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Evangelho Global, Era Global: O discipulado cristão e a missão na era da globalização

Os Guinness & David Wells 13 jul 2010

Editor's Note

Observação do Editor: Este Documento Avançado de Cape Town 2010 foi escrito por Os Guinness com o objetivo de oferecer um panorama do tema a ser discutido na sessão Multiplex intitulada “Globalização.” Os comentários sobre este documento feitos através da Conversa Lausanne Global serão enviados ao autor e a outras pessoas para que se chegue ao formato final a ser apresentado no Congresso.

A “Globalização” é um desafio monumental que representa, simplesmente, a face mais crítica do “mundo” de hoje, bem como a maior oportunidade para a missão e o maior desafio que o discipulado de Jesus Cristo já enfrentou, desde os apóstolos do primeiro século. Nunca a visão “do evangelho todo para o mundo todo através de toda a igreja” esteve tão próxima e, no entanto, esta visão nunca foi tão contestada.

A força de dois gumes da igreja

Como cristãos, e como igreja de Jesus Cristo, somos chamados por nosso Senhor para “estarmos no” mundo, mas não para “sermos do” mundo. “Não somos mais” quem éramos antes de conhecer a Cristo, e “ainda não somos” o que seremos quando Cristo voltar. Este estimulante chamado à tensão, tanto no tempo quanto no espaço, jaz no coração da nossa fé. Individual e coletivamente, devemos viver no mundo com uma postura de Sim e Não, de afirmação e antítese, “contra o mundo/a favor do mundo”.

Esta tensão é crucial à fé da igreja e à sua integridade e eficácia no mundo. Quando a igreja de Cristo permanece fiel ao seu chamado, vive em uma tensão criativa, pré-requisito de seu poder transformador na cultura e na história. Porque a fé cristã, sem embaraço nenhum, certifica o mundo e tem um recorde inigualável em sua contribuição à educação, à filantropia, às reformas sociais, à medicina, ao despertar da ciência, à emergência da democracia e dos direitos humanos, assim como à construção de escolas, hospitais, universidades, orfanatos,

e outras instituições beneficentes. No entanto, ao mesmo tempo, a fé cristã também nega o mundo, defendendo o papel de profetas assim como de pregadores, o sacrifício assim como a realização, a importância do jejum assim como o banquete, e defendendo a exposição e oposição ao mundo quando suas atitudes contrariam os mandamentos de Deus e os interesses da humanidade.

Não nos surpreende, portanto, que tenha sido constante na igreja a tentação de relaxar esta tensão de um lado ou do outro, de tal maneira que os cristãos de diferentes épocas têm, às vezes, tantos elementos do mundo, que acabam sendo “do mundo”, e tantos elementos que não são do mundo, que acabam tornando-se “sem utilidade para o mundo”. Em qualquer uma das opções, tal infidelidade significa que a igreja se enfraquece, mas a infidelidade na direção do mundanismo é pior do que a fraqueza, pois coloca a igreja, assim como Israel no Antigo Testamento, sob a sombra do julgamento de Deus.

Este desafio leva consigo uma implicação inevitável: A fé cristã em qualquer geração exige uma compreensão clara do mundo de seu tempo. A visão bíblica do “mundo” tem muitas dimensões, que vão do mundo que Deus criou e ama, ao mundo que “resiste contra” o reinado de Cristo, para o qual deveríamos ter várias respostas apropriadas. Sob um ponto de vista positivo, compreender o mundo é algo inerente e exigido por nosso desejo de testemunhar, porque a comunicação sempre pressupõe compreensão do contexto. Sob um ponto de vista negativo, compreender o mundo é algo inerente e exigido pela vigilância contra os perigos do mundanismo, pois somente podemos evitar o que compreendemos bem.

