Global Analysis

Colaboração de quem? Prioridades de quem?

Uma resposta missiológica à Declaração de Seul

Kang San Tan mar 2025

Introdução

O Movimento de Lausanne tem desempenhado um papel fundamental ao longo dos últimos 50 anos seja influenciando mudanças nas pautas missionárias seja catalisando novos rumos para a evangelização mundial. Como um documento que acompanha o Relatório de Status da Grande Comissão,1 a Declaração de Seul (SS),2 lançada no Quarto Congresso de Lausanne (2024) em Seul-Incheon, busca abordar lacunas contemporâneas que o Grupo de Trabalho de Teologia de Lausanne considerou necessárias para fortalecer e aperfeiçoar a missão global de hoje.3

O Pacto de Lausanne (LC),4 que surgiu no Primeiro Congresso de Lausanne, em 1974, foi, entre os evangélicos, um documento histórico e inspirador para a tarefa comum da evangelização mundial. O Congresso resultou em consultas temáticas importantes que abordaram questões como a singularidade de Cristo, evangelho e cultura, evangelismo e responsabilidade social. O Manifesto de Manila,5 fruto do Congresso de Lausanne de 1989, baseia-se nos fundamentos do LC ao convocar toda a igreja para levar todo o evangelho a todo o mundo. E do Terceiro Congresso de Lausanne (2010), realizado na Cidade do Cabo, África do Sul, surgiu o Compromisso da Cidade do Cabo.6 Sua contribuição foi reformular a missão como um convite privilegiado por meio de uma hermenêutica missiológica da Bíblia como a história completa da ação de Deus no mundo. Em vez de definir a Grande Comissão como o tema central da obra missionária, ele afirma que “a missão de Deus flui do amor de Deus” (CTC I-1).

A Declaração de Seul continua a se basear nas convicções teológicas centrais de Lausanne a respeito da “centralidade do evangelho” (Seção I) e da “leitura fiel das Escrituras (Seção II)” para “enfrentar os desafios específicos que a Igreja de Cristo enfrenta em todo o mundo (Seções III-VII) à medida que buscamos testemunhar fielmente nosso Senhor crucificado e ressurreto — de todos os lugares, para todos os lugares” (Prólogo SS).

No espaço limitado deste artigo, abordaremos alguns temas selecionados da SS e refletiremos sobre sua contribuição no esclarecimento de convicções teológicas para a obra missionária. O artigo, então, oferecerá uma resposta missiológica ao tema do impacto do reino em todas as esferas da sociedade no contexto pós-Congresso. Quais são os efeitos mais expressivos de tal reunião cristã global na revitalização de nossa visão de impactar o mundo para Cristo? Como vamos construir sobre os fartos recursos teológicos de Lausanne para catalisar novos movimentos missionários de todos os lugares para todos os lugares?7

O evangelho como a história que vivemos e contamos

Os sete temas identificados na Declaração de Seul buscam produzir um senso de clareza em um mundo de confusão teológica e missional — de que as convicções cristãs estão alicerçadas na Bíblia e em dois milênios de tradição cristã.

Partindo de tais fundamentos, a missão da igreja é fazer discípulos de Cristo, “anunciar e demonstrar Cristo, unida”, por meio de nossa presença cheia de Cristo, nossa proclamação centrada em Cristo e nossa conduta como a de Cristo.8

A Declaração de Seul enfatiza a importância do discipulado como elemento essencial para a missão. O documento destaca, por exemplo, problemas com o evangelho da prosperidade, falhas de liderança ou práticas entre pessoas do mesmo sexo como barreiras ao testemunho do evangelho. “A busca pela retidão em nossa vida pessoal, nosso lar, nossa igreja e na sociedade em que vivemos não pode ser separada da proclamação do evangelho, assim como o ser discípulo não pode ser separado do fazer discípulos” (SS V-73). Em vez de ler as Escrituras como verdade e depois aplicá-las à obra missionária, muitos teólogos do Sul Global tendem a interpretar a verdade em ação como experiências vividas para demonstrar Cristo. Em comparação a documentos anteriores de Lausanne, por exemplo, a SS dedica atenção considerável ao significado dos seres humanos, homens e mulheres, como criados à imagem de Deus, e como “uma unidade física e espiritual integrada” (SS IV-49). O documento destaca que a dignidade da pessoa tem implicações para a sexualidade e o casamento heterossexual. Sob a perspectiva do Sul Global, essas são consideradas questões centrais do discipulado que limitam a colaboração. Como resolver esses conflitos quando encontramos irmãos evangélicos, particularmente no Ocidente, que interpretam as Escrituras de outra forma?

A contribuição singular de Lausanne talvez seja reunir diversos grupos de líderes para “ler a Bíblia fielmente na comunhão dos santos de todos os tempos e lugares” (SS II), porém envolvendo os que estão fora da igreja.9 Nesse sentido, o Compromisso da Cidade do Cabo estrutura a missão bíblica através da narrativa completa da ação de Deus no mundo por meio do tema do amor. Como um movimento missionário, em vez de buscar um acordo sobre doutrinas (que são importantes), a principal plataforma de Lausanne (diferente das reuniões eclesiásticas) visa prover uma visão comum do evangelho para cada pessoa, igrejas discipuladoras para cada povo e lugar, líderes como Cristo para cada igreja e setor e o impacto do reino em cada esfera da sociedade. Tal colaboração não significa que os parceiros não possam confrontar uns aos outros sempre que se depararem com escândalos relacionados a poder, dinheiro e santidade na igreja ocidental ou não ocidental.

