Global Analysis

Vivendo como cristão, registrado como muçulmano?

Violência e discriminação contra cristãos no Oriente Médio

Jonathan Andrews mar 2017

Por que o Oriente Médio é desse jeito? Quais são as raízes da discriminação, da falta de leis claras aplicadas da mesma forma para todos e por que a violência pode ser vista em tantos lugares? Por que os cristãos são vítimas desses desafios de forma desproporcional?

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Com base no livro recém-publicado Identity Crisis – Religious Registration in the Middle East [Crise de identidade: o registro religioso no Oriente Médio, em tradução livre] ,[1] este artigo analisa um aspecto da sociedade que está no cerne destes desafios. O livro ilustra como a segregação da sociedade através da delimitação religiosa fragiliza as leis e alimenta a violência. O sistema de registro religioso impõe e mantém a segregação. O livro leva o leitor em uma viagem guiada pelo Oriente Médio, usando histórias de pessoas para ilustrar os efeitos profundos que este sistema tem sobre indivíduos, famílias e sobre a sociedade como um todo. Os capítulos estão divididos por país e estão intercalados com capítulos temáticos, incluindo limitações de quem pode casar com quem, quem pode adorar com quem, apostasia, histórias de martírio e de funerais. Dentre outras perspectivas surpreendentes, os direitos funerários podem ser um empecilho significativo para o crescimento da igreja em algumas comunidades.

O que é o registro religioso?

Todos são registrados com uma religião ao nascer. O registro pode ser genérico, por exemplo “cristão”, ou específico, tal como “Católico Apostólico Romano” ou “Anglicano”. O registro é feito no sistema de TI do governo, além de ser registrado em alguns documentos oficiais como nas certidões de nascimento e, em muitos países, na carteira de identidade. O registro determina o sistema de leis religiosas que serão aplicadas para questões legais, tais como casamento, divórcio, custódia, funeral e herança. Não existe um sistema complementar civil; todos são obrigados a utilizar o sistema baseado na religião. A xaria muçulmana, lei canônica cristã e a lei halachá judaica determinam as leis de estatuto pessoal aplicadas às comunidades. O que acontece então com pessoas que querem se casar, mas tem sistemas religiosos diferentes? Qual sistema judicial é aplicável? No geral, estas situações são altamente problemáticas. Uma das partes acaba sendo obrigada a “se converter” e para obter a compatibilidade do registro o “convertido” aceita as dificuldades legais, sociais, culturais e familiares que a conversão causa.

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Origens históricas

Historicamente falando, os sistemas atuais são adaptações do sistema Millet do Império Otomano. No entanto, os Otomanos não inventaram este sistema. Registros antigos indicam que este sistema era usado em comunidades da igreja oriental sob o domínio do Império Sassânida. A religião oficial do império era o zoroastrismo. Os cristãos formaram a igreja no oriente, cujo o líder era conhecido como Catholicos ou Patriarca do Oriente, responsável pelos cristãos do império perante o rei persa.

O sistema de proteção dos cristãos como comunidade religiosa protegida e respeitada, continuou após a conquista muçulmana Sassânida em 651. A comunidade cristã floresceu e pode inclusive enviar missionários a Índia e China.

O registro religioso surgiu durante o período histórico que apresentava limitações sociais, econômicas e de mobilidade geográfica. A maioria das pessoas viviam todas suas vidas em proximidade do seu local de nascimento. Exceções eram raras, apesar das rotas comerciais bem estabelecidas. Atualmente, a situação é muito diferente: como adaptar o conceito e aplicação de registro religioso ao contexto moderno de maior mobilidade e urbanização, duas tendências globais que afetam o Oriente Médio?

Why does this matter to Christians?

Um dos temas do livro é a conversão religiosa: os convertidos podem alterar seu registro religioso para que esteja harmonioso com sua crença? A conversão ao islã é legalmente possível e simples em qualquer lugar; a conversão partindo do islã para outra fé é impossível em muitos lugares, e, nos poucos locais onde é legalmente permitida, há impedimentos sociais e culturais.

