persuasiva na cultura contemporânea. O anseio por pertencer a algum lugar, por ter um lar, por estar em um lugar seguro, é uma busca profunda e comovente.”12 Cada pessoa, ao longo do caminho, precisa ler e compreender o mapa do deslocamento. Por isso, a igreja não pode interpretar esse mapa da mesma forma que faria em outros contextos — e, muitas vezes, precisará lê-lo repetidamente até perceber o que Deus está fazendo no mundo.
Uma das preocupações deste artigo é que igrejas e cristãos considerem seu papel entre as pessoas em movimento. As políticas e estratégias adotadas para oferecer assistência podem, muitas vezes, reforçar uma imagem negativa dessas pessoas, ao retratá-las como dependentes da ajuda humanitária. Frequentemente, recorre-se ao discurso da divisão de fardos, o que acaba passando a impressão de que as pessoas deslocadas representam um fardo que outros precisam carregar. De fato, quando alguém está traumatizado, privado de sua dignidade e das necessidades básicas para a vida, há, sim, cargas a serem suportadas e necessidades a serem supridas. No entanto, enquanto seres humanos, essas pessoas também trazem contribuições valiosas para a sociedade, oferecendo novas perspectivas sobre resiliência, esperança, inovação e empreendedorismo — coisas das quais todos nós, desesperadamente, precisamos.
Experiências de Deslocamento Forçado
Relatos e histórias oferecem testemunhos em primeira mão sobre o deslocamento forçado, e as cinco categorias a seguir resumem, de forma ampla, essas experiências. Elas refletem tanto as causas profundas quanto a extensão e a complexidade das vivências das pessoas forçadamente deslocadas. Por um lado, essa experiência gera sofrimento e dificuldades; por outro, também revela a criatividade e a resiliência dessas pessoas. Acima de tudo, a experiência de cada pessoa em situação de deslocamento frequentemente encontra paralelos nas Escrituras.
Enfrentando a desesperança
Os PDFs enfrentam o estresse diário da fadiga física, das dificuldades financeiras, da perda de estudos e empregos, da corrupção e da falta de opções viáveis. Eles precisam encontrar uma saída para seus muitos problemas e tensões culturais, políticas e religiosas. Diariamente, enfrentam discriminação, perseguição, armadilhas culturais, conflitos de crenças e uma consciência profundamente atribulada.
Uma jovem, voltando da escola para casa, encontrou seus amigos no caminho e, ao passarem por uma manifestação, tiraram uma foto no local e postaram nas redes sociais, sem refletirem sobre as possíveis consequências. Dias depois, a polícia começou a rastrear pessoas ligadas ao protesto. Numa noite, quando as autoridades começaram a fazer buscas em seu bairro, sua família não teve outra escolha senão ajudá-la a fugir pela porta dos fundos e mandá-la para fora do país. De repente, ela se viu sozinha, com medo pela própria vida, sem alternativas, sem saber para onde ir ou em quem confiar. Ela se sentiu como uma ovelha perdida e orou pedindo que Deus a ouvisse e enviasse alguém para ajudá-la. Ela era como Agar, que fugiu para deserto, em uma situação aparentemente sem saída. No entanto, Deus a viu e enviou um anjo, que a encontrou junto a uma fonte de água e lhe trouxe cura. Então Hagar declara: “Tu és o Deus que me vê”” (Gênesis 16:13).
Enfrentando a violência e a morte
Os PDFs fogem de zonas de guerra, violência e condições de vida ameaçadoras. Vivem em uma terra de ninguém, de vulnerabilidade e desamparo, esperando em um limbo perpétuo, e a incerteza ameaça sua própria existência. Milhares empreendem jornadas perigosas por desertos e tentam cruzar os vastos mares em embarcações indignas, mas acabam fracassando. Inúmeras pessoas morreram ou desapareceram completamente da face da Terra. Um sobrevivente relatou: “Os perigos não são a parte difícil. Nos acostumamos a eles todos os dias. A parte difícil é não saber o que fazer a seguir”. Isto é como Marcos 4:35-41, quando os discípulos estavam em uma tempestade. Eles acordaram Jesus dizendo: “Não se importam, vamos morrer!” Jesus perguntou: “Por que vocês estão com tanto medo… vocês não creem?”. Esta é uma história relevante para refugiados que enfrentam a ameaça de conflito e morte. Muitos refugiados responderiam: “Sim, Senhor, eu sei que podes salvar a minha vida, mas ainda tenho medo todos os dias”. O povo de Deus em todo o mundo precisa ouvir testemunhos como este para saber que a esperança de Deus vem em meio às tempestades. Deus vê aqueles em condições de risco de vida e envia seu povo como amigos, tal como Jônatas, que encorajou Davi no deserto (1 Sm 20:3-16).
Lidando com traumas e vergonha
Não é possível compreender a experiência do deslocamento forçado sem abordar o trauma e a vergonha. O trauma se manifesta como situações psicossociais complexas de estresse agravado, perda de proteção, falta de segurança e bem-estar, desânimo pessoal, perigos, arrependimento, desamparo, medo, desilusão e pensamentos suicidas. Muitas pessoas deslocadas acabam em locais cercados por muros e cercas, que os separam de outras comunidades e servem como lembretes constantes de sua solidão, seus traumas e situações complexas e confusas pelas quais passaram. Povos deslocados vivem, por longos períodos, diante de muros que parecem sombras impossíveis de atravessar. São muros de vergonha a serem superados. Jesus rompeu muitas dessas barreiras ao se encontrar com a mulher samaritana no poço (João 4:1-29). Ele a encontrou quando ela estava sozinha e isolada. Não realizou um milagre, mas lhe ofereceu respeito. Ouviu suas perguntas e lhe deu o tempo necessário para construir confiança e reconhecer que Ele era o Messias. Transformada por esse encontro, ela proclamou em sua aldeia “Venham ver um homem que me disse tudo o que tenho feito!” (João 4:29). Dessa forma, Jesus atravessou o muro da vergonha que isolava aquela mulher, uma pessoa marginalizada dentro de sua própria comunidade.
Lutando pela dignidade
Essa é uma luta contra a discriminação e o preconceito. As PDFs enfrentam maus-tratos, prisões arbitrárias, enganos, encarceramento e manipulações que desumanizam e enfraquecem sua própria percepção de valor e dignidade. Em certa ocasião, um homem que havia perdido tudo foi deixado para viver em uma vala. Quando lhe perguntaram sobre isso, ele respondeu: “Eles podem me manter fora da terra deles, mas ninguém pode me afastar daquele que me criou.” Jesus fala sobre a chegada da justiça no Reino de Deus, dizendo: “Tive fome, e vocês me deram de comer; tive sede, e me deram de beber; fui estrangeiro, e me acolheram; estava nu, e me vestiram.” Mas seus discípulos perguntaram: “Senhor, quando foi que te vimos assim?” (Mateus 25:31-40). O Reino de Deus é uma questão de visão. Jesus frequentemente chama seus seguidores a terem olhos para ver. Precisamos aprender a enxergar o rosto de Deus nas outras pessoas. Esse tipo de ministério gera esperança e revela que Deus já está agindo — mesmo antes de nós chegarmos. Deus nos vê, mas a pergunta que fica é: onde e como nós estamos vendo o poder e a presença de Deus atuando no mundo?
Compreendendo as múltiplas dimensões do deslocamento
As histórias de PDFs envolvem passados marcados por dor, dilemas presentes e futuros incertos. Elas abrangem sofrimentos complexos, mas também revelam traços positivos como força mental, resiliência emocional, capacidade de resolver problemas, senso de justiça, determinação para perseverar e coragem para resistir. A realidade das experiências de deslocamento é cheia de nuances. Um grupo de PDFs que cruza uma fronteira pode ter motivações diferentes para a sua jornada, mas compartilha uma experiência comum. Essas vivências refletem, de certa forma, os efeitos do pecado no mundo — uma humanidade caída que perdeu seu caminho na criação de Deus. As Escrituras mostram como Deus, em meio a contextos de deslocamento, derrama graça e redenção para formar um reino e um povo para si. Muitas PDFs se reconhecem nas histórias da Bíblia. Assim, as experiências de deslocamento se tornam redentivas quando as pessoas percebem que os propósitos de Deus estão atuando em meio e através dos seus deslocamentos terrenos. Não apenas passam a compreender melhor o sentido de suas próprias jornadas de deslocamento, como também passam a enxergar Deus como um Deus em movimento, que caminha junto com os que estão em trânsito.
Pessoas Forçadamente Deslocadas na Bíblia
Deslocamentos de alguma forma são encontrados ao longo das páginas das Escrituras Cristãs. É algo tão recorrente que se pode afirmar que o deslocamento é um mega-tema da Bíblia. Seus personagens, enredos, narrativas, cenários, autores originais e leitores estão todos inseridos em contextos de diferentes tipos de deslocamento — de um lugar geográfico para outro. O tema do deslocamento é significativo tanto no Antigo quanto no Novo Testamento, e está tão profundamente entrelaçado nas narrativas bíblicas que funciona como uma metanarrativa e como um catalisador para a revelação divina e para a transformação de indivíduos, famílias e nações. Muitos desses deslocamentos ocorreram de forma involuntária ou sob coerção, dentro de contextos maiores de opressão, sofrimento, intervenção divina e, por fim, redenção. Nesta seção, os termos relacionados ao deslocamento estão destacados em itálico.