Estamos aqui reunidos na Conferência Cape Town 2010, cem anos após a grande conferência missionária de Edimburgo, em junho de 1910.  Seria verdade afirmar que a visão e a iniciativa missionárias de Edimburgo têm sido gloriosamente justificadas e cumpridas no emergir da igreja global durante os últimos cem anos. Mas deve-se também dizer que o ponto cego trágico da Conferência de Edimburgo foi sua falta de autocrítica em relação a sua própria posição no mundo, e em particular, seu fracasso em reconhecer sua escravidão às poderosas ilusões do “Mundo Cristão” Europeu, pouco antes de seu colossal colapso nas Guerras Mundiais, o repúdio ao imperialismo, e sua própria auto-induzida secularização. Embora hoje não sejamos mais oniscientes do que nossas irmãs e irmãos que se reuniram em Edimburgo, devemos nos empenhar em ser mais autocríticos através da compreensão do nosso mundo e de nosso lugar nele.

Fazendo as pazes com a “globalização”

O que é, então, “o mundo” de nossos dias? Sem qualquer sombra de dúvida, a simples e mais forte expressão da face do mundo de nosso tempo – o avançado mundo moderno do início do século vinte e um – é a globalização, processo pelo qual a interconectividade expandiu-se a um nível verdadeiramente global. Há muitas pessoas, como, por exemplo, os escritores da revista The Economist, que atribuem a globalização à propagação do capitalismo de mercado em todo o mundo, e utilizam a palavra somente como um sinônimo desta expansão. Mas isto, além de demonstrar interesses pessoais, está errado. A globalização é um processo multidimensional e o principal agente em sua expansão atual não é o capitalismo, por mais poderoso e importante que seja, e sim, a tecnologia de informação. No centro da onda atual de globalização estão as “três forças S”: speed – VELOCIDADE (a capacidade de comunicação instantânea), scope – ESCOPO (a capacidade de comunicar-se com o mundo todo), e simultaneity – SIMULTANEIDADE (a capacidade de comunicar-se com vários lugares ao mesmo tempo). Juntas, estas forças têm moldado nosso “mundo conectado” e produzido um impacto triplo sem precedentes sobre a vida humana: a aceleração, a compressão e a intensificação da vida humana na Terra em todo o mundo global.

Considerar “sem precedentes” os níveis atuais de globalização é apropriado, mas estes níveis devem ser qualificados imediatamente. A globalização é única na história até agora, mas há muitos precedentes de movimento em sua direção, incluindo a expansão missionária das grandes religiões do mundo, o impacto dos avanços nos transportes e a ampliação das redes de contatos criadas pelo comércio, e os efeitos abrangentes das conquistas militares e imperialistas. Da mesma forma, há grandes avanços ocorridos em outros tempos que podem ser considerados de impacto revolucionário sobre a vida humana, tais como a invenção da escrita, do alfabeto e da roda.

Desta forma, se analisada a partir de uma perspectiva histórica mais distante, a avançada globalização moderna é apenas a última de uma série de ondas na expansão da interconectividade humana. Mas, se analisada a partir de uma perspectiva mais próxima, a globalização representa uma mudança importante que vai da Revolução Industrial, centrada na produção e caracterizada pela fábrica, para a Revolução da Informação, centrada na comunicação e caracterizada pelo computador.  Nos dois casos, devemos levar em consideração tanto a continuidade e a descontinuidade com o passado, e precisamos fazer nossas afirmações sobre o presente com precisão e humildade.

Não é necessário dizer que a globalização propõe um desafio tanto a precisão quanto a humildade, e que precisamos começar evitando os dois perigos opostos mas semelhantes no qual muitos caem: a excessiva atitude “Uau!” dos líderes de torcida e o excessivo “trevas e morte” dos rabugentos (que, em seu ponto de vista cristão, enxergam a globalização como precursora do “fim dos tempos”). Em qualquer época, há três tarefas a serem enfrentadas pelos cristãos que desejam lutar contra o mundo de seu tempo e viver como fiéis seguidores do Caminho de Jesus.

A primeira tarefa é discernir, e assim, fazer uma descrição precisa das realidades do mundo onde nos encontramos.

A segunda tarefa é avaliar, e assim, pesar os prós e os contras, o benefício e o custo do mundo como um todo, assim como dos elementos e aspectos individuais deste mundo, todos avaliados a partir do contexto da visão bíblica de mundo.

