Global Analysis

Perspectivas do cristianismo no Sul Global

Gana, Brasil, Leste Asiático e a Igreja global

Philip Lutterodt, Joabe G Cavalcanti & Loun Ling Lee jan 2023

A demografia do cristianismo continua a deslocar-se do Norte Global (Europa, América do Norte) para o Sul Global (África, Ásia, América Latina). O cristianismo no Sul Global cresce de forma tanto qualitativa como quantitativa comparado ao cristianismo do Norte Global.

Quais são os principais atributos de algumas das variedades do cristianismo no Sul Global? Que lições o cristianismo no Norte Global – especialmente do Reino Unido – pode aprender com algumas das variedades do cristianismo no Sul Global? Este artigo examina algumas características e práticas essenciais do cristianismo em Gana, no Brasil e no Leste Asiático. [1]

Uma voz da África (Gana)

O cristianismo evangélico carismático africano é bem conhecido por sua adoração vibrante e emotiva. No culto, animados cânticos de louvor são entoados em alta voz, acompanhados por palmas e danças da congregação. Cânticos de adoração solenes reflexivos também fazem parte da adoração e refletem-se na postura dos membros, que podem colocar-se em pé, sentar-se, ajoelhar-se ou prostrar-se no chão. A adoração se move livremente das línguas africanas para as estrangeiras. Tudo gira em torno de render honra a Deus por meio da declaração de seus nomes e atributos, bem como da manifestação de ações de graças pelos atos divinos de salvação do espírito, alma e corpo.

O cristianismo no Sul Global cresce de forma tanto qualitativa como quantitativa comparado ao cristianismo do Norte Global.

Em segundo lugar, o culto é marcado pela oração de guerra espiritual e pelo jejum espiritual. Na oração de guerra, o suplicante trava uma batalha espiritual contra Satanás e o reino das trevas.[2] A cosmovisão tradicional africana vê Satanás e suas forças demoníacas como a principal causa dos problemas enfrentados na vida. Para que uma pessoa seja bem-sucedida, ela precisa neutralizar os ataques de Satanás e seus agentes. O tema comum das orações de intercessão são os pedidos para que Deus abençoe o suplicante com sucesso espiritual, libertação de maldições e de alianças malignas, cura de enfermidades e prosperidade financeira. O jejum geralmente acompanha a oração. A disciplina espiritual do jejum ocorre tanto no nível individual como comunitário, envolvendo toda a igreja.

Em terceiro lugar, são característicos o biblicismo e a interpretação do texto bíblico na língua materna. A Bíblia é interpretada literalmente, é totalmente confiável e obedecida de forma explícita. Entende-se que ela é a Palavra de Deus que pode orientar a humanidade em questões de fé e prática. O estudo bíblico conduzido na língua materna muitas vezes aponta novas perspectivas bíblicas que podem repercutir positiva ou negativamente no contexto de uma pessoa.[3] Essa percepção pode ser ofuscada pelo uso de uma língua estrangeira no estudo da Bíblia. Essa interpretação da Bíblia na língua materna contribui para o discipulado eficaz dos cristãos.

Em quarto lugar, o cuidado comunitário é uma característica importante. A sociedade africana tradicional é uma sociedade que prioriza o coletivo. O interesse do grupo é mais importante do que o individual. Esse valor é assimilado na igreja, onde os membros se esforçam para garantir que as necessidades do grupo sejam atendidas. Momentos de alegria, como o nascimento de um filho, o casamento, a aprovação em uma prova ou teste e a promoção no emprego, são compartilhados com a família da fé. Da mesma forma, os momentos de tristeza, como, por exemplo, enfermidades, reprovações, demissões e luto, também são partilhados.

Em quinto lugar, a paixão pelo evangelismo, pela plantação de igrejas e pelo ministério social permeia a vida da igreja.[4] Alguns dos métodos evangelísticos são: testemunho pessoal, evangelismo de porta em porta, cruzadas e concertos musicais evangelísticos, e o evangelismo por meio de teatro, filmes e programas no rádio e na televisão. Igrejas são plantadas através do trabalho evangelístico e dos pequenos grupos nos lares que acabam formando uma nova igreja. O ministério social consiste em ações sociais (instituições educacionais e de saúde, projetos agrícolas, projetos de geração de renda, pequenas empresas) e justiça social (defesa e militância em questões de governança, políticas, econômicas, sociais, culturais e ambientais). Os fatores citados contribuíram para o crescimento do cristianismo evangélico carismático na África (Gana).