Há diversos exemplos de deslocamento forçado no antigo testamento. Adão e Eva foram expulsos do Jardim do Éden como castigo divino por sua desobediência (Gênesis 3:23-24). Caim, após assassinar seu irmão Abel, foi condenado a vagar pela terra, privado de comunidade, de segurança e das necessidades básicas (Gênesis 4:12-14). No episódio do grande dilúvio, Deus instruiu Noé a construir uma arca para salvar sua família e um casal de cada espécie de animais, essencialmente forçando-os a flutuar sobre as águas, isolados, por alguns meses (Gênesis 6–9). Na torre de Babel, a humanidade foi forçada a se dispersar por toda a face da Terra (Gênesis 11:8-9). Abrão, junto com sua esposa Sarai e seu sobrinho Ló, deixou sua terra natal, Ur dos Caldeus, e viajou rumo a uma terra desconhecida, vivendo grande parte de sua vida como nômade em terras estrangeiras (Gênesis 12:1-2). A serva egípcia de Sarai, Agar — que gerou Ismael para Abrão —, foi expulsa por sua senhora e, mais tarde, também fugiu, pressionada pela tensão e pelo assédio no ambiente doméstico (Gênesis 16:6-8). Jacó precisou fugir para Harã para escapar da ira de seu irmão Esaú (Gênesis 28:2-5). Posteriormente, enfrentando uma fome severa, ele e sua família foram forçados a se mudar para o Egito, onde seus descendentes acabaram sendo escravizados por um novo faraó (Gênesis 46:1-7). José, por sua vez, foi vendido como escravo por seus irmãos a mercadores midianitas (Gênesis 37:23-28). No Egito, mesmo alcançando uma posição de prestígio, foi depois falsamente acusado pela esposa de seu senhor e lançado na prisão (Gênesis 39:16-20). A Lei e os Profetas enfatizavam o amor e a hospitalidade para com estrangeiros. A ordem era clara: “O estrangeiro que reside entre vocês deverá ser tratado como um natural da terra. Amem-no como a si mesmos, pois vocês foram estrangeiros na terra do Egito” (Levítico 19:34).
O exemplo mais significativo é quando os israelitas estavam em cativeiro no Egito durante séculos. Deus enviou um libertador para resgatar eles na pessoa de Moisés e eles vagaram no deserto durante décadas a caminho da Terra Prometida (Êxodo 1-5). As leis das cidades de refúgio ofereciam asilo aos homicidas até que pudessem ser julgados e esta disposição aplicava-se a estranhos e peregrinos na terra (Números 35; Deuteronômio 19; Josué 20). Quando enfrentou a fome, Noemi foi forçada a migrar para Moabe, onde perdeu o marido e dois filhos, e mais tarde retornou para Israel com uma de suas noras estrangeiras que se tornou parte da linhagem de Davi e do Messias (Rute 4:17). Durante o reinado do rei Saul, Davi foi forçado a fugir e viver escondido em terras estrangeiras e entre tribos inimigas para escapar das tentativas de Saul de matá-lo (1 Samuel 21–26). Nesses momentos de perseguição, Davi cantava sobre encontrar refúgio em Deus, expressando sua confiança enquanto fugia de Saul, que procurava sua vida por inveja e medo (Salmos 7:1; 11:1; 16:1; 31:1; 46:1, entre outros). O salmista também recorda: “Quando eram poucos em número, de pouca importância e forasteiros na terra; andavam de nação em nação, de um reino para outro povo…” (Salmo 105:12-14). O próprio Templo de Jerusalém foi construído com a ajuda de estrangeiros residentes (1 Crônicas 22:1-2). Salomão realizou um censo de todos os estrangeiros que habitavam a terra e lhes designou tarefas específicas (2 Crônicas 2:17-18). Posteriormente, os habitantes das dez tribos do Reino do Norte de Israel foram derrotados e deportados pelo Império Assírio em 722 a.C. (2 Reis 17:5-6). Mais tarde, em 586 a.C., a cidade de Jerusalém e o Templo foram destruídos, e o povo de Judá foi levado ao exílio na Babilônia, onde viveram como cativos até que a conquista persa lhes permitiu retornar (2 Reis 25:11; Jeremias 52:28-30). O Exílio permanece como um dos eventos mais significativos da história do povo judeu, moldando profundamente sua identidade, suas Escrituras e sua teologia.
Os profetas do Antigo Testamento geralmente se deslocavam dentro da nação de Israel. Samuel transitava entre Ramá, onde vivia e exercia seu papel de juiz de Israel, e outros locais importantes, como Siló, onde a Arca da Aliança era guardada antes da construção do templo em Jerusalém. Enquanto o ministério profético de Isaías estava centrado em Jerusalém, dirigindo-se ao povo de Judá e às nações vizinhas, Jeremias enfrentou deslocamentos forçados ao ser lançado em uma cisterna e posteriormente levado contra sua vontade ao Egito por rebeldes judeus que fugiam temendo retaliação após o assassinato de Gedalias, um governador nomeado pela Babilônia (Jr 38:6). O ministério de Ezequiel ocorreu durante seu cativeiro na Babilônia (Ez 1:2; 2 Reis 24:10-18). A viagem de Jonas é a mais dramática: enviado por Deus a Nínive, ele tomou o caminho contrário, rumo a Társis, sendo forçado a mudar de direção por intervenções sobrenaturais para conduzir um avivamento em toda a cidade (Jonas 1-3). Todos esses ministérios proféticos exigiram deles interação com diversas tribos, enfrentamento de hostilidades e a proclamação de mensagens difíceis, ordenadas por Deus, enquanto navegavam pelos complexos cenários geopolíticos e socioculturais de sua época.
O tema do deslocamento forçado também está presente no Novo Testamento, especialmente quando consideramos que o ministério terreno de Jesus e a formação da igreja primitiva ocorreram sob o domínio do Império Romano. O Evangelho situa o nascimento de Jesus no contexto do decreto romano de recenseamento ordenado por César Augusto, que obrigava seus pais a viajarem até sua cidade de origem, Belém (Lucas 2:1-3). Logo após o nascimento, José recebe um aviso em sonho para fugir com Maria e o menino Jesus para o Egito, a fim de escapar do decreto real que determinava o massacre de todos os meninos em Belém. Eles viveram como refugiados nesse país vizinho até a morte de Herodes (Mateus 2:13-15). Os Evangelhos apresentam Jesus desafiando, de forma sutil e também explícita, a lógica de poder e as estruturas econômicas do Império Romano. Sua condenação e execução injusta por crucificação ocorreram pelas mãos das autoridades romanas. Jesus é apresentado como aquele que anuncia uma paz verdadeira e duradoura, em contraste com a falsa promessa da Pax Romana.
Todos os discípulos de Jesus, exceto João, foram perseguidos e mortos por causa de sua fé. Aqueles que foram dispersos pregavam a palavra por onde passavam (Atos 8:4). Uma das formas pelas quais o evangelho se espalhou no primeiro século foi justamente por meio de crentes que foram dispersos involuntariamente, como é o caso dos cristãos em Antioquia, onde, pela primeira vez, foram chamados de “cristãos” (Atos 11:36). O apóstolo Pedro escreveu suas cartas para minorias deslocadas, que viviam sob a opressão romana, enquanto ele próprio estava preso e sendo julgado em Roma (1 Pedro 1:1). A carta de Tiago é endereçada aos judeus que foram forçadamente “dispersos entre as nações” (Tiago 1:1). O apóstolo Paulo era fruto da diáspora judaica e grande parte de seu ministério e de seus escritos surgiu de suas extensas viagens, que incluíram conflitos, perseguições, naufrágios, prisões e encarceramentos, até ser, por fim, executado em Roma. Sua determinação e resiliência em anunciar o evangelho permaneceram, apesar da oposição implacável e de um enorme custo pessoal. Muito do zelo equivocado de Paulo pela fé que herdou, assim como seu encontro dramático com o Cristo ressuscitado — que moldou profundamente sua vida, seu ministério e seus escritos —, não pode ser plenamente compreendido sem considerá-lo como um fruto da diáspora judaica. Todas as suas cartas, endereçadas às recém-formadas comunidades dispersas, precisam ser lidas, interpretadas e entendidas a partir de uma sensibilidade diaspórica, uma vez que os primeiros leitores cristãos viviam sob as condições do império, sendo minorias perseguidas, sem poder socioeconômico ou político. O livro do Apocalipse foi escrito enquanto seu autor, João, estava exilado à força na colônia penal romana de Patmos. João encoraja seus leitores, também forçadamente deslocados, a resistirem à adoração ao imperador e a permanecerem firmes, mesmo diante da morte, certos de que serão vindicados quando Cristo retornar (Apocalipse 7:9).
Temas Teológicos
O deslocamento é um elemento central na compreensão da missão e revela a maneira pela qual Deus edifica sua igreja. O deslocamento forçado reflete a natureza da redenção de Deus em meio ao sofrimento e às provações. Assim como as Escrituras se desenrolam em diversas experiências de deslocamento, elas também conectam aspectos essenciais das doutrinas teológicas a essa noção. Isso significa que as doutrinas cristãs devem ser concebidas em termos dinâmicos, em movimento. Existem inúmeros temas diretamente relacionados às pessoas forçadamente deslocadas, como hospitalidade, shalom, exílio, restauração, amor ao estrangeiro, memória, luto, lamentação, sofrimento e esperança. Esta seção do artigo identifica vários temas fundamentais da teologia cristã que mantêm uma relação estreita com o deslocamento, e argumenta que a compreensão do deslocamento está enraizada nos pilares centrais da fé.
Diversas dimensões do deslocamento contribuem para o desenvolvimento de temas teológicos importantes. A Queda e a Expulsão do Jardim do Éden estabelecem as bases fundamentais da humanidade em movimento. O chamado à jornada feito aos patriarcas, como Abraão, desenvolve o papel da fé. O Êxodo e a fuga do Egito introduzem os aspectos relacionais da aliança, construídos a partir da consciência da provisão de Deus no passado, da esperança nas promessas futuras e das lutas diárias no presente. Essa dinâmica descreve de forma precisa os dilemas enfrentados atualmente pelas populações forçadamente deslocadas.