A terceira é envolver-se e, assim, entrar no mundo como discípulos de Jesus chamados para ser sal e luz, usando com gratidão o que há de melhor no mundo como presentes de Deus, e evitando diligentemente o pior deste mundo. Ou como a igreja no passado expressava, devemos “despojar os Egípcios de seu ouro,” como o Senhor ordenou a Israel, mas nunca edificar “um bezerro de ouro,” como Israel mais tarde foi julgado por fazer.

É fácil dizer, mas, graças à globalização, estas tarefas cristãs básicas são mais difíceis de serem realizadas do que jamais foram. A história é sempre mais complexa do que podemos entender, e prossegue não pela simples influência de certos fatores, mas por sua complicada interação e através das ironias de suas conseqüências não intencionais. A globalização apenas aumenta nossa dificuldade de compreender, porque, por sua própria natureza, ela significa que nós, que somos finitos, hoje, temos que lidar com todo este mundo; em outras palavras, um mundo que está sempre muito além de nossa total compreensão. E estamos lidando com o mundo enquanto ele se comunica e se transforma a uma velocidade sem precedentes; em outras palavras, um mundo que pode ter mudado antes mesmo que tenhamos terminado de descrevê-lo.

Uma segurança é lembrar que muitas de nossas melhores descrições sempre exigem lembretes imediatos. Primeiro, a globalização quase sempre envolve duas forças que se contrabalançam, e não simplesmente uma:  se o mundo é “universal” de muitas maneiras, ele é também “local” de muitas maneiras (o que ajudou a cunhar o estranho termo “glocal”, usado para descrever o impacto do global sobre o local e do local sobre o global). Em segundo lugar, em cada nova tendência sempre há vencedores e perdedores,  e os cristãos que honram o seu Mestre nunca devem perder de vista o pobre, o oprimido e os economicamente excluídos, especialmente os que são pegos pelas desigualdades selvagens do mundo globalizado. Terceiro, há “modernidades múltiplas”, ou diferentes formas de ser moderno,  o que torna o velho adágio “Globalização igual à Ocidentalização, igual à Americanização” não apenas um conceito errado, mas também perigoso. Culturas diferentes, com sua própria história e seus próprios valores, são capazes de se adaptar ao mundo moderno à sua própria maneira, e podem sempre tentar dizer Não ao que é considerado “progresso”, e não dizer simplesmente Sim.

A fé Global por excelência

O ponto crucial e supremo de toda a discussão é que a globalização tem especial relevância para os cristãos, porque a fé cristã é uma fé essencialmente global. Para qualquer observador da cena global, certos fatos são evidentes e estão acima de qualquer questão: A fé cristã é a primeira religião verdadeiramente global do mundo. Os cristãos são o grupo mais numeroso de religiosos do mundo. A igreja cristã é a comunidade mais diversificada da Terra. A Bíblia é o livro mais traduzido da história. E em muitas partes do mundo, a fé cristã é a que mais cresce no mundo, especialmente quando o crescimento baseia-se na conversão, e não na taxa de natalidade. E assim por diante.

Tais fatos não são acidentais, porque a globalização é parte integrante da fé cristã. Por um lado, a fé cristã era global antes da criação do termo, iniciando não apenas com a Grande Comissão a todo mundo, mas com a promessa a Abraão de que ele seria pai dos fiéis e uma benção para todo o mundo. Por outro lado, a igreja cristã tem sido uma das maiores “portadoras” da globalização através da história, como por exemplo, na expansão missionária da igreja do primeiro século, nas missões protestantes do século dezenove e na evangelização de todo o mundo pelas igrejas de todas as partes do mundo. O trabalho extraordinário das igrejas coreanas é um exemplo contundente. E por outro lado ainda, as ONG (organizações não governamentais) cristãs, tais como a Visão Mundial, Opportunity International, Compassion, Food for the Hungry e a International Justice Mission, geralmente, são portadoras pioneiras da globalização no mundo hoje.

Reunidos estes fatores, fica claro que, se a igreja cristã cumprir o seu chamado e proclamar o Evangelho em sua totalidade, ela será portadora natural do Evangelho global, na era global: “a melhor notícia de todos os tempos” para toda a humanidade. Estes são, nada menos, que nosso privilégio e nossa responsabilidade na era global.