Uma voz da América Latina (Brasil)

O crescimento da igreja na América Latina contrasta com o declínio na frequência à igreja no Reino Unido e na Europa. Enquanto alguns cristãos britânicos parecem desencorajados com sua perspectiva como igreja e voltam-se para o Sul Global com esperança de renovação, os cristãos latino-americanos parecem acreditar que o Espírito Santo sopra apenas ali. As figuras da vida e da morte são usadas com frequência para contrastar a vitalidade da Igreja no Sul Global com a Igreja na Europa, como se a vida estivesse lá e na Europa houvesse apenas a morte.

O crescimento da igreja na América Latina contrasta com o declínio na frequência à igreja no Reino Unido e na Europa.

Embora o catolicismo romano seja a religião predominante na região, há uma grande lacuna entre os que se autodenominam católicos romanos e os que são, de fato, cristãos praticantes. No Reino Unido, da mesma forma, há um abismo entre os que se dizem cristãos e os que frequentam a igreja e praticam a fé. Como mostram algumas estatísticas, 20% dos latino-americanos são cristãos evangélicos. Esses números são motivo de entusiasmo para alguns e de receio para outros. Estima-se que entre 8 e 10 mil pessoas convertem-se diariamente ao evangelicalismo, a maioria vinda da Igreja Católica Romana.[5]

Pensemos no caso do Brasil, conhecido por ser um país católico-romano. O Brasil tem a maior comunidade católico-romana do mundo – mais de cem milhões de fiéis – o que corresponde a 50% da população do país. No entanto, até a década de 1970, 92% dos brasileiros se diziam católicos. Em 2000, esse percentual caiu para 73,6% e em 2010, para 64,6%. Hoje os católicos representam 50% da população brasileira. Trata-se de uma mudança grande e significativa que ocorre de forma muito acelerada.[6]

Por outro lado, em 1970, as igrejas evangélicas representavam apenas 5,3% do total. Em 2000, esse número passou para 15,5%, depois para 22,2% em 2010; hoje elas representam 31%. Alguns pesquisadores preveem que, caso essa tendência persista, até 2032 os evangélicos terão ultrapassado os católicos-romanos.[7] O Brasil continua sendo um país de maioria cristã. Outras religiões que aparecem no censo são as religiões afro-brasileiras (principalmente candomblé e umbanda) com 2%; o judaísmo com 0,3%; e o islamismo com 0,02%. Aqueles que afirmam não ter religião correspondem agora a 10% da população. Em 1970, eram menos de 1%.[8]

As denominações evangélicas no Brasil, de forma geral, podem ser divididas desta forma: 22% são pentecostais e neopentecostais, como Assembleia de Deus, Igreja Universal do Reino de Deus, Igreja do Evangelho Quadrangular, entre outras. As denominações mais históricas – batistas, presbiterianas, metodistas, anglicanas etc. – representam 7%.[9]

É evidente que tem havido um crescimento significativo do evangelicalismo no Brasil em sua vertente tradicional e, de forma mais marcante, em sua vertente pentecostal. Pode-se afirmar o mesmo a respeito da América Latina como um todo. Esse crescimento, entretanto, não resultou em uma transformação perceptível da paisagem social. Isso significa que não houve uma contribuição positiva visível dos evangélicos para promover mudanças estruturais na vida econômica, social e política. A América Latina continua sendo uma das regiões mais desiguais do mundo em termos de distribuição de riqueza.[10]

Uma voz da Ásia (Leste Asiático)

O número de cristãos na Ásia cresceu duas vezes mais rápido que a população em geral ao longo do século 20. Cerca de 60% da população global vive na Ásia, mas esta região ainda é a menos evangelizada, com 8,2% de cristãos em 2020.

A população hindu cresceu no mesmo período, embora ainda esteja concentrada no subcontinente indiano. Os muçulmanos cresceram em um ritmo um pouco mais acelerado e substituíram os religiosos tradicionais chineses como a maior religião do continente, com 27,4% da população em 2020. A Ásia tornou-se o continente menos religioso no século 20. A partir de 2020, mais de 640 milhões de pessoas afirmam não ter religião, o que representa pouco menos de 14% da população da Ásia. Agnósticos e ateus foram os que cresceram mais rapidamente.[11]

Hoje, há missionários sendo enviados de todos os lugares para todos os lugares.[12] A Ásia, antes um continente predominantemente receptor de missionários, tem hoje muitos países que também enviam missionários. O movimento missionário coreano começou em 1907. Entre 1988 e 2013, a igreja coreana emergiu como uma força líder no envio de missionários.[13] Outras missões asiáticas locais maduras incluem as missões indianas, filipinas e as chinesas no Leste Asiático.