O relato do exílio na Babilônia e na Assíria descreve ainda mais a precariedade da vida e da identidade do povo de Deus que necessita de restauração. A vinda de Jesus como um estrangeiro neste mundo para tornar a redenção possível. Jesus se mudou do céu para a terra e até viveu brevemente como refugiado no Egito. A trajetória da salvação por meio de Jesus oferece um modelo para seus discípulos viverem como estrangeiros e forasteiros neste mundo. Enquanto o apóstolo Pedro lutava com o fardo de sua vida anterior e o peso de seus deslocamentos na vida adulta, a vida de Paulo como judeu da diáspora e seu ministério foram marcados por constantes movimentos. Como todas as pessoas deslocadas, os seguidores de Cristo são chamados a viver como estrangeiros neste mundo, com uma visão escatológica do mundo vindouro. A noção de deslocamento está no cerne de toda atividade missionária e é fundamental para a compreensão da missão de Deus no mundo. A seguir, são apresentados seis breves referenciais teológicos que podem contribuir significativamente para o desenvolvimento de uma missiologia voltada às populações forçadamente deslocadas:
Deus em movimento
A ideia de Deus em movimento e movimento em Deus é fundamental para conceber um Deus trinitário e missionário.13 É uma maneira de compreender o reinado soberano de Deus e suas atividades contínuas em nossas vidas e no mundo. Isso torna o Deus da Bíblia vivo e atuante no mundo, diferentemente de ídolos sem vida e imóveis que precisam ser carregados de um lugar para outro por seus devotos (Jr 10:5). Essa ideia de um Deus em movimento torna o ser divino capaz de amar e se relacionar, afetando assim a comunhão entre a Criação e o Criador. Como Filho de Deus, Jesus se movimenta ao assumir a carne humana, como aquele que se humilha, se esvazia, é cheio de compaixão e sofre para redimir a humanidade caída. Além disso, Deus estabelece o reinado do seu Reino, principalmente por meio da dispersão e do deslocamento do seu povo, conduzindo-o a todas as nações.
O Deus em movimento é o ponto de partida para o ministério entre e junto às populações forçadamente deslocadas no mundo. Além das dimensões já mencionadas, esse Deus em movimento se revela como o Bom Pastor, que busca as ovelhas perdidas e dispersas, traze-as de volta e cuida das que estão feridas (Ez 34:11-12; Lc 15:4). A ação de Deus também se manifesta na mulher que procura com diligência até encontrar a moeda perdida (Lc 15:8) e no pai que corre ao encontro do filho rebelde para acolhê-lo e restaurá-lo quando ele volta para casa (Lc 15:20). Da mesma forma, o Bom Samaritano socorre o homem ferido que caiu nas mãos de ladrões, tratando suas feridas, levando-o a um lugar seguro e arcando com seus cuidados (Lc 10:33-35). Por fim, há a imagem do próprio Cristo, que assumiu a forma de servo — ou de um escravo deslocado. A encarnação pode ser compreendida como um deslocamento divino, no qual Cristo se movimenta do céu para a terra e torna possível a salvação (Fp 2:5-8).
Algumas dessas imagens fazem alusão à celebração, que também representa um movimento do luto e da dor para a alegria e a gratidão. Todas elas ressaltam o movimento que ocorre em favor da restauração divina. Deus ama e se age para transformar o mundo, formando um povo e estabelecendo o seu Reino. Andrew Walls observa que, nas Escrituras, Deus usa a migração tanto de forma involuntária e punitiva quanto de maneira voluntária e motivada pela esperança — mas, em ambos os casos, são movimentos redentivos14. O deslocamento é um movimento redentivo, pois está diretamente conectado à missão e aos propósitos de Deus. Deus está em movimento em direção às nações e chama as pessoas a se movimentarem em direção a si. O deslocamento insere as pessoas na trajetória de Deus, conduzindo-as por uma jornada de encontros, cruzamentos e mudanças de direção. A fórmula da missão e dos propósitos de Deus também é uma fórmula de movimento: arrepender-se e seguir. O arrependimento é uma mudança de direção, e aqueles que seguem a Cristo se movimentam como Ele primeiro se movimentou: para amar, servir, chamar e celebrar o retorno para casa.
A Trindade
A concepção trinitária de Deus na teologia cristã torna possível a vivência da socialidade e da comunhão. A Trindade ressalta a natureza viva e relacional do ser divino. Alguns dos elementos centrais da teologia trinitária, que são especialmente relevantes para o ministério no contexto do deslocamento, são: a) Há um só Deus em três pessoas. Deus não está dividido em partes complexas. b) Deus é sempre o sujeito da Trindade, com os nomes Pai, Filho e Espírito Santo. São três pessoas plenamente ativas, completas e plenas. c) Eles sempre atuam juntos como um só e nunca estão em competição entre si nem com a criação. d) Deus está sempre a nosso favor.
Esses princípios nos lembram que, no deslocamento, não há situação complexa ou impossível demais para Deus. A Trindade demonstra como as diferentes partes no deslocamento também podem encontrar plenitude, vida e comunidade juntas. No relato de Gênesis, vemos essas diferentes partes em ação. Deus vê, chama, separa, faz, coloca, cria, abençoa e muito mais. O Espírito de Deus se move sobre a superfície (Gn 1:2). Referências à Trindade também aparecem ao longo dos escritos de João, que explica que o Verbo estava com Deus no princípio e nada se fez sem ele (Jo 1:2-3). Independentemente de serem ou não expressões da Trindade, o relato da criação estabelece o Deus único que cria plenamente o mundo e a humanidade em harmonia uns com os outros.
Princípios trinitários como estes são assimilados por meio do constante exercício da vida de fé e de sua proclamação15. A unidade do Deus Único, expressa na Trindade, se manifesta no movimento contínuo das três pessoas, que se entrelaçam em perfeita harmonia. Não há alianças nem triteísmo, mas uma comunhão perfeita, na qual cada pessoa se relaciona plenamente com as outras. Na criação, a Trindade se faz evidente, pois, quando uma das pessoas está agindo, as outras duas estão igualmente presentes. Nenhuma age isoladamente. Jesus afirma que segue o mandamento do Pai por iniciativa própria (Jo 10:18) e que Ele e o Pai são um (Jo 10:30). O mandamento e a obra do Pai se realizam por meio do Filho e se completam no Espírito Santo.
Já na complexa diversidade da criação, em Gênesis, a Trindade está em ação, sustentando todas as coisas, unindo opostos e conectando diferentes elementos. A santa comunhão da Trindade torna-se um paradigma para a família humana. No entanto, o que acontece após a Queda, no contexto do deslocamento forçado, quando a pessoa levanta perguntas como as do Salmo 22: “Por que me abandonaste? Por que não respondes?” Quem é Deus, agora, para a pessoa deslocada, e onde ela pode perceber Deus agindo?
Os desafios do deslocamento forçado se tornam pequenos quando comparados à realidade da Trindade. As diferenças na Trindade são infinitamente maiores do que aquelas enfrentadas no deslocamento forçado. A Trindade oferece um mapa para atravessar fronteiras e superar as diferenças imensuráveis entre as pessoas. Deus transcende este mundo e, ao mesmo tempo, entra nele vindo de fora; e habita o mundo e cada lugar onde estão aqueles que foram forçadamente deslocados. Por isso, não existe lugar tão baixo, tão alto, tão escuro ou tão distante que esteja fora da presença de Deus. A luz e as trevas são a mesma coisa para Deus (Salmo 139). A Trindade mantém esses opostos unidos e torna o impossível possível.
A imagem de Deus
A imagem de Deus acompanha a humanidade desde a Criação. Deus insere a imagem em cada pessoa para estabelecer o valor, a importância e a dignidade dos seres humanos. Para a pessoa deslocada, a imagem de Deus serve como o único elo restante com o criador quando tudo se perde. A imagem de Deus é parte essencial da pessoa, pois lhe confere um senso de identidade e pertencimento. No princípio, antes de Deus criar o homem e a mulher à sua imagem e semelhança (Gn 1:26), o mundo era sem forma (Gn 1:2). Nesse vazio, Deus começou a colocar todas as estruturas da criação em seus lugares e, então, finalmente, adicionou a humanidade como imagem e semelhança de Deus. A imagem então coroa a criação, conferindo ao homem e à mulher a estrutura essencial necessária para encontrarem sentido no mundo e comunhão com Deus16. Jesus disse que a essência da lei é amar a Deus e amar ao próximo (Mc 12:29-31), e, da mesma forma, a imagem de Deus é a essência da criação.
Assim como existe uma compreensão estrutural essencial da imagem de Deus, existe também uma compreensão representativa e relacional. Essa compreensão enfatiza que o homem e a mulher são criados para viver em comunidade um com o outro e com Deus. A unidade da pessoa encontra-se, então, na imagem de Deus, que, por sua vez, flui da unidade de Deus, que diz: “Façamos” o homem e a mulher à “Nossa” imagem.17 Karl Barth diz: “A imagem não consiste em nada que o homem seja ou faça. Consiste no fato de que o próprio homem é criação de Deus. Ele não seria homem se não fosse a imagem de Deus. Ele é a imagem de Deus por ser homem.”18 Criados à imagem e semelhança de Deus, os seres humanos funcionam como representantes do Deus invisível. A imagem encontra sua expressão por meio da atividade e da função de representar Deus. A imagem de Deus torna a pessoa plenamente capaz de funcionar dessa maneira como um ser completo, sem distinção de corpo ou espírito.
No entanto, após a Queda, a imagem foi distorcida e quebrada, e a humanidade foi deslocada, exilada e banida de sua morada com Deus (Gn 2:23-24). Desde esse primeiro deslocamento da humanidade, cada pessoa perdeu e deixou para trás tudo aquilo que a tornava completa e em paz na criação. As consequências da Queda incluem a perda do lugar, acompanhada por uma busca e um vagar incessantes, assassinatos, violência, terror e medo, que só um dilúvio poderia purificar, em uma espécie de descriação19. As narrativas das Escrituras relatam uma série de deslocamentos, em que os seres humanos são rejeitados e sem lar. Essa experiência não é diferente do deslocamento vivido por muitos hoje.