Principais transformações

Nosso foco principal no Congresso Lausanne na Cidade do Cabo serão as implicações da globalização para o discipulado e para o evangelismo. Mas é crucial enfatizar que a globalização está transformando praticamente todos os aspectos da vida humana no planeta, e todas estas transformações têm influência sobre o discipulado e o evangelismo, de uma maneira ou de outra. Algumas das principais transformações que exigem mais atenção estão resumidas brevemente a seguir:

  • Nosso senso de tempo em um mundo de “vida acelerada”, somos a primeira geração a viver a uma velocidade acima da compreensão humana (“negócios à velocidade da luz,” e coisas do gênero);
  • Nosso senso de lugar, quando o espaço é “comprimido”, a geografia é “abolida”, e podemos nos comunicar instantaneamente com qualquer lugar do mundo, e viajar a qualquer lugar em 24 horas;
  • Nosso senso de realidade, quando a vida é cada vez mais “intermediada”; o “virtual” substitui o natural, e os relacionamentos face a face dão passagem à interação virtual;
  • Nossa noção de identidade, quando o definitivo e permanente transforma-se em “infinitamente multiforme” e numerosas “mudanças de identidade” oferecem identidades coletivas para os que sofrem com a transformação das identidades tradicionais;
  • Nossa experiência de família, quando os laços sociais de união se “desfazem”, os papéis tradicionais de cada sexo são desafiados e substituídos, e o disfuncional torna-se normal;
  • Nossa experiência de comunidade, quando o que era face a face passa a ser “virtual e imaginado”;
  • Nossa experiência de trabalho, quando a globalização torna frágil a segurança do emprego, e as “carreiras de portfolio” tornam-se a norma;
  • O lugar da religião na vida moderna, quando a religião tradicional é “des-monopolizada” e “des-territorializada”, e a religião torna-se “religiosidade” ou uma vaga “espiritualidade”;
  •  O desafio de outras religiões e, especialmente, de “viver com nossas mais profundas diferenças” na emergente “praça pública global”;
  • O lugar da política, quando o “supranacional” sobrepõe-se ao nacional, e os estados da nação são disputados por muitos agentes da globalização;
  • O desafio de trabalhar na direção de uma “autoridade global sem um governo mundial”;
  • A tarefa da liderança em uma era interconectada, em que os líderes lidam com “todo o mundo o tempo topo”;
  • A natureza do conhecimento, com a explosão da informação, a “generalidade” substitui a especialização, e a Internet torna-se uma “lata de lixo” e, ao mesmo tempo, uma “mina de ouro”;
  • O poder do consumismo e a transformação do desejo humano, seu apelo para comoditizar tudo, e seu grande acúmulo de dívidas e de lixo;
  • A proliferação de ideologias, e especialmente das novas ideologias ferozmente pró-globalistas, tal como o capitalismo neoliberal, ou ferozmente anti-globalistas, tal como o “pós-colonialismo”;
  • A viagem na modernidade e a vasta indústria turística global, que têm gerado males como o “turismo sexual”, a migração moderna e a “manufatura de pessoas descartáveis” como os milhões deixados sem teto, sem identidade, sem emprego, e sem pátria em campos de refugiados;
  • Nossas atitudes em relação ao planeta Terra, quando a degradação expõe a sua fragilidade não renovável;
  • Nosso senso de gerações, quando o ritmo de vida estimula a “presunção das gerações” e a miopia que a afasta da sabedoria dos idosos e do passado;
  • Nossa atitude diante da tradição e da mudança, quando a novidade e a moda derrotam a sabedoria, os costumes e os “hábitos do coração”;
  • A dominância das emoções mundiais, como o medo e as fofocas desmedidas, que se transformam em terrorismo e alarmismo;
  • A importância e a escala do mal, do sofrimento, do crime e da opressão globalizados, e as múltiplas consequências para a justiça e a compaixão, e principalmente, o tráfico global quer seja de sexo,  de órgãos, e até de seres humanos;
  • A escalada exponencial dos efeitos colaterais globais, e de suas consequências não intencionais, dos resultados desconhecidos e dos “cisnes negros”;
  • A perspectiva para a raça humana, incluindo a degradação da Terra, a destruição potencial do planeta, a extinção da espécie humana, e a questão do “futuro pós-humano”;

Uma descrição apropriada destas transformações profundas vai muito além da abrangência deste breve ensaio introdutório. Mas tais conseqüências nunca devem ser esquecidas, pois elas definem o mundo onde vivemos e onde testemunhamos o nosso Senhor. Entretanto, nosso foco, aqui está em duas áreas centrais: globalização e discipulado, e globalização e missão.