O uso dos registros religiosos que vemos no Oriente Médio atual está muito distante de sua origem bem-intencionada no Império Sassânida. O registro foi concebido para permitir que as comunidades religiosas distintas celebrassem seus ritos de passagem próprios ao afirmar lealdade aos governantes políticos. Atualmente, ele é usado para marginalizar as minorias. Assume-se que quem não está registrado na religião majoritária seja desleal ao Estado e uma pessoa na qual não se pode confiar. Uma expressão disso é o fato de que a maioria dos países que usam o registro religioso restringem a contratação de cristãos para cargos públicos. O sistema sustenta a discriminação.

No Líbano, a conexão entre o sistema religioso e o sistema eleitoral é uma das maiores causas de disfuncionalidade política. No geral, a população está desiludida com a situação atual. O clamor pela mudança cai em um dilema: os políticos que causam os problemas não estão dispostos a realizarem as mudanças necessárias para resolver a situação. Em busca de benefícios próprios ou de seus achegados, eles acabam atuando para preservar seu aparente poder, prestígio e posicionamento, em vez de se focarem em governar para o bem de todos. A situação libanesa exemplifica como a segregação da sociedade, medida pelas linhas religiosas, pode ter consequências negativas profundas para todos.

Paz e reconciliação

Declara-se com frequência de que o Islã é uma religião de paz. O que “paz” quer dizer aqui? É possível interromper um conflito armado quando um lado se rende incondicionalmente ao outro. Isso traz “paz”, no sentido de terminar um conflito. No entanto, o lado vencedor pode impor as condições que que quiser aos seus conquistados. Isso não garante a paz no sentido de relacionamentos estáveis, harmoniosos e respeitosos dentro da comunidade.

No Egito, desentendimentos entre comunidades são frequentemente seguidas de uma “reunião de reconciliação”. Em situações envolvendo cristãos e muçulmanos, no geral, os muçulmanos buscam termos draconianos que marginalizam e colocam os cristãos em desvantagem, independentemente dos méritos da situação. Em casos assim, comportamento criminoso é ignorado, até exonerado. O registro religioso está no centro de tais práticas, criando um contexto no qual as pessoas que formam o grupo majoritário acreditam que tem o direito de explorar os outros. O sistema mina o primado do direito.

Atualmente grande parte da violência e exploração no Oriente Médio posiciona um grupo de muçulmanos contra outro. As principais vítimas do extremismo islâmico são os “muçulmanos do tipo errado”, em outras palavras, os muçulmanos do lado oposto do grupo agressor. Frequentemente cristãos e outros grupos religiosos não-muçulmanos acabam sendo vítimas do fogo-cruzado.

Os apêndices do livro oferecem um resumo das origens das diversidades do islamismo, cristianismo e judaísmo: política, geografia e teologia, todos têm seu papel na história das três religiões. Um dos desafios atuais é saber se essas diversidades devem ser celebradas ou lamentadas, respeitadas ou subjugadas.

Sinais de esperança

E então, há esperança para o futuro? O livro aponta diversos acontecimentos positivos ao longo dos últimos anos.

No Egito, a tal “questão de reconversão” foi resolvida em 2011. Os “reconvertidos” são as pessoas que eram registradas como cristãs, mas que, por algum motivo, mudaram para o islamismo. Em 2011, o direito de reverter o registro para o cristianismo foi claramente estabelecido, após um processo que levou diversos anos. Mais de quatro mil pessoas fizeram parte da ação coletiva que garantiu esse direito, cuja implementação ocorreu sem problemas.

Em fevereiro de 2015, as autoridades palestinas removeram o registro religioso das carteiras de identidade, citando a legislação palestina básica de 2002, que estabelece que não deve haver discriminação por motivos de sexo, etnia, visão política ou religião.