Evangelização e ação social

Embora a Declaração de Seul afirme que a missão da igreja é anunciar e demonstrar o evangelho, o Congresso não poderia deixar de lado as cinco décadas de Lausanne nas quais evangélicos debateram se o evangelismo é um aspecto central, uma prioridade ou está em pé de igualdade com a justiça, o diálogo e a ação social. O Compromisso da Cidade do Cabo esclarece que somos chamados à missão integral, e a missão do povo de Deus flui do nosso amor por Deus e por tudo o que Deus ama. “Evangelização mundial é o derramamento do amor de Deus em nós e através de nós. Nós afirmamos a primazia da graça de Deus e então respondemos a esta graça pela fé, demonstrada através da obediência em amor” (CTC I-1). A questão permanece sem solução para muitos que desejam uma posição mais decisiva.

No entanto, a forma como o Quarto Congresso foi organizado – por meio da participação em mesas de debate – permitiu que uma diversidade de vozes (geracionais, de gênero e geográficas) se envolvesse em questões críticas, sem que nenhuma posição dominante fosse apresentada. Na análise final, a missão de Deus exige que o Grande Mandamento seja incorporado à Grande Comissão (Mt 22.37-40). A eclesiologia e a forma como as Escrituras são interpretadas foram, acertadamente, as preocupações centrais dos participantes do Congresso. Este é o desafio para a obra missionária: como os evangélicos podem encarar tanto o evangelho quanto as crises do mundo como prioridades da missão? Até que ponto refletimos o coração de Deus para a missão e priorizamos seu reino na forma como tratamos os principais problemas globais hoje? Como lemos as Escrituras à luz do manifesto de Jesus para seu reino na terra (Lc 4; Mt 6.33)?

O impacto do reino em cada esfera da sociedade pós-Congresso

Nosso mundo está enfrentando muitas crises. A primeira é planetária: a criação geme com a devastadora destruição ambiental e ecológica. Em segundo lugar, estamos enfrentando uma crise de pobreza em que poder e riqueza não elevaram o shalom (plenitude de vida) para os mais pobres e marginalizados. Em terceiro lugar, enfrentamos uma crise de paz, pois os líderes políticos não conseguiram conter o aumento das guerras, das divisões étnicas e do racismo em cisões políticas e ideológicas. No fim das contas,

os congressos globais estarão diante de uma crise de integridade se as nossas reuniões e encontros não gerarem respostas às questões mais urgentes enfrentadas pela maioria das comunidades pobres e menos evangelizadas do mundo.

A dimensão escatológica da obra missionária não está relacionada à atitude de cristãos que oferecem um plano de evacuação para o céu enquanto os pobres do mundo e o planeta Terra buscam um plano de transformação. A missão, portanto, é uma parceria privilegiada com Cristo por meio do poder de seu Espírito para a cura e o renascimento de toda a criação até que Cristo volte.

 

Família de nações em conflito como barreiras à proclamação da missão

A Declaração de Seul reafirma “o propósito de Deus em Cristo de reconciliar todos os povos por meio do evangelho em um mundo cheio de conflitos” (SS VI-77). No conflito em andamento no Oriente Médio, “os líderes cristãos devem se esforçar para corrigir erros teológicos que servem de justificativa ideológica para a injustificável violência contra civis inocentes ou que buscam legitimar violações do direito internacional humanitário” (SS VI-84). A igreja deixa de ser uma voz profética quando permanece em silêncio diante do sofrimento indizível que resulta da violência perversa.

Mais de duzentos anos de ações missionárias protestantes não resultaram em movimentos significativos em direção a Cristo entre os adeptos de religiões mundiais como o islamismo, o budismo e o hinduísmo.10 As declarações de evangélicos continuam a ver os outros como “objeto” da obra missionária, em vez de “sujeito” e agentes colaboradores para a transformação do evangelho. Não haverá paz entre tribos e nações até que a igreja tenha aprendido a viver em paz com pessoas de diferentes tradições religiosas. Para demonstrar receptividade autêntica ao evangelho, o foco da nossa teologia missionária precisará superar o conceito territorial de “nós contra eles”. Como resultado dos temores do sincretismo, os cristãos ainda não exploram a contextualização entre essas aspirações religiosas, o que resultaria em transformação mútua por meio de encontros inter-religiosos.11

Pela perspectiva de ir além da contextualização entre culturas e participar de reuniões sérias entre religiosos, a área mais fraca da SS é provavelmente a ausência de uma seção de teologia da religião que trate de estratégias futuras para a obra missionária.