O discipulado cristão na era global

Se a globalização tem dimensões tanto locais quanto globais, e se os seus imensos benefícios estão atrelados a sombras extraordinárias da forma como estão, então, ela representa desafios  complexos para o discipulado cristão. Como avaliamos os benefícios e o preço como seguidores de Cristo? E como avaliamos este mundo que vive em nossa consciência, tanto na macro quanto na micro visão?

  • Se a Igreja for fiel ao seu chamado, pensará globalmente. Caso contrário, será mais provinciana do que seus vizinhos não cristãos e, o que é pior, infiel ao chamado do Evangelho.
  • A consciência global tende a relativizar e, consequentemente, diminuir todas as afirmações de verdade absoluta, porque a aceitação de outras religiões e visões de mundo mina a possibilidade de que qualquer uma delas possa ser verdadeira de fato;
  •   O capitalismo e a tecnologia estão se unindo para produzir abundância sem paralelos nos países desenvolvidos, levantando questionamentos para a fé cristã. Paradoxalmente, nesses países as pessoas nunca tiveram tanto para viver e tão pouco pelo que viver; nunca experimentaram tamanha abundância obtida através de produtos de baixo custo de produção e, no entanto, os níveis de depressão, ansiedade e solidão nunca foram tão altos. Com freqüência, os cristãos destes países não se distinguem dos não-cristãos na maneira como pensam e vivem; primeiro, quanto à riqueza e depois, indo além, quanto ao significado da vida e do que constitui uma “boa vida.” Esta conseqüência da globalização é agora mais óbvia no Ocidente, mas se tornará um desafio onde quer que o mundo esteja se modernizando.
  • Em um mundo conectado eletrônica e virtualmente, a tendência é que diminua o relacionamento humano face a face e que aumentem os “relacionamentos virtuais” e a rede de contatos sociais. Há um questionamento se as pessoas ainda devem “ir” à igreja. Mas, é a “igreja” meramente uma “comunidade imaginada” que existe somente no etéreo? E como este “mundo intermediado” impacta o discipulado moldado na realidade de carne e sangue da Encarnação?
  • Numa época em que o poder do “mundo” não tem precedentes no que se refere à sua pressão e invasão, a tendência é que expressões da fé cristã (e também de outras religiões) sejam atraídas aos extremos de um fundamentalismo que desafia o mundo ou de um de revisionismo liberal que se acomoda ao mundo. Se o primeiro desenvolve caminhos de vida contraditórios ao Caminho de Jesus, o segundo leva a uma negação descarada da histórica adoração cristã a Jesus, à promoção do que a Bíblia condena como “outro evangelho”, e ao fim da missão cristã por completo. A fidelidade ao exemplo contrastante entre “estar no mundo” mas não “ser do mundo” é mais vital do que nunca.

A Missão cristã na era global

As crescentes oportunidades para missão e evangelismo na era global são imensas e óbvias. Os cristãos são, por definição, grandes comunicadores, e, por definição, a era global é  a grande era da comunicação; portanto, o potencial de evangelismo no mundo global dificilmente será superestimado. Com a destruição das tradições, o colapso das certezas tradicionais e a destruição dos papeis e das alianças tradicionais, há uma maior liberdade política, maior fluidez social, maior diversidade religiosa e maior vulnerabilidade psicológica já vistas na história. Como resultado, os seres humanos na era global têm sido descritos como “propensos à conversão” e mais abertos do que nunca a considerar novas crenças. Assim sendo, nós enfrentamos a perspectiva de proclamar o Evangelho de uma maneira “mais livre, mais rápida e em locais mais distantes” do que em qualquer outro momento na história da igreja, uma perspectiva que deve ser abraçada com fé e coragem.