Nos últimos anos, surgiram novas missões asiáticas de países como China, Camboja, Butão e entre as diásporas asiáticas no Ocidente. Houve, por exemplo, alguns avanços significativos no desenvolvimento do Indigenous Mission Movement (IMM) da China. A crescente participação da China no cenário global abriu oportunidades para igrejas e indivíduos cristãos. Ao mesmo tempo, a consciência missionária e o ensino nas igrejas cresceram a ponto de haver uma ênfase maior em alcançar outras culturas além das fronteiras.[14]

Outro exemplo: os treinamentos de liderança missionária para pastores e líderes no Camboja com temas como “A Missão da Igreja” e “Liderança Missionária em Contextos Budistas”. O principal grupo a conduzi-los é o Shalom Mission Cambodia, uma instituição local envolvida com as áreas de plantação de igrejas, treinamento de liderança e desenvolvimento comunitário. Sua visão é plantar uma igreja em cada província do Camboja e desenvolver discípulos verdadeiros de Jesus Cristo que transformarão suas comunidades integralmente.

No entanto, os líderes asiáticos em missões reconhecem que ainda há muito espaço para crescimento e aprimoramento. Precisamos trabalhar mais em alguns dos pontos fracos das missões asiáticas locais, tais como:

  • Sustento financeiro a missionários que, muitas vezes, não se estende no longo prazo.
  • Poucos candidatos a ministérios em áreas de menor “visibilidade”, como a tradução da Bíblia ou a interpretação cultural.
  • Falta de treinamento e desenvolvimento de liderança de missionários.
  • Falta de cuidado dos membros e de desenvolvimento pessoal.

Conclusão: O futuro das missões – Parceria e colaboração

Tendo em vista o amadurecimento significativo de igrejas e missões no Sul Global ao longo dos últimos cem anos (ainda em curso), os líderes missionários devem encorajar parcerias e colaborações interculturais maiores e mais profundas entre os africanos, os latino-americanos, os asiáticos e as missões ocidentais.[15] Assim, o cristianismo em todo o mundo será fortalecido.

os líderes missionários devem encorajar parcerias e colaborações interculturais maiores e mais profundas entre os africanos, os latino-americanos, os asiáticos e as missões ocidentais

Vamos refletir sobre a parceria e a colaboração intercultural de hoje entre, por exemplo, o Sul Global e o Norte Global na obra missionária:

  • Quais recursos e especializações as missões do Norte Global poderiam compartilhar com as missões locais do Sul Global a fim de fortalecê-las, por exemplo, nas áreas de cuidado dos membros, treinamento intercultural e desenvolvimento de liderança?
  • Que lições o Norte Global pode aprender com as missões do Sul Global? Por exemplo, nos diálogos inter-religiosos, os cristãos da Ásia têm a rica experiência de serem testemunhas eficazes de Cristo no meio de comunidades multirreligiosas.
  • As igrejas e agências do Norte Global receberão em seu meio líderes e obreiros missionários do Sul Global? Alguns chamam isso de “missão reversa”, a saber, quando nos dispomos a aprender e receber ajuda daqueles a quem, historicamente, sempre servimos.

Assim falaram os representantes do Sul Global. Gostaríamos de ouvir a resposta do Norte Global. A Igreja global é o Corpo unido de Cristo e devemos trabalhar juntos para a glória de Deus.