A imagem de Deus, embora fragmentada e quebrada, não se perdeu, e é a única coisa que uma pessoa carrega consigo através de muitos deslocamentos deste mundo. Dessa forma, a imagem de Deus continua a conectar a pessoa ao Criador. Muitas pessoas deslocadas que perderam suas vidas anteriores poderão perguntar: “Quem sou eu agora?” e “Para onde irei a seguir?”. Essas são perguntas relacionadas à imagem de Deus. Quem é essa pessoa agora, já que todas as estruturas, família e comunidade anteriores se foram? E para onde ela irá para reconstruir sua vida e encontrar uma nova comunidade? Particularmente, quando uma pessoa é deslocada à força, há um profundo sentimento de perda, tristeza e injustiça. A imagem de Deus é essencial para uma identidade renovada, para o bem-estar emocional e para a integridade do ser. Ela é a semente da nova humanidade realizada em Cristo (João 12:44-45; Cl 1:13-15). Isso torna as pessoas deslocadas veículos fundamentais e representantes da graça de Deus e de seu plano redentivo. Assim como a Trindade, a imagem de Deus é uma pedra angular para a interação missionária em um mundo marcado pelo deslocamento.
A presença de Deus
O homem e a mulher foram enviados ao mundo após a expulsão do Jardim. No entanto, sendo criados à imagem de Deus, a expulsão também significa que eles carregam a presença de Deus consigo para o mundo. A presença de Deus estava na primeira expulsão como uma promessa da provisão de Deus no mundo. Deus estava com José quando ele foi vendido como escravo (Atos 7:9) e habitou entre o povo enquanto atravessavam o deserto (Êx 29:45, Êx 40:34, Is 63:11,14). A presença divina guia, supre, conforta, dá descanso e traz esperança e coragem. A presença traz bênçãos e torna possível a paz divina, a proteção e a providência. Assim como Abraão iniciou sua jornada com base na promessa de Deus, o crente tem a esperança de Cristo como a mesma promessa e presença de Deus (Hb 6:13-15,18). O deslocamento torna difícil ver a presença de Deus, mas Deus não abandonou o deslocado. Por meio da encarnação, Jesus veio habitar com a humanidade como Emanuel (Deus conosco). Nisso, Deus se movimenta em direção ao sofrimento humano e está presente em todo sofrimento. Falar da presença divina de Deus no deslocamento forçado significa que Deus vê, ouve e cuida — mesmo daquele que está sozinho em um país estrangeiro, vagando pelo deserto, à deriva no mar ou encarcerado.
Em Mateus 25, próximo ao fim do seu ministério terreno, Jesus explica a natureza de seu retorno e que a entrada no Reino será uma questão de visão. Quão bem enxergamos Deus no rosto dos outros em necessidade — no estrangeiro, no doente e no preso? O ministério em um mundo marcado pelo deslocamento forçado reconhece a presença de Deus naqueles que nos são enviados como estrangeiros e vizinhos. Deus vê, ouve e cuida, mas quão bem nós vemos e ouvimos a Deus? Quão bem estamos seguindo e exemplificando esses elementos que estão no cerne da nossa fé em Deus? Talvez precisemos de mais oportunidades para estar na presença de Deus. Da mesma forma, às vezes é mais valioso apenas estar presente com uma pessoa. A presença de Deus é a base para compreender a provisão divina e o significado da cruz em nossas vidas. Se temos dificuldade para perdoar nossos inimigos ou para nos conectar com os estrangeiros e aqueles que são diferentes de nós, talvez precisemos revisitar nossa compreensão da presença de Deus, da Trindade e da imagem de Deus.
A missão de Deus
A missão de Deus que permeia toda a Escritura ocorre por meio do deslocamento, primeiro do Filho de Deus e, depois, do povo de Deus. O deslocamento é mais do que uma exceção ou uma crise a ser resolvida. É o modo pelo qual Deus escolheu transformar e estabelecer seu povo e seu Reino. Desde a expulsão do Jardim, o plano de redenção de Deus tem incluído estrangeiros e nações. Assim, Deus é um Deus missionário cujo coração pulsa por todas as pessoas, em todos os lugares.
Os ministérios de Elias e Eliseu demonstram esse coração no cuidado com a viúva e o leproso Naamã, ambos estrangeiros fora da nação de Israel. Desde o início, o plano de Deus tem sido trazer as nações de volta para si. A inclusão das nações no plano de Deus foi uma missão fora do comum, além do que a maioria das pessoas poderia imaginar. A missão de Deus por meio de Jesus não é algo rotineiro, e ele enfrentou oposição desde o começo (Lc 4:28-30). Jesus desenvolve a compreensão do Reino de Deus como um espalhar de sementes (Mt 13:3-9), evocando a imagem do deslocamento e da dispersão. O deslocamento é o plano de construção para o Reino de Deus. Em sua jornada para a cruz, Jesus “voltou o rosto para Jerusalém” (Lc 9:51), aprofundando sua trajetória missionária no mundo. O plano de Deus significa que nossa missão é amar a Deus e amar ao próximo (Lv 19:33). Ao se deslocar em direção às nações, Deus chama as pessoas a se movimentarem em direção a ele. Portanto, o deslocamento é um movimento missionário. Abraão seguiu o chamado de Deus sem saber para onde ia (Gn 12:1; Hb 11:8) e aprendeu que a jornada da fé é vida em plenitude. Deus movimenta as pessoas por meio da trajetória do deslocamento, em uma jornada de mudanças interseccionais e direcionais.
Abraão aprendeu que a jornada da fé é vivificante. As jornadas missionárias de Paulo começam com o deslocamento (Atos 9:23-30), e o deslocamento está no cerne da defesa de Paulo diante de Agripa em Atos 26. Paulo faz referência às suas viagens, deslocado entre as nações para a missão de Deus (Romanos 1:1-6). Ele vê a força do deslocamento e das dificuldades como a maneira de Deus levar a missão adiante (1 Coríntios 16:3-12). Dessa maneira, Paulo desenvolve a compreensão de que missão e mobilidade humana andam juntas. Paulo evoca a imagem dos cristãos como prisioneiros deslocados em uma procissão triunfal que serve à missão e à estratégia do reino de Deus (2 Coríntios 2:14-17). As dificuldades que acompanham o deslocamento, enfatizam como Deus cumpre sua missão em todos os lugares e apesar de todos os obstáculos. Argumentando contra seus acusadores, Paulo inverte as expectativas normais de uma missão bem-sucedida para enfatizar a natureza extraordinária da graça que Deus emprega em situações de fraqueza, como sua própria fuga e deslocamento de Damasco (2 Co 11:30-33).
Hospitalidade
No Novo Testamento, as palavras gregas para hospitalidade e hospitaleiro são philoxenia e philoxenos, e as raízes dessas palavras significam “amor por estranhos ou estrangeiros.” Essas palavras gregas nos lembram outro termo frequentemente usado hoje em dia: xenofobia, que significa exatamente o oposto, “medo de estranhos ou estrangeiros.” A hospitalidade ensinada na Bíblia não é o tipo de hospitalidade que mostramos a nossos amigos, familiares ou pessoas “parecidas conosco.” Ser generoso, bondoso e hospitaleiro com aqueles que já são “um de nós” não é hospitalidade bíblica. Jesus nos desafia: “Quando você der um banquete, não convide seus amigos, seus irmãos, seus parentes ou seus vizinhos ricos; pois, se fizer isso, eles poderão convidá-lo de volta e assim você será recompensado” (Lucas 14:12).
Alguns capítulos antes, no mesmo Evangelho, Jesus contou a parábola do Bom Samaritano para responder à pergunta do perito da lei: “Quem é o meu próximo?” (Lucas 10:29). Depois de terminar de contar toda a história do Bom Samaritano, Jesus perguntou novamente ao perito na lei: “Qual destes três você acha que foi o próximo daquele que caiu nas mãos dos assaltantes?”, ao que ele respondeu: “Aquele que teve misericórdia dele”. Então Jesus lhe disse: “Vá e faça o mesmo” (Lucas 10:36-37), o que é outra maneira de dizer: “Vá, mostre misericórdia e ame o seu próximo que não é do seu povo, assim como o Bom Samaritano fez”. A ilustração de Jesus era muito contracultural para a sua época. De várias passagens do Novo Testamento (João 4), aprendemos que havia tensões raciais e religiosas entre judeus e samaritanos naquela época. Por que Jesus contou uma história longa e culturalmente ofensiva para responder a um perito na lei com uma pergunta simples: “Quem é o meu próximo?” (Lucas 10:25-37). Será que ele não está tentando dizer: “Seu próximo é aquele que tem misericórdia de você, independentemente de sua origem étnica, religiosa ou política”? O mais importante é que ele nos disse para fazer o mesmo, para mostrar misericórdia àqueles que são diferentes de nós. Esta é uma questão fundamental no deslocamento forçado, devido à necessidade humana básica de ser acolhido, bem como de acolher.
Shalom
Shalom é um dos principais temas da redenção que transmite uma sensação de plenitude, completude, harmonia e realização na vida. Geralmente traduzido como paz, shalom é o resultado positivo da bênção de Deus e descreve um lugar de segurança e refúgio que inclui responsabilidade para com os outros na comunidade. Da mesma forma, a maioria das pessoas deslocadas no mundo hoje dirá que busca segurança: “Eu só quero viver em paz”. Portanto, os objetivos e necessidades das PDFs estão intimamente alinhadas com o desenvolvimento de shalom nas Escrituras. Shalom denota o que uma pessoa possui por estar conectada às promessas de Deus. No difícil contexto de peregrinos, Abraão, Isaque e Jacó têm a lembrança da promessa da aliança (Gn 15:12-21, 28:18-22, 44:17). A amizade duradoura entre Jônatas e Davi não apenas garante a passagem segura deste, mas também a promessa de Deus aos seus descendentes (1Sm 20:7,13,21). Shalom refere-se à bênção, proteção, passagem segura, refúgio e esperança futura de Deus. Também significa a recompensa por fazer a coisa certa e carrega a ideia da responsabilidade de andar nos caminhos de Deus. Dessa forma, shalom descreve tanto o que o povo de Deus recebe, quanto o que eles fazem em relação à promessa e bênção de Deus.