Ao mesmo tempo, seria ingênuo não perceber que os crescentes desafios à missão e ao evangelismo são igualmente poderosos, e devem ser encarados francamente. Os nove temas seguintes são exemplos do tipo de desafios que devemos considerar na era global.

  • A tentação política: Com a crise geral da fé no mundo avançado moderno, a tentação política hoje é diferente daquela de Edimburgo 1910, ou da igreja sob Constantino em 312 d.C. Em um extremo, mais comum no ocidente, a tentação é ver a fé cristã como a melhor maneira de defender o status quo e de apoiar as culturas que estão sob tensão. No outro extremo, mais frequente fora do Ocidente, a tentação é ver a fé cristã como uma variante da crítica pós-colonial, justificando o preconceito, canalizando a ira e incitando a amargura, na tentativa de promover a transformação social.

Em qualquer dos extremos, a história demonstra ser quase ineficaz para a cultura e desastrosa para a igreja. E no processo, a fé cristã fica pressionada a serviço de uma ou outra ideologia política, perdendo a característica distinta de ser o caminho de Jesus, e terminando como o capelão da corte para os poderosos da época. Ambos extremos precisam ser cuidadosos com a idolatria da política no mundo moderno, e considerar a máxima: “A primeira coisa a dizer sobre a política é que política não é a primeira coisa.”

  • Crise de Plausibilidade: Sempre que indivíduos cristãos e igrejas locais se tornam mundanos ao caírem cativos na cultura que os cerca e, especialmente, no espírito e nos sistemas do mundo moderno, eles representam uma “crise de plausibilidade” para o Evangelho na melhor das hipóteses, e a “hipocrisia” na pior delas.
  • Os pontos negativos da era da comunicação: Entre as características comuns da era da comunicação estão muitas deficiências graves na sua missão;  por exemplo, o domínio do modo de entretenimento, as frases de impacto como estilo, os apelos sensacionalistas, a atenção comum somente aos sentimentos, a “desatenção” generalizada de um mundo onde “todos falam e ninguém ouve,” a “inflação” de idéias e fontes para que sejam apenas “palavras, palavras, palavras”, e a confiança geral na comunicação intermediada em substituição da comunicação face a face, exemplificada na Encarnação. Considerando que os cristãos usam a mídia moderna sem uma visão crítica, eles reduzem o Evangelho a mais um discurso de vendas, entre muitos outros.
  • O efeito letal da secularização: “Nem só de pão vive o homem,” disse Jesus, mas, graças ao poder e à genialidade das técnicas e percepções modernas, nenhuma geração chegou mais próxima da ilusão de ser capaz de fazê-lo, incluindo a habilidade de desenvolver igrejas e realizar o evangelismo eficaz baseado apenas na força da ingenuidade humana, sem nenhuma necessidade genuína de Deus.

Em parte, esta não é a razão pela qual a diferença mais marcante entre a igreja primitiva e a igreja moderna seja a falta de poder sobrenatural na igreja moderna, e que haja tanta falta de oração, discernimento espiritual, e capacidade para cura, libertação e batalha espiritual?

A secularização significa que, no mundo avançado moderno, vivemos em “sem janelas”, fazendo com que para muitos cristãos modernos, o que não é visto acaba se tornando irreal. Assim, é possível para nós vivermos como “ateus funcionais”, e cada vez mais “deixemos de ter necessidade de Deus”, e missões sejam comandadas pelas estatísticas, pela demografia, e pelo “revelar” o Evangelho “aos que não foram alcançados”, em vez de ser comandada pela paixão tradicional por Cristo e pelos “perdidos.”

Ao mesmo tempo, o mundo pluralizado amplifica os temores que cercam os desafios de viver com diferenças religiosas profundas; por isso a religião é vista como divergente, e o evangelismo, como “proselitismo” sem fundamento e politicamente incorreto.