Notas finais

  1. Nota da Editora: Este artigo é um resumo de três apresentações na Spurgeon’s College Conference 2022 de: Philip Lutterodt, Global Christianity – A Voice from Africa: Ghana; Joabe G Cavalcanti, Global Christianity – A Voice from Latin America: Brazil; e Loun Ling Lee, Global Christianity – A Voice from Asia: East Asia.
  2. Kwabena Asamoah-Gyadu, African Charismatics: Current developments within independent indigenous Pentecostalism in Ghana (Leiden: Brill, 2005).
  3. Kwame, Bediako, Jesus in Africa: The Christian Gospel in African history and experience (Akropong-Akuapem: Regnum África, 2000).
  4. Ogbu Kalu, African Pentecostalism (Oxford: Oxford University Press, 2008).
  5. María Victoria Sotelo & Felipe Arocena, “Evangelicals in the Latin American political arena: the cases of Brazil, Argentina and Uruguay”, SN Social Sciences, Volume 1, Nº 180, 2021,https://link.springer.com/article/10.1007/s43545-021-00179-6.George Isaac Simán Gutiérrez, “The Rise of Evangelicals in Latin America: What Would Jesus Do?” Politics Today, Fevereiro 22, 2021, https://politicstoday.org/the-rise-of-evangelicals-in-latin-america-what-would-jesus-do.
  6. Brazil’s Changing Religious Landscape, Pew Research Centre Report, Julho 18, 2013, https://www.pewresearch.org/religion/2013/07/18/brazils-changing-religious-landscape/.
  7. James Roberts, “Brazil to stop being majority Catholic this year, polls suggest”, The Tablet, Janeiro 18, 2022, https://www.thetablet.co.uk/news/14909/brazil-to-stop-being-majority-catholic-this-year-polls-suggest.“Projeções indicam que evangélicos serão maioria no Brasil nos próximos dez anos”, por Redação, Junho 1, 2022,(Título traduzido pelo autor: “Projections indicate that Evangelicals will be the majority in Brazil in the next ten years”), https://correiodeminas.com.br/2022/06/01/projecoes-indicam-que-evangelicos-serao-maioria-no-brasil-nos-proximos-dez-anos/.
  8. “50% dos brasileiros são católicos, 31%, evangélicos e 10% não têm religião, diz Datafolha”, (Título traduzido pelo autor: “50% of Brazilian are Catholics, 31% Evangelicals and 10% without religion, says polls from Datafolha”), https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/01/13/50percent-dos-brasileiros-sao-catolicos-31percent-evangelicos-e-10percent-nao-tem-religiao-diz-datafolha.ghtml.
  9. “Quais são e qual o perfil das 10 igrejas evangélicas mais numerosas do Brasil”, Gazeta do Povo, Setembro 26, 2022, (Título traduzido pelo autor: “Who are the biggest Evangelical churches in Brazil and what are their profiles”), https://www.semprefamilia.com.br/religiao/quais-sao-e-qual-o-perfil-das-10-igrejas-evangelicas-mais-numerosas-do-brasil/.
  10. Daniela Fernandes, “4 dados que mostram por que Brasil é um dos países mais desiguais do mundo, segundo relatório”, BBC News Brasil, 7 dezembro 2021, (Título traduzido pelo autor: “4 data which show that Brazil is one the most unequal countries in the world”), https://www.bbc.com/portuguese/brasil-59557761.
  11. Todd Johnson e Gina Zurlo, eds., World Christian Encyclopedia, 3rd edition (Edimburgo: Edinburgh University Press, 2020).
  12. Allen Yeh, “O Futuro de Missões é de Todos para Todos os Lugares”, na edição de janeiro/2018 da Análise Global de Lausanne, https://lausanne.org/pt-br/recursos-multimidia-pt-br/agl-pt-br/2018-01-pt-br/o-futuro-de-missoes-e-de-todos-para-todos-os-lugares.
  13. Steve Sang-Cheol Moon, The Korean Missionary Movement: Dynamics and Trends 1988-2013 (William Carey Library: 2016). Steve Sang-Cheol Moon, “Missions from Korea 2016: Sustainability and revitalization”, International Bulletin of Mission Research, Abril 2016.
  14. Wu Xi, “Doing Missions with Chinese Characteristics Developments in the Indigenous Missions Movement from China”, ChinaSource Quarterly, Summer 2020, Vol. 22, Nº 1, https://www.chinasource.org/resource-library/chinasource-quarterlies/doing-missions-with-chinese-characteristics/.
  15. Kirsteen Kim, “Desbloqueando a Partilha de Recursos Teológicos entre o Norte e o Sul” na edição de novembro 2017 da Análise Global de Lausanne, https://lausanne.org/pt-br/recursos-multimidia-pt-br/agl-pt-br/2017-11-pt-br/desbloqueando-a-partilha-de-recursos-teologicos-entre-o-norte-e-o-sul.