O rei Abdullah da Jordânia é um de diversos líderes políticos que está no poder há bastante tempo e que encoraja os cristãos do Oriente Médio a ficarem em seus países. Tais afirmações devem ser bem recebidas, apesar de parecem incompatíveis com as histórias contadas no livro sobre a discriminação de cristãos na Jordânia e a dureza do sistema judiciário contra àqueles que se converteram do islamismo.

Implicações práticas e missionárias

As pessoas que apoiam a evangelização no Oriente Médio através da oração ou por meio de outras ações precisam saber dos desafios enfrentados pelos que se convertem a Jesus. Os convertidos irão enfrentar “crises de identidade” ao viverem e adorarem como cristãos enquanto o Estado os considerar muçulmanos, afinal seu registro não é compatível com sua crença. Os principais pontos de pressão são: casamento, nascimento dos filhos (uma vez que em suas certidões de nascimento serão registrados como muçulmanos), e quando as crianças começam a ir para a escola. Os filhos serão tratados como muçulmanos pelo Estado, apesar de terem sido criados como cristãos. Os desafios na questão de identidade são profundos.

Os líderes cristãos do Oriente Médio pedem que trabalhemos para que os cristãos possam continuar a viver onde vivem e que sejam parte de uma igreja crescente.[2] Em alguns poucos casos, a perseguição religiosa obriga os cristãos a emigrarem, no entanto, esta não é a regra, mas a exceção.

Há diversas implicações para os cristãos do Oriente Médio. O registro religioso faz com que os cristãos sejam tratados como cidadãos de segunda classe, e isto está instigando alguns a emigrarem. Em alguns locais, esta situação causa dificuldades operacionais para os prédios onde estão as igrejas. Em muitos locais, isto causa dificuldades para integrar pessoas convertidas ao cristianismo às igrejas. Em algumas partes do Oriente Médio, a maioria dos cristãos hoje são convertidos oriundos do islamismo. Esta realidade mudará a forma em que a igreja opera.

Aqueles que tem acesso aos círculos de políticas devem pedir que os efeitos do registro religioso sobre a sociedade sejam observados e que a formulação das políticas inclua soluções. Isto se não se aplica somente às políticas do Oriente Médio, mas também a outras regiões que mantém relações com países do Oriente Médio. Soluções locais autênticas devem ser identificadas e implementadas para o benefício de todos. Os governantes da região que se interessam por saciar o desejo da população por mais dignidade e melhores empregos deveriam tratar dos efeitos negativos do registro religioso que afeta o âmbito econômico e cultural, além da criatividade social.

Qual é o caminho a percorrer?

O parágrafo de abertura do livro faz menção ao pedido de ajuda de um líder cristão do Oriente Médio: “Ajude-nos a encontrar um caminho”. Os desafios para as pessoas que se convertem ao cristianismo são claros, no entanto, muitas pessoas, incluindo os líderes de igrejas, apoiam a situação atual. Destacar o fato de que o sistema de registro religioso atual viola as leis internacionais provavelmente não irá motivar mudanças. O livro, portanto, descreve os efeitos negativos na sociedade como um todo e estimula todas as pessoas, com ou sem religião, a buscarem soluções autênticas locais para o benefício de todos.

Endnotes

  1. Identity Crisis – Religious Registration in the Middle East [Crise de identidade – o registro religioso no Oriente Médio, em tradução livre] escrito por Jonathan Andrews, disponível em versão tradicional e eletrônica, em inglês, através do site da editora: www.GileadBooksPublishing.com/identity-crisis. É possível contatar o autor através do e-mail JonathanAndrews@pobox.com.
  2. Nota do editor: leia o artigo em inglês escrito por um pastor sírio ‘The Crisis in Syria’ [A crise síria, em tradução livre] na edição de janeiro de 2015 da Análise Global de Lausanne.

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