  • O toque de Midas do consumismo: Em um mundo onde o consumismo é a face popular da economia capitalista dominante, o marketing e a gestão de marcas são essenciais para o crescimento econômico, e tudo pode ser comprado e vendido como “commodity”, o Evangelho pode facilmente ser distorcido quando apresentado ou percebido como um “produto”, e o stress sobre o marketing pode acabar tornando “a platéia” soberana sobre a mensagem. No melhor cenário, o resultado é o evangelismo superficial e o discipulado deficiente. No pior cenário, é infidelidade ao Evangelho e confusão e escândalo para aqueles a quem tentamos alcançar.

Dois perigos em particular precisam ser destacados aqui. Um deles são as distorções sutis do Evangelho nas várias formas do moderno “raciocínio de possibilidade”, e o outro são as distorções crassas e vis do Evangelho em suas várias formas de “Evangelhos para a saúde e riqueza” ou “prosperidade”, que agora são exportados dos Estados Unidos para as regiões do Sul Global, com efeitos perniciosos tanto para o evangelho quando para os necessitados.

  • O ídolo da linha cronológica do tempo: Em um mundo de “vida-acelerada”, onde nos importamos menos com o passado, mais com o presente que nos é trazido via “informação completa e instantânea”, e, acima de tudo, com o futuro, é fatal que caiamos nas ilusões e na idolatria alimentada pela época moderna avançada, assim como as seduções de “relevância”, o chamado para o ideal de “inovação” incessante (“Há dois tipos de igreja: aquelas que estão se transformando, e aquelas que estão saindo do ramo”), e o apelo constante de novidade (“O mais novo é mais verdadeiro, e o mais recente é o melhor”). A velha máxima ainda é verdade: “Aquele que se casar com o espírito desta era logo se tornará viúvo.”
  • A pressão do “O Movimento dos Movimentos”: A maioria dos grandes movimentos de reforma social na história, tais como a abolição da escravidão, foram inspirados na fé cristã e liderados por pessoas de fé. Entretanto, isto é diferente na era global, quando os problemas globais de todos os tipos inspiraram movimentos globais de todos os tipos com participantes de todas as crenças: o chamado “movimento dos movimentos.” Em um mundo assim, é bem-vindo o retorno a uma antiga paixão evangélica pela justiça social, como exemplificado por grandes evangélicos como William Wilberforce, reconhecido como o maior reformador social da história. Mas, assim como foi considerado negação do Evangelho enfatizar o “Evangelho simples” à custa do “Evangelho social” – uma negação muito bem corrigida em Lausanne I – agora, também considera-se negação do Evangelho enfatizar o último à custa do primeiro, e falar sobre a justiça mas hesitar sobre o escândalo da Cruz e o poder salvador de Cristo.
  • Criar e contribuir em lugar de criticar e reclamar: Num mundo onde os insatisfeitos com a globalização tornam-se mais e mais evidentes, e o medo tornou-se a mais dominante emoção em todos os lugares, é mais fácil criticar e reclamar em vez de criar e contribuir. No entanto, não é apenas o mundo que clama por esperança e soluções práticas, assim o faz também o imperativo do mandato cultural presente em toda a Bíblia.

Entre os muitos temas sobre os quais os Evangélicos têm recursos bíblicos e experiência histórica para discorrer construtivamente está o tema da civilidade falsificada na emergente “praça pública global”. Considerando que alguns cristãos ocidentais estejam sendo atacados como parte do problema da religião e da vida pública, a defesa apropriada da liberdade de consciência e de religião para pessoas de todas as crenças faria parte da resposta, não apenas para o nosso próprio bem, mas pelo bem maior e shalom da humanidade. O Congresso Lausanne III na Cidade do Cabo poderia assumir a liderança neste momento.

Em suma, enquanto o mundo global oferece oportunidades sem precedentes para alcançar povos e regiões do mundo que nunca foram alcançados, ele realça o contraste entre a sabedoria do mundo e a tolice do Evangelho a um nível desconfortável e desencorajador. O evangelismo na era global aparenta ser mais fácil, e sob vários pontos de vista realmente é, mas o discipulado é inquestionavelmente mais difícil, assim como é custoso o evangelismo encarnacional exemplificado na vida e na morte de Jesus, e não na genialidade das técnicas e das percepções modernas.