O maior uso de shalom nas Escrituras refere-se à aliança de paz e nos lembra que Deus é a fonte da paz. Salmos 4:9, 122:7 e 147:14 fazem referência à segurança, proteção e salvação de Deus. Muitos Salmos fazem referência a um refúgio e desenvolvem a ideia de shalom mesmo que a palavra esteja ausente (Sl 4:8; 29:11; 35:27; 120:6). Eles nos lembram que Deus permanece intimamente conectado ao seu povo para levá-lo a um lugar de paz e segurança. Shalom concede um lugar de refúgio e carrega expectativas de responsabilidade. O uso de shalom nas Escrituras se relaciona com o resultado de uma vida correta, destacando a importância da responsabilidade sobre o reino de Deus. No Salmo 34:8-14, o escritor louva a Deus como um refúgio, mas também convida o leitor a “temer o Senhor, afastar-se do mal e fazer o bem, buscar a paz e segui-la”. Aqueles que vivenciam shalom por causa de uma vida correta, assumem responsabilidades totalmente positivas e importantes no desenvolvimento do reino de Deus.
Isaías profetizou que o Príncipe da Paz traria uma nova ordem e seria um servo sofredor para carregar as iniquidades em prol do bem-estar (Is 9:6; 53:5). Os profetas explanam tanto aquilo que o shalom proporciona quanto a responsabilidade que ele traz. Deus chamou o povo exilado para viver a fé com base em quem são e onde estão: “construam casas… plantem jardins… tomem esposas… e orem pelo bem-estar da cidade” (Jr 29:5-7). Isso evita o isolamento, facilita a integração e faz uma diferença a longo prazo na comunidade anfitriã. O profeta conecta o chamado para uma vida fiel na Babilônia ao plano de shalom de Deus — para a paz deles e a esperança futura (Jr 29:11). A paz e o bem-estar deles na Babilônia dependerão do mesmo shalom sendo vivido na comunidade maior. Assim, shalom representa a transformação social por meio da paz, do bem-estar e da responsabilidade nas relações externas, mais do que um sinal de paz interior.
O impacto atual do deslocamento na sociedade, junto com a polarização e a confusão que o acompanham, ressalta a importância de compreender o shalom no contexto do deslocamento forçado. Shalom significa a paz de uma esperança futura. O Exílio Bíblico engloba esforços para integrar e superar a solidão. Da mesma forma, o desenvolvimento do shalom reflete uma comunidade interdependente de cidadãos locais e estrangeiros, com mais compromisso do que simplesmente a próxima ajuda emergencial a ser organizada ou recebida. Onde há shalom, encontramos uma comunidade caracterizada por entendimento mútuo e esforços recíprocos, com a bênção do shalom agindo como a argamassa dessa coesão. Nessa comunidade, ambos os lados compreendem as perspectivas um do outro. É uma visão ampliada, capaz de enxergar não apenas suas próprias preocupações, mas também as dos outros. No Novo Testamento, os benefícios redentores do shalom tornam-se claros. Jesus promete paz no lugar do medo (João 14:27) e nos chama a ver os outros em seu lugar (Mateus 25:37-40); essa é uma visão do céu que, como o shalom, molda as decisões éticas das pessoas. Por fim, a cruz de Cristo promete um lugar de paz e segurança eterna para todos.
Ministério eficaz entre pessoas deslocadas à força
Deus chama a igreja para uma missão e ministérios vivificadores. No contexto das PDFs, esse tipo de ministério fortalece a resiliência e traz esperança. Resiliência é a capacidade de se reerguer e se recuperar diante de adversidades quase impossíveis. É a força de caráter que ajuda a pessoa a superar vulnerabilidades ou dependências e a retomar seu funcionamento normal como ser humano. A esperança oferece uma confiança inabalável no futuro. Ela é fruto da fé, e é por isso que muitos deslocados mantêm firme a oração e a fé.
Em dezembro de 2012, o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) realizou um Diálogo sobre Fé e Proteção, que destacou o papel crucial das comunidades de fé para as pessoas forçadas ao deslocamento. A influência moral dos líderes religiosos gera atitudes positivas tanto entre os refugiados quanto nas comunidades anfitriãs. Eles são fundamentais para promover decisões informadas e mudanças duradouras na vida dos PDFs. O Alto Comissário concluiu: “Para a grande maioria das pessoas deslocadas, poucas coisas são tão poderosas quanto a fé para ajudá-las a enfrentar o medo, a perda, a separação e a pobreza extrema. A fé é central para a esperança e a resiliência”.20
Para os cristãos, as realidades da resiliência e da esperança se originam em Cristo e nutrem a plenitude e o bem-estar nas PDFs. São como a fonte da vida que brota do Senhor (Jl 3:18) e promete vida frutífera e sem fim (Is 58:11). A resiliência para os PDFs é como uma fonte de vida, e a esperança em Cristo a preenche. Esses ministérios entre os deslocados à força revigoram a fé, a esperança e o amor como expressões da nova criação de Deus em Cristo. As igrejas não apenas precisam desse tipo de ministério, como também precisam de pessoas como os deslocados forçados — que têm sede da água da vida (Ap 21:6) e que carregam, em sua própria experiência, a vivência da fé na linha de frente. A seguir, são apresentadas algumas considerações práticas importantes para o ministério junto às pessoas em situação de deslocamento forçado.
Relações de confiança e respeito
Pessoas em situação de deslocamento forçado enfrentam diariamente uma série de desafios e necessidades práticas, que incluem questões vitais, como acesso a abrigo e alimentação, que, quando não atendidas, podem ensejar crises graves e até mesmo resultar em morte. É fácil se sentir sobrecarregado por essas necessidades. Os PDFs também enfrentam uma crise de alma correspondente, com necessidades de identidade, segurança e pertencimento: Quem sou eu? Onde estarei seguro? E como vou me encaixar? O deslocamento desperta na alma essas necessidades e questões, as quais são melhor abordadas por meio de relacionamentos de confiança e respeito. Portanto, um ministério eficaz não é apenas transacional, mas também relacional. A confiança para uma pessoa deslocada à força é a escolha sobre como ela irá interagir com os outros. A confiança é um sinal dessa interação. Na maioria das vezes, a confiança entre os PDFs foi corroída e substituída pela desconfiança. Por outro lado, eles se sentem respeitados quando outros demonstram interesse por eles e consideram suas necessidades e preocupações. Um ministério eficaz se baseia no exemplo de Jesus, que não apenas escolheu seus seguidores, mas também permitiu que eles escolhessem sua interação com ele. Isso exige mais do que uma simples transação. Abre-se, assim, uma porta para a confiança. A confiança nasce de um caminhar conjunto, no enfrentamento diário de questões ligadas à reconciliação, e encontra seu maior exemplo nas relações da própria Trindade.
O envolvimento com pessoas forçadamente deslocadas, que reflete a presença de Cristo na vida dos seus seguidores, torna-se a base para transformação e fé. Trata-se de algo muito além de uma simples ajuda pontual; é o compartilhar de Cristo, de pessoa para pessoa, de coração para coração, dia após dia — muitas vezes, sem necessidade de palavras. Um ministério relacional, baseado na confiança e no respeito mútuo, está enraizado na imagem de Deus, na presença de Deus e na paz de Deus. Esses são os alicerces da identidade, da segurança e do senso de pertencimento que todo ser humano necessita. Relações construídas na confiança e no respeito são pré-requisitos para transformação, conversão e para um ministério frutífero entre pessoas em situação de deslocamento forçado.
Ministério com abordagem sensível ao trauma
Um ministério sensível ao trauma reconhece os efeitos duradouros que o trauma provoca no bem-estar físico, social, emocional e espiritual das pessoas forçadamente deslocadas. Trauma é uma ferida profunda, uma força avassaladora que gera ondas recorrentes de lembranças dolorosas, pesadelos e constantes interrupções na vida cotidiana e no trabalho. Não é difícil compreender como mais da metade — senão a maioria — das PDFs no mundo já passaram por situações traumáticas. Isso se manifesta em sintomas como pesadelos, insônia, lapsos de memória, dificuldade de concentração, cansaço extremo, ansiedade, depressão e transtorno de estresse pós-traumático (TEPT). Além disso, sistemas de acolhimento, como centros de detenção, frequentemente agravam esses efeitos. Interações constantes com autoridades de imigração, policiais, milícias ou facções criminosas também podem reativar e aprofundar os traumas. O trauma não apenas fragiliza a pessoa, tornando-a mais vulnerável a novos abusos e sofrimentos, como também, muitas vezes, leva à reprodução do trauma em outros. Por isso, o ministério entre PDFs precisa compreender a natureza do trauma e anunciar a luz e a vida do evangelho de forma que gere cura e restauração. Mais do que isso, é essencial mobilizar tanto profissionais locais capacitados, quanto as próprias comunidades para lidar, de forma conjunta e sensível, com as feridas do trauma.21
Um grupo de cura é um exemplo de conscientização sobre traumas em ação. Trata-se de caminhar ao lado de outras pessoas no processo de recuperação das feridas emocionais. Ao longo de uma série de encontros planejados, esses grupos abordam questões profundas e difíceis, como: “Se Deus me ama, por que sofro assim? Como as feridas do meu coração podem ser curadas? Como posso lidar com o luto? O que pode aliviar minha dor? Como posso perdoar?”. Os ministérios devem ajudar os PDFs a perceberem que não estão sozinhos em suas questões e que uma vida normal é possível.
Esses grupos de cura não substituem a ajuda profissional; em vez disso, alavancam o poder do povo de Deus em comunidade, que se dá permissão para expressar abertamente seus fardos, ouvindo e confortando uns aos outros. O grupo aborda a cura de traumas como uma jornada e não como um programa. Os líderes dos grupos de cura já processaram sua dor e trauma e passaram por treinamento. Diz-se que pessoas feridas ferem pessoas. Da mesma forma, é possível afirmar que pessoas curadas, curam pessoas compartilhando suas jornadas de tratamento.