Apesar das diferenças significativas entre as religiões e sem abrir mão da singularidade de Cristo, os cristãos não deveriam ver a maioria dos muçulmanos, hindus e budistas essencialmente como inimigos ou perseguidores dos cristãos. De outro modo, pela perspectiva não cristã, a obra missionária cristã continuará a ser vista como uma missão que trata as pessoas como objetos que precisam substituir ou trocar de religião.

 Sem uma amizade profunda entre as religiões vivas, nossa igreja permanece teologicamente tribal em nossa incapacidade de acolher e receber dons de personalidade em comum de muçulmanos, hindus e budistas.12

Outra omissão está relacionada à apresentação da SS no início do Congresso. Diferentemente de congressos anteriores, não houve nenhuma sessão planejada para que os participantes se envolvessem e oferecessem feedback sobre os temas significativos da SS delineados pelo Grupo de Trabalho de Teologia. Uma oportunidade perdida!

Remodelando a colaboração em um mundo policêntrico

O futuro da obra missionária cristã depende da qualidade das missões da África, América Latina e Ásia. Isso não significa que não haja papéis significativos para a missão do Norte Global. Muitas organizações e alianças missionárias ocidentais reconhecem a necessidade de mudança na cultura e na estrutura de liderança delegando poder do Ocidente para o restante do mundo.13 No entanto, os movimentos missionários do Sul Global não resultarão em impacto profundo e transformação duradoura se os centros mais recentes perpetuarem paradigmas da obra missionária colonial, sem humildade, integridade e líderes servos. Muitos líderes missionários do Sul Global temem que os apelos à colaboração se tornem outro meio de controle se as plataformas de influência e a capacidade de tomada de decisão permanecerem com aqueles que fornecem suporte financeiro. Acertadamente, eles indagam: De quem é a colaboração e de quem são as prioridades que direcionarão o futuro da missão em um mundo policêntrico?

Notas finais

  1. “Relatório de Status da Grande Comissão”, Movimento de Lausanne, acesso em 12 de janeiro, 2025, https://lausanne.org/pt-br/report.
  2.  “Declaração de Seul”, Movimento de Lausanne, accessed January 12, 2025, https://lausanne.org/pt-br/statement/declaracao-de-seul.
  3. O enfoque da Declaração de Seul está na teologia, enquanto o enfoque do Relatório de Status da Grande Comissão está nas áreas que precisam de maior ação colaborativa estratégica. A Declaração de Seul se baseia no Pacto de Lausanne (1974), no Manifesto de Manila (1989) e no Compromisso da Cidade do Cabo (2010) e os complementa.
  4. “Pacto de Lausanne”, Movimento de Lausanne,, accessed January 12, 2025, https://lausanne.org/pt-br/statement/pacto-de-lausanne.
  5.  “Manifesto de Manila”, Movimento de Lausanne, accessed January 12, 2025, https://lausanne.org/pt-br/statement/manifesto-de-manila.
  6. Compromisso da Cidade do Cabo”, Movimento de Lausanne, accessed January 12, 2025, https://lausanne.org/pt-br/statement/compromisso.
  7. Os documentos teológicos de Lausanne costumam ser avaliados segundo sua capacidade de mobilizar ou impactar o pensamento e as práticas missionárias. Veja Robert Schreiter, ‘From Lausanne Covenant to the Cape Town Commitment: A Theological Assessment, ’International Bulletin of Mission Research 35, no. 2 (April 2011): 88-91.
  8. Veja “Declaração de Seul”, Seção III-43.
  9. Embora o foco na eclesiologia seja importante, concordo que é fraco o tratamento geral sobre o escopo mais amplo da missão, pois “o movimento da igreja missional coloca mais ênfase na ideia de a missão de Deus ter uma igreja do que na igreja de Deus ter uma missão”. Veja Rolf Kjøde, ‘Participant Perspective: Building on a firm foundation,’ Vista, December 14, 2024, https://vistajournal.online/latest-articles/ij1bn5hp85097yjohjeesh6k3rchkm.
  10. Veja Terry Muck and Frances Adeney, Christianity Encountering with World Religion (Encountering Mission): The Practice of Mission in the Twenty-first Century, (Michigan: Baker Academic, 2009).
  11.  Os evangélicos propõem novas maneiras de se envolver com adeptos de religiões nos limites de uma estrutura teológica trinitária para mobilizar os evangélicos além de nossas fronteiras paroquiais. Eles desafiam nossa compreensão de culturas e religiões e propõem um envolvimento mais profundo com respeito à religião do outro, envolvem-se em diálogo mútuo e aprofundam relacionamentos. Veja Gerald McDermott and Harold Netland, A Trinitarian Theology of Religions: An Evangelical Proposal (Oxford: Oxford University Press, 2014).
  12. Kang-San Tan, ‘Crossing Religious and Cultural Frontiers: Rethinking Mission as Inreligionisation,’ IJFM 39:2-4, Summer-Winter 2022:69-75, IJFM_39_2_4-Tan-Crossing-Frontiers-and-Response.pdf.
  13.  Embora a Declaração de Seul não tenha discutido a missão policêntrica especificamente, o conceito permeia o Congresso de múltiplas formas, incluindo um grupo de trabalho dedicado ao tema.