Servindo a Deus em nossa própria geração

Cada geração está tão próxima de Deus quanto qualquer outra, e somos responsáveis somente por nossa própria geração. No entanto, afirma-se que a geração dos jovens que estão entrando na vida adulta hoje é a “geração confronto”, no sentido de que muitas das tendências globais dos nossos dias estão convergindo para criar desafios inéditos para a humanidade. Quer isto seja verdade ou engano, não é demais afirmar que a globalização representa a maior oportunidade para o Evangelho desde os apóstolos, assim como o maior desafio ao Evangelho desde os apóstolos, e que devemos responder com fé e coragem.

Acima de tudo, devemos enfrentar tanto as oportunidades quanto os desafios da globalização como povo unido de Deus. Em particular, e recordando o trágico ponto cego da Conferência de Edimburgo em 1910, devemos evitar o perigo do aspecto mundano do poder em suas duas formas iguais e opostas.  Por um lado, não podemos confundir a divulgação do Evangelho com a divulgação do poder ocidental, não devemos confundir a postura profética contra o poder Ocidental com as premissas e preconceitos do “pós-colonialismo” antiocidental.

Com o poder ocidental em visível declínio, temos menos desculpas para a primeira confusão do que em Edimburgo, embora o poder econômico e cultural do Ocidente possa durar mais que seu domínio político e militar. Em muitas partes do mundo, a tentação atual é acreditar na confusão oposta apresentada pelo pós-colonialismo, mas isto colocaria cristãos contra cristãos em nome da suspeita, da inveja e do ressentimento. E também dividiria a igreja conforme os mesmos parâmetros como “o ocidente” versus “o resto”, “o Norte Global” contra o “Sul Global”, ou as igrejas do mundo “mais desenvolvido” contra as igrejas do mundo “menos desenvolvido”. Tais definições e limites “acidentais” e extrabíblicos foram o erro cometido em Edimburgo à luz da noção artificial e territorial de “Mundo Cristão”. Temas missionários mais recentes, tais como “Toda a igreja para o mundo todo” ou “Todos para todos e de todos os lugares para todos os lugares”, não estão mais sintonizados com a era global, e sim mais fiéis à Grande Comissão.

Todos nós agradecemos a Deus pela prova clara do crescimento espetacular das igrejas no Sul Global, com toda a sua coragem, paixão e poder do Espírito. Eles humilham o contraste demasiadamente óbvio com a evidente pobreza espiritual das igrejas do ocidente. Mas, ao mesmo tempo, humildemente, todos devemos estar cientes que muito do Sul Global ainda não está completamente modernizado e, consequentemente, não totalmente testado pelos futuros desafios e seduções da modernidade, dos quais a igreja no ocidente tornou-se cativa. O teste ainda está por vir.

Do mesmo modo, todos nós reconhecemos abertamente e nos entristecemos com a fraqueza desesperada e com o mundanismo de muitas igrejas no ocidente, e sua necessidade profunda de reavivamento e transformação. No entanto, sua triste condição pode resistir como um alerta útil a todas as igrejas de outros lugares do mundo: Não façam como as igrejas ocidentais têm feito durante os últimos duzentos anos, tornando-se cativas do espírito e sistemas do mundo moderno. Assim, todas as igrejas globais podem unir as mãos em oração com as igrejas ocidentais no momento de seu maior desafio.

E então, as igrejas globais em todo o mundo podem se tornar parceiras e juntar forças para enfrentar a tarefa de recuperar uma fé com tal integridade e eficácia, que pode prevalecer sobre os desafios do mundo avançado moderno, e assim honrar ao nosso Senhor e trazer sua Boa Nova ao mundo.

Nada menos do que isto é o supremo desafio apresentado pela globalização aos seguidores de Jesus Cristo, e nada menos do que isto é a urgência do tema que iremos explorar juntos na sessão Multiplex na Cidade do Cabo, em outubro de 2010. Para sermos francos, o tema da globalização é muito amplo e a sessão é muito curta para fazer justiça à sua dimensão. Mas seja naquele momento ou mais tarde, conforme este século extraordinário se desenrola, que possamos confiar que Deus é maior do que tudo,  inclusive a globalização,  para que confiemos em Deus em todas as situações, e possamos ter fé em Deus, e não ter medo.

© The Lausanne Movement 2010