Um grupo de cura cria laços de confiança. As pessoas começam a se sentir seguras novamente para compartilhar seus corações sem medo de serem julgadas. Aos poucos, a comunidade cresce e as pessoas começam a se sentir bem novamente. A fragilidade faz parte da vida, mas Deus está muito perto de nós quando sofremos (Sl 34:18; Rm 8:19-22). Uma comunidade como essa pode levar as pessoas a se sentirem amadas novamente e especiais aos olhos de Deus (Romanos 8:35, 38-39).
A prevalência do trauma é difícil de avaliar porque muitas PDFs aprenderam a ignorá-lo. A sobrevivência é a prioridade. No entanto, ignorar as feridas do trauma não ajuda a superar os desafios do deslocamento forçado. O trauma só piora com o tempo. Certa vez, uma mulher compartilhou:
Antes de participar do grupo de cura, eu estava perdida. Nem me importava com meus filhos. Eles ficavam vagando pelo acampamento e eu não me importava. Um dia, enquanto cozinhava, coloquei água no fogo e me esqueci. Eu tinha uma criança pequena que foi até a cozinha e, de repente, ouvi o grito dela. Meu filho tinha se queimado com a água fervente, e agora eu luto contra a culpa. A cura do trauma me ajudou a ser mãe novamente.
O trauma dificulta profundamente os relacionamentos. Muitas pessoas traumatizadas passam a perceber e tratar os outros — inclusive Deus — como se fossem inimigos. Elas têm dificuldade tanto em receber amor e cuidado, quanto em oferecer esses mesmos gestos às pessoas que amam. Pessoas forçadamente deslocadas que sofreram traumas costumam viver relações conflituosas, seja nos campos de refugiados, seja nas áreas urbanas onde estão abrigadas. As crianças muitas vezes são forçadas a assumir responsabilidades de adultos, perdendo a possibilidade de viver a infância. Da mesma forma, os pais enfrentam grandes desafios, e o impacto de viver em uma nova cultura agrava ainda mais essas dificuldades. As culturas baseadas em honra e vergonha, comuns entre muitos PDFs, tornam o processo de cura do trauma ainda mais complexo. Homens, especialmente, frequentemente se veem refletindo sobre como era a vida antes da situação de deslocamento, quando se sentiam valorizados, reconhecidos e honrados. A perda desse status provoca dor e isolamento. Um exemplo claro é o de um médico que, antes, atuava em uma respeitada organização internacional de saúde, e hoje se encontra desempregado, vivendo em um campo de refugiados. Ele guarda, com muito cuidado e dor, as fotos de sua antiga vida. Essas imagens contam não apenas sua história, mas também representam tudo o que foi perdido — seu status social, seus bens, seu trabalho e sua família.
Os papéis e o status tanto de homens quanto de mulheres acabam sendo profundamente afetados, muitas vezes se invertendo ou se perdendo por completo. Muitos homens não conseguem mais exercer suas responsabilidades tradicionais dentro da família e, frequentemente, acabam deixando essas responsabilidades para suas esposas e filhos. As perdas emocionais, sociais e econômicas que os homens experimentam podem gerar conflitos dentro da família, frequentemente resultando em violência doméstica ou até em divórcios. Esses desdobramentos acabam gerando ainda mais traumas, especialmente para as crianças. Não é incomum que alguns homens abandonem suas esposas assim que chegam aos campos de refugiados, tomados pela vergonha e pela dor de não conseguirem mais sustentar e proteger suas famílias. Enquanto aguardam por oportunidades de trabalho que muitas vezes não chegam, muitos entram em quadros severos de depressão que, em casos extremos, podem levar ao suicídio — deixando suas famílias em uma situação de vulnerabilidade ainda maior. A luta constante pela sobrevivência pode levá-los a um estado de desesperança, no qual as referências morais e éticas — aquilo que antes era claramente entendido como certo ou errado — se tornam confusas, distorcidas e frágeis, influenciadas pelas mudanças drásticas na realidade e na forma de enxergar o mundo.
Abraão mentiu quando enfrentou dificuldades semelhantes, sob pressão, em uma terra estrangeira (Gn 12:15-16). Como muitas PDFs hoje, ele era vulnerável, indefeso e acabou expulso da terra. A sobrevivência tornou-se sua maior prioridade. No entanto, Deus não o rejeitou, mas o abençoou. PDFs se encontram em uma situação semelhante, muitas vezes se sentindo ilegítimos, sem direitos à educação, acesso a oportunidades de emprego ou mesmo sem direito de enterrar seus mortos. Esse ciclo pode gerar camadas sucessivas de traumas. Não é incomum que, mesmo dentro de lares cristãos, situações de violência doméstica e abuso aconteçam. Mulheres cristãs, em meio ao desespero e à falta de alternativas, acabam se submetendo à exploração sexual como meio de sustentar suas famílias. Da mesma forma, muitos jovens acabam sendo aliciados por grupos radicais ou envolvem-se em atividades criminosas, simplesmente porque não enxergam outras saídas possíveis para sua realidade. Essas são consequências diretas do trauma — realidades das quais igrejas e ministérios precisam estar profundamente conscientes, preparados e dispostos a enfrentar. Uma atuação ministerial sensível ao trauma oferece mais do que ajuda prática: ela se torna expressão viva da esperança em Cristo, sendo as mãos e o coração de Deus junto às pessoas deslocadas. Por meio desse cuidado, é possível promover estabilidade emocional, restauração e cura — elementos fundamentais para a reconstrução da vida, da dignidade e da fé dessas pessoas. Em um campo de refugiados, participantes do ministério de cura de traumas, após experimentarem sua própria restauração, redescobriram sua humanidade e começaram a construir uma comunidade de cura. Eles decidiram romper as correntes do silêncio e da vergonha. Recusaram-se a ficar presos na miséria do trauma e escolheram reencontrar seu respeito próprio e seu valor pessoal, compreendendo que não são responsáveis pela situação em que se encontram atualmente, e que essas circunstâncias não definem quem realmente são. Ao darem pequenos passos juntos, aprenderam a sobreviver como grupo, sabendo que unidos são mais fortes. Esse grupo acabou formando uma organização que, por meio de grupos de cura, já ofereceu apoio a mais de 600 refugiados, incluindo idosos e pessoas com deficiência. O trabalho deles é um verdadeiro exemplo de resiliência diante da adversidade.
Abordagem Holística da Comunidade e da Reciprocidade
Um foco holístico reconhece facetas e necessidades entre os PDFs que variam de identidade, segurança e pertencimento, a propósito e capacidade.22 Em geral, o ministério holístico é centrado em Cristo e se baseia nos fundamentos discutidos acima relacionados a shalom, hospitalidade e a presença de Deus. Um foco holístico cria a base ampla necessária para a estabilidade, reconstrução e recuperação da vida em sua plenitude. Esse enfoque valoriza a comunidade, que pode romper o isolamento vivido por muitas PDFs. No centro da comunidade está a necessidade de acolher e ser acolhido pelos outros. Como no exemplo do grupo de cura baseado na comunidade, comunidades acolhedoras são essenciais para a resiliência. Compartilhar histórias une as pessoas e faz com que elas percebam que não estão sozinhas. O sentido de comunidade ajuda a superar a solidão causada pelo deslocamento forçado, especialmente diante do trauma.
Além disso, os PDFs lidam com traumas coletivos. O trauma coletivo é um tipo prolongado de trauma vivenciado por um grupo de pessoas e requer cura coletiva em uma comunidade. A comunidade ajuda a romper o silêncio, que é um passo importante na jornada de cura. No silêncio, as PDFs escutam vozes de escuridão que alimentam a dor e geram ciúmes, ressentimentos, raiva e desejo de vingança. Igrejas que abrem suas comunidades para as PDFs estão praticando o amor ao próximo e a hospitalidade aos estrangeiros. Para conhecer e amar as PDFs, as igrejas precisam convidá-las, escutá-las e compreender seu contexto, assim como ajudamos elas a entender o nosso. Isso não acontece apenas nos cultos de domingo; requer um tempo e espaço dedicados. Esses encontros comunitários aprofundam a fonte da resiliência e tratam as PDFs como “colegas locais”, cheias de conhecimento, e não como ameaças, problemas ou meros estudos de caso. Nessas comunidades, as PDFs são especialistas em sua própria experiência e podem apontar soluções que funcionam.
Os esforços de cura de traumas em conjunto com igrejas locais em campos de refugiados têm sido bem-sucedidos porque esses eventos não envolvem especialistas externos que vêm resolver crises emocionais. Em vez disso, eles obtêm sucesso por meio de equipes locais de comunidades religiosas e refugiados que trabalham em parceria para ver o que Deus vê. Os resultados são extremamente positivos e superam as expectativas. Em um nível teórico e missionário, esses ministérios e comunidades são exemplos de diálogo inter-religioso e aprendizado intercultural. Eles servem como portas de entrada para o mundo um do outro, com abertura mútua e compartilhando suas jornadas e esperanças.
O foco holístico no ministério também busca maneiras de afirmar o propósito de vida de uma pessoa. As PDFs são mais do que pessoas necessitadas, elas trazem uma ampla gama de recursos e capacidades. Mesmo tendo conseguido chegar tão longe sem nada, elas buscam maneiras de assumir o controle de suas vidas e cuidar de suas famílias, restaurar a dignidade e estabelecer novos relacionamentos. Elas não buscam esmolas como muitas pessoas imaginam. Em vez disso, estão ansiosas para desenvolver as capacidades necessárias para uma nova vida, seja em termos de idioma, habilidades ou qualificações que possam ajudá-las a prosperar.
No deslocamento forçado tudo é novo e muda rapidamente, e leva tempo para aprender e aceitar novos costumes. As pessoas se aproveitam das PDFs, por exemplo, fazendo-as trabalhar duro por pouco ou nenhum salário. As igrejas podem proteger as PDFs dessa exploração em campos de refugiados, cidades e países de reassentamento, ajudando-os a entender as leis trabalhistas e outros procedimentos pertinentes a eles. Os recém-chegados precisam saber o que é permitido e o que não é, ajudando-os a permanecer do lado certo da lei. Um refugiado admitiu certa vez: “Não consigo me manter conectado a uma única comunidade porque você acaba se envolvendo em conversas que não são úteis. Embora seja importante conviver com pessoas que se parecem e falam como eu, achei necessário encontrar uma comunidade local que pudesse me ajudar a me integrar à sociedade”.
Por fim, o enfoque holístico é importante porque reconhece o efeito de mão dupla no ministério. As comunidades anfitriãs precisam abrir mão dos seus preconceitos e receber cura, assim como aqueles que chegam como estrangeiros. Um enfoque holístico reconhece que o ministério mais forte é aquele que acontece de forma mútua, onde a cura acontece de ambos os lados. Dessa forma, os próprios deslocados participam ativamente do ministério. Um grupo de jovens de uma determinada comunidade, por exemplo, desenvolveu um ministério semanal para servir e compartilhar refeições com menores refugiados. Depois de alguns meses, o líder refletiu: “Começamos esse ministério achando que iríamos ajudar eles, mas na verdade eles foram quem mais nos ajudaram”. Esse tipo de ministério vai além do simples atendimento; ele cresce a partir de relações recíprocas que valorizam as contribuições de cada um como parte vital do ministério.
Infelizmente, a mutualidade no ministério é frequentemente dificultada inadvertidamente por assistência e programas que ignoram a participação das PDFs na construção da resiliência como ser humano. Isso é desumanizante para as PDFs e as faz sentir-se indignas e sem valor. Alternativamente, o ministério deve reservar tempo para ouvir suas histórias e buscar sua sabedoria. As comunidades da igreja podem oferecer às pessoas forçadamente deslocadas uma oportunidade para compartilhar suas histórias com outros que estejam dispostos a ouvir e a ajudar a levar suas dores a Deus, o grande Médico. Grupos comunitários como esses proporcionam um ambiente seguro e estável, que oferece o shalom de Deus.
As pessoas forçadamente deslocadas têm uma riqueza de experiência e são muito resilientes. As igrejas precisam aprender com elas. Se essas pessoas conseguiram sobreviver com quase nada, podem fazer muito mais se receberem algum apoio. As PDFs não são preguiçosas ou inúteis. São pessoas comuns que foram afetadas pelo trauma e pelo deslocamento, mas que podem se curar. Podem ter cicatrizes que jamais desaparecerão, mas são capazes de aprender e reaprender. É possível ajudá-las a perceber que, mesmo no sofrimento, Deus está agindo. Uma das autoras deste texto foi refugiada e compartilhou seu testemunho: “Antes de deixar meu país, eu tinha sonhos. Tinha um diploma universitário que me colocava no topo da pirâmide. Quando me tornei refugiada, fiquei invisível, nada me distinguia. Perdi tudo o que era familiar. Perdi a esperança. Precisava de vozes que me lembrassem que eu era mais do que uma vítima. Deus queria me usar, mas na época eu não conseguia enxergar como. Fui encorajada a dar um passo de cada vez e então Deus se manifestou. Depois de vários anos de reaprendizado, redescobri meu propósito e entendi que sou mais do que uma vítima. Sou uma voz que pode falar por aqueles que ainda estão onde eu estava há 30 anos. As igrejas podem se fazer presentes para milhões de outros, uma pessoa de cada vez”.
Colaboração e Defesa de Direitos
As igrejas são atores locais no contexto do deslocamento, tendo a oportunidade e a responsabilidade únicas de servir às PDFs. As necessidades que enfrentam são maiores do que qualquer ministério ou organização pode atender individualmente, portanto, a colaboração com outras pessoas é vital. As PDFs, em particular, precisam de mais do que apenas assistência material. Portanto, os ministérios devem priorizar relacionamentos e pastorear líderes para oferecer conexão genuína e orientação atenciosa. Ao praticar a confiança e a transparência, os ministérios locais promovem um ambiente de apoio e compreensão. Isso demonstra respeito pelas comunidades locais de PDFs e uma abordagem colaborativa que valoriza sua contribuição por meio da união, da co-liderança e da cooperação.
Diversas passagens das Escrituras descrevem a proteção e a justiça de Deus para a viúva, o órfão e o estrangeiro (Dt 10:18, 16:11; Êx 20:10, 23:12; Sl 146:9; Jr 7:6). Assim como eles, os refugiados de hoje são aqueles sem voz, sem direitos, status, recursos, um lugar ou mesmo palavras. Muitos seguidores de Cristo compreendem a necessidade de falar e defender os que não têm voz, abordando as questões que enfrentam. Isso capacita os refugiados a reconstruírem suas vidas com dignidade e propósito. Em última análise, servir refugiados de forma holística como essa reflete o ethos compassivo e inclusivo que está no cerne da fé cristã, incorporando princípios de amor, compaixão e hospitalidade.
Depois da ascensão do ISIS no Iraque em 2014, igrejas de diferentes tradições — ortodoxa, católica e evangélica — passaram a trabalhar juntas para oferecer apoio material aos refugiados iraquianos que fugiram, a maioria deles cristãos nominais de origens tradicionais. Essas igrejas visitavam regularmente esses refugiados, levando suprimentos de ajuda e compartilhando a Palavra de Deus. Muitos deles nunca tinham lido a Bíblia antes, mas, por meio do cuidado amoroso e do compartilhar, alguns se tornaram verdadeiros seguidores de Cristo. Quando uma família recebeu asilo na Austrália e se preparava para partir, o pai reconheceu: “Gostaria de agradecer a Deus por esta jornada, e gostaria de agradecer também ao ISIS!” Isso causou choque. Ele explicou: “Dois anos atrás, quando o ISIS invadiu, eu estava longe de Deus. Fugi com minha família. Descobri a Palavra de Deus e encontrei Jesus. Vim sem nada e agora tenho tudo”.
A defesa de direitos (advocacy) ajuda as igrejas a responderem e a enxergarem a pessoa como Jesus a vê. Como diz Provérbios 31:8: “Abre a tua boca em favor do mudo, pelos direitos de todos os que se acham desamparados.” Quando fazemos isso, estamos vendo o rosto de Deus, como Jesus explica em Mateus 25:34-40. Muitas igrejas nem sabem que têm pessoas deslocadas forçadamente como vizinhas, então o trabalho de advocacy revela uma realidade dura. Frequentemente, políticas, opiniões, retratos na mídia e decisões são baseados em preconceitos e meias-verdades23. O advocacy é fundamental porque corrige o efeito anestesiante da desinformação sobre PDFs, que muitas vezes são vistos apenas como vítimas ou ameaças à sociedade. Dois mitos comuns são: 1) “O mundo enfrenta uma crise de refugiados fora de controle.” De fato, o número de PDFs dobrou na última década. No entanto, isso não significa que devemos ter medo ou evitar a questão; pelo contrário, precisamos enfrentá-la com ainda mais empenho. A porcentagem de refugiados em relação à população mundial se mantém relativamente estável. 2) “PDFs representam uma ameaça econômica, tirando empregos das comunidades locais e causando o aumento de preços.” Cerca de 10% do PIB mundial vem dos imigrantes, enquanto imigrantes e PDFs representam menos de 4% da população mundial. Muitos recém-chegados abrem negócios, gerando empregos e serviços para as comunidades anfitriãs. Na realidade, imigrantes pagam mais impostos do que recebem em benefícios, criam empregos e impulsionam as economias.
As pessoas envolvidas com advocacy praticam uma colaboração justa e equitativa entre as igrejas locais, os líderes das PDFs e outros parceiros ministeriais. A colaboração exige uma atitude humilde e atenta, disposta a ouvir o outro. Reconhece que qualquer trabalho no contexto do deslocamento forçado precisa ser realizado de forma conjunta. Prioriza o envolvimento dos outros e, acima de tudo, dos próprios deslocados. Essa prática se alinha com os valores do Reino — fé, esperança, amor — e com as virtudes expressas no fruto do Espírito. Se não formos capazes de dialogar com outros, corremos o risco de perder credibilidade e acesso a atores-chave, como governos e formadores de opinião. Indicadores essenciais de uma defesa de direitos (advocacy) bem-sucedida incluem: a) Colocar sempre em primeiro lugar o que é melhor para as PDFs ; b) Aumentar a conscientização sobre a realidade das pessoas deslocadas; c) Enfrentar medos infundados e suposições equivocadas sobre migrantes e deslocados; d) Levar as igrejas a reconhecerem o valor e a importância do ministério entre os refugiados e deslocados; e) Identificar, valorizar e cuidar dos grupos marginalizados dentro da própria comunidade de PDFs; f) Entender que a defesa de direitos oferece caminhos práticos, éticos e coerentes para responder às necessidades e desafios desse público.
Limites e implicações éticas
Um conjunto de leis e instrumentos internacionais orienta a interação com, e a proteção de, PDFs. Essas leis e instrumentos fazem a distinção entre cidadãos e não cidadãos. Os padrões internacionais refletem valores e princípios de humanidade, universalidade, igualdade, independência e não discriminação. Estão consagrados em tratados, legislações nacionais e normas internacionais, conforme mencionado anteriormente. Eles tornam os Estados responsáveis pela proteção dos direitos fundamentais de seus cidadãos e também dos não cidadãos em situação de vulnerabilidade. Entre os direitos assegurados por essas leis, e que são particularmente relevantes para as PDFs, estão: o direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião; o direito à não discriminação; e o direito de buscar e receber asilo. Esses são direitos humanos reconhecidos como inalienáveis, muitas vezes vinculados às legislações de cidadania e tratados internacionais. Em última instância, esses direitos têm sua origem na dignidade conferida pela Imago Dei — a imagem de Deus — e nos valores das Escrituras, que se manifestam na vida e no ministério de Cristo, o qual proclamou o Reino de Deus. Como cristãos, somos cidadãos dos céus (Filipenses 3:20). Essa cidadania superior, sob a lei divina, desafia a Igreja a transcender fronteiras nacionais, barreiras raciais e quaisquer outros limites territoriais.24 Infelizmente, a injustiça e a hipocrisia persistem no mundo, e as PDFs continuam vulneráveis a abusos, exploração e desumanização. Essa negligência pode ocorrer de forma intencional e até mesmo sistemática. Cristãos que escolhem fechar os olhos para essas realidades se tornam responsáveis diante de Deus.
Ministérios éticos demonstram sensibilidade e preocupação com os desequilíbrios nas relações e nas atividades que envolvem transações de recursos. É essencial reconhecer o poder e as desigualdades presentes quando uma das partes detém o controle dos recursos, especialmente em contextos culturais complexos e desafiadores. Por exemplo, quando a distribuição de alimentos está diretamente ligada à evangelização, isso cria uma dinâmica de poder na qual as PDFs, por estarem em situação de extrema vulnerabilidade, podem se sentir pressionadas ou até coagidas. Da mesma forma, quando uma pessoa recebe grandes quantias de recursos financeiros para projetos ministeriais, torna-se um grande desafio administrar esses fundos de maneira justa, transparente e equilibrada. Sem uma reflexão ética, as prioridades podem ser distorcidas, levando a ações que exploram ou negligenciam as verdadeiras necessidades das pessoas atendidas. Ministérios éticos precisam estabelecer limites claros para garantir que as transações e interações sejam justas, imparciais, transparentes e seguras. Isso inclui a elaboração de diretrizes bem definidas e a participação ativa das próprias PDFs no processo, de modo a preservar sua dignidade, autonomia e honra.
Outros dilemas morais e éticos também desafiam os ministérios locais e suas práticas. Esses desafios incluem políticas migratórias, controle de fronteiras, a preservação da soberania nacional, e o equilíbrio entre os caminhos para a cidadania e o direito de asilo, ao mesmo tempo em que se busca honrar a cultura e as necessidades dos cidadãos locais. Para lidar com essas complexidades, um ministério eficaz defende políticas claras que respeitem tanto as leis internacionais quanto a soberania dos Estados, sem jamais perder de vista a dignidade intrínseca de cada pessoa, criada à imagem de Deus. Boas políticas devem respeitar a consciência individual e as convicções morais, garantindo que o auxílio e o cuidado sejam oferecidos dentro de um marco que una compaixão e justiça. Tais ministérios demonstram uma ética que compreende as preocupações sociais, econômicas e culturais do mundo e das nações, sem negligenciar nenhuma dessas dimensões. Eles se tornam modelos de uma prática que promove o diálogo e o intercâmbio de ideias entre diferentes grupos, em vez de alimentar a hostilidade, o medo ou a divisão.
Conclusão
Os povos forçadamente deslocados tornaram-se uma realidade em rápido crescimento no mundo de hoje. Os deslocados são seres humanos criados à imagem de Deus, e Deus está agindo entre eles. Enfrentar os desafios complexos que essas populações vivenciam exige uma abordagem abrangente, que inclua diretrizes legais e éticas, advocacy proativa, além de sensibilidade às dinâmicas culturais e de poder. Embora a repatriação voluntária ofereça a esperança de retorno às suas terras de origem, muitas vezes ela não é viável devido a conflitos em andamento ou condições inseguras. Os programas de reassentamento representam uma oportunidade vital para aqueles que não podem retornar, permitindo que comecem uma nova vida. Contudo, para que isso seja bem-sucedido, é fundamental garantir processos eficazes de integração, permitindo que as PDFs reconstruam suas vidas e contribuam de forma positiva para as sociedades que os acolhem. Esse processo envolve a colaboração de diversos atores locais, oferecendo suporte, recursos e oportunidades para que os deslocados encontrem aceitação social, acesso à educação, emprego e senso de pertencimento. A Igreja de Deus pode desempenhar um papel crucial em todos esses cenários. As Escrituras estão repletas de narrativas de deslocamento, e tanto a teologia quanto a história do cristianismo oferecem fundamentos sólidos para o desenvolvimento de uma missão encarnada e contextualizada junto aos Povos Forçadamente Deslocados no mundo. Ao abraçar uma abordagem holística, que considera as diversas necessidades e desafios enfrentados pelas PDFs, o povo de Deus pode viver de forma integral o Grande Mandamento — amar a Deus e ao próximo — e, ao mesmo tempo, cumprir a Grande Comissão do nosso Senhor.
Referências
- Barth, Karl. Church Dogmatics III/1. Edinburgh: T&T Clark, 1956.
- Blocher, Henri. In the Beginning: The Opening Chapters of Genesis. Downers Grove: IVP, 1984.
- Brueggman, Walter. The Land: Place as Gift, Promise, and Challenge in Biblical Faith, 2nd Edition. Minneapolis: Fortress Press, 2002.
- George, Sam and Mariam Adeney, eds. Refugee Diaspora: Refugee Diaspora: Missions amid the Greatest Humanitarian Crisis of the World. Pasadena: William Carey Library, 2018.
- George, Sam. ‘God on the Move (Motus Dei)’ in Reflections of Asian Diaspora: Mapping Theologies and Ministries. Asian Diaspora Christianity Series, Volume 3. Minneapolis: Fortress Press, 2022.
- Global Diaspora Network, Scattered to Gather: Embracing the Global Trends of Diaspora, Revised Edition. 2017.
- Groody, Daniel. ‘Crossing the Divide: Foundations of a Theology of Migration and Refugees’. Theological Studies, 70 (3), 2009.
- Hanciles, Jehu. Migration and Making of Global Christianity (Grand Rapids: Eerdmans, 2021).
- Grenz, Stanley J. The Social God and Relational Self: A Trinitarian Theology of the Imago Dei (Louisville: Westminster John Knox, 2001).
- Guterres, Antonio. ‘Opening Remarks of Dialogue on Protection’. UNHCR, 2012. http://www.unhcr.org/50c84f5f9.html.
- Lints, Richard, Michael Horton and Mark Talbot, Editors. Personal Identity in Theological Perspective (Grand Rapids: Eerdmans, 2006).
- Tira, Sadiri and Tetsunao Yamamori. Scatted and Gathered: A Global Compendium of Diaspora Missiology, 2nd Edition (London, UK: Langham Publishers, 2022).
- Vanhoozer, Kevin J. ed. The Trinity in a Pluralistic Age: Theological Essays on Culture and Religion (Grand Rapids: Eerdmans, 1997).Walls, Andrew. ‘Toward a Theology of Migration’. In Global Diasporas and Missions. Edited by Chandler Im and Amos Yong. Eugene: Cascade Books, 2014.
Recursos da Web
- Global Diaspora Network
- UNHCR Refugee Data
- Refugee Highway Partnership
- International Association for Refugees
- Trauma Healing Institute
Notas finais
- LOP #70, ‘People on the Move’, https://lausanne.org/occasional-paper/lausanne-occasional-paper-people-on-the-move
- https://www.unhcr.org/about-unhcr/who-we-are/1951-refugee-convention
- https://upto.site/rhpbestpractices
- See https://refugeehighway.net/
- https://lausanne.org/wp-content/uploads/2007/06/LOP55_IG26.pdf
- https://lausanne.org/occasional-paper/risk-people-lop-34
- https://lausanne.org/occasional-paper/lop-5
- See Jehu Hanciles, Migration and Making of Global Christianity (Grand Rapids: Eerdmans, 2021).
- http://www.global-diaspora.com
- See GDN booklet, Scattered to Gather: Embracing the Global Trends of Diasporas, revised edition 2006. Also, Sadiri Tira and Ted Yamamori, Scattered and Gathered: A Global Compendium of Diaspora Missiology, 2nd edition (Cumbria, UK: Langham Publishers, 2022); Sam George and Miriam Adeney, Refugee Diaspora: Missions amid the Greatest Humanitarian Crisis of the World (Pasadena, CA: William Carey Publishers, 2018).
- UNHCR ‘Refugee Data Finder’ https://www.unhcr.org/refugee-statistics/
- Walter Brueggman, The Land: Place as Gift, Promise, and Challenge in Biblical Faith, 2nd edition (Minneapolis: Fortress Press, 2002).
- See Sam George, ‘God on the Move (Motus Dei)’ in Reflections of Asian Diaspora: Mapping Theologies and Ministries, Volume 3 of the Asian Diaspora Christianity Series (Minneapolis: Fortress Press, 2022), 95–122. Also, See Peter C. Phan, ‘Deus Migrator–God the Migrant: Migration of Theology and Theology of Migration’ Theological Studies, 77(4): 845–68.
- See Andrew Walls, ‘Toward a Theology of Migration’ in Global Diasporas and Missions, Chandler Im and Amos Yong, editors (Eugene, OR: Cascade Books, 2014), 19–37.
- Henri Blocher, ‘Immanence and Transcendence in Trinitarian Theology’, in The Trinity in a Pluralistic Age: Theological Essays on Culture and Religion, Kevin J. Vanhoozer, Ed. (Grand Rapids: Eerdmans, 1997), 161–62.
- See Richard Lints, Michael Horton and Mark Talbot, eds. Personal Identity in Theological Perspective (Grand Rapids: Eerdmans, 2006).
- Stanley J. Grenz, The Social God and Relational Self: A Trinitarian Theology of the Imago Dei (Louisville: Westminster John Knox, 2001), 50.
- Karl Barth, Church Dogmatics III/1 (Edinburgh: T&T Clark, 1956), 184.
- Henri Blocher, In the Beginning: The Opening Chapters of Genesis (Downers Grove: IVP, 1984), 187, 205.
- Antonio Guterres, ‘Opening Remarks—Dialogue on Protection,’ http://www.unhcr.org/50c84f5f9.html
- For some helpful resources, see https://traumahealinginstitute.org
- For example, see IAFR.org toolbox and training for such ministries.
- Hein de Haas, How Migration Really Works: The Facts about the Most Divisible Issue in Politics (New York, Basic Books, 2023), 3–6.
- Daniel Groody, ‘Crossing the Divide: Foundations of a Theology of Migration and Refugees’, Theological Studies, 70 (3) (2009): 660–63.