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Os confins da terra

Fundamentos sobre o evangelho até os confins da terra

Len Bartlotti 24 abr 2024

A Grande Comissão de Cristo em Atos 1.8 nos impele a olhar além de onde estamos agora – nossa própria igreja, comunidade, nação e “pessoas como nós” – para ver um mundo cheio de outros povos, nações e lugares amados por Deus. O problema, segundo o pesquisador internacional Chris Maynard, “é que a maioria dos cristãos se concentra onde está a maioria dos cristãos”. Ou seja, “85% dos cristãos vivem em países onde mais de 50% das pessoas se consideram cristãs”. Portanto, no que se refere a 85% dos cristãos, “literalmente basta que eles ergam os olhos para verem outros cristãos”.[1]

“Mas receberão poder quando o Espírito Santo descer sobre vocês, e serão minhas testemunhas em Jerusalém, em toda a Judéia e Samaria, e até os confins da terra.”

À luz do mandato global que nos foi dado, como podemos redescobrir nosso Deus como um Deus missionário, nossa identidade como povo missionário, e “enxergar” o que a maioria dos cristãos não enxerga – um mundo cheio de povos sem Cristo? Qual parte do plano de Deus cabe a nós, capacitados pelo Espírito? O que precisamos entender para que possamos novamente colocar como prioridade nossa missão a “todas as nações” e até os “confins da terra”?

Tratar Atos 1.8 como uma questão de múltipla escolha é tentador: “Escolha uma opção: Jerusalém, Judéia, Samaria ou confins da terra?”. Outra abordagem é reduzir o versículo a uma estratégia de testemunho gradual e sequencial: “Primeiro Jerusalém, e depois chegaremos aos “lugares mais remotos”’. A obra missionária torna-se assim um apêndice, um complemento exótico ao qual fazemos incursões. “Os cristãos costumam usar essa abordagem para evitar sair de sua zona de conforto para anunciar o evangelho de Cristo. Dirão: ‘Preciso primeiro alcançar minha família (minha Jerusalém) antes que possa alcançar quaisquer outros’”. No versículo, contudo, não lemos “depois”, mas “e”, ou seja, todos os contextos, sem uma ordem específica[2]

Muitas vezes, executamos uma série de saltos hermenêuticos: Jerusalém representa “meu povo, minha localidade”; Judeia é “nossa região”; Samaria é “o desprezado”; e os “confins da terra” ou “os lugares mais remotos” equivalem à obra missionária global. O fato inconveniente, porém, é que o lugar de origem dos discípulos era a Galileia, e não Jerusalém! “Jerusalém” não era seu lar, bairro ou povo. Reconheço que as metáforas são um instrumento útil na pregação (já fiz uso delas), mas elas não se sustentam exegeticamente. Jesus estava fazendo uma referência literal a lugares históricos e esferas culturais; em Atos 10, o Espírito está propagando a Palavra e movendo a igreja para o modo “confins da terra”, a saber, o mundo gentio. É onde estamos agora!

Um antídoto para a nossa miopia é manter sempre o fim em perspectiva. Deus começa seu plano redentor tendo em mente seu fim. “Desde o início faço conhecido o fim, desde tempos remotos, o que ainda virá. Digo: Meu propósito ficará de pé, e farei tudo o que me agrada” (Is 46.10). Neste sentido, “os confins da terra” deveriam ser, sem dúvida, o primeiro, e não o último tópico na pauta de um encontro missionário!

Nossas estratégias deveriam ser “de trás para frente”, começando pelo objetivo. O que Deus revelou sobre seu plano final para as nações? Para começar essa exploração dos Fundamentos sobre Missões, vamos ler Atos 1.8 “de trás para frente”, analisar o que a Bíblia diz sobre o plano de Deus para os povos e nações “nos confins da terra”, e depois encerrar com algumas breves observações sobre a tarefa inacabada hoje.

O versículo “pivô” da Bíblia

Isaías 49.6 foi chamado de “versículo pivô da Bíblia”. Deus, o Pai, e o Filho Servo discutem o peso e o desígnio definitivo da missão futura do Messias. Ouvimos aqui a reunião do conselho na sala do trono:

“É coisa pequena demais para você ser meu servo
para restaurar as tribos de Jacó
e trazer de volta aqueles de Israel que eu guardei.
Também farei de você uma luz para os gentios,
para que você leve a minha salvação até aos confins da terra”.
(Is 49.6 NVI)

“É coisa pequena demais”. Outras traduções para o português dizem: “Pouco é” (ACF), “Para você é muito pouco (NAA), que você seja o redentor de Israel somente. Por maior que seja o amor de Deus por seu povo, o sentido da frase no hebraico evoca um nítido contraste: é tão “pequeno” e “leve” que chega a ser “trivial”, ou “algo muito insignificante” se comparado ao divino e abrangente plano mestre da salvação!

Yahweh revela que “a missão não é para Israel somente, mas para todas as nações do mundo. Redimir apenas Israel era fácil demais; Yahweh deseja uma demonstração maior de sua soberania”.[3] Essa demonstração maior é revelada nas frases seguintes.

“Uma luz para os gentios”. A missão coletiva de Israel como uma luz para as nações (Is 42.1-9) é “reatribuída ao Servo individualmente, que cumpre as obrigações de Israel para com Yahweh, a fim de restaurar o relacionamento com eles” e cumprir o mandato de Deus.[4]

“Minha salvação até os confins da terra”. Por meio do Servo (cf. Is 53), “o mundo inteiro – não apenas Israel – terá acesso à salvação de Yahweh…as nações um dia seriam incluídas no povo de Deus”.[5] Os estrangeiros seriam bem-vindos para oferecer, como parte do povo santo de Deus, adoração alegre, sacrifícios aceitáveis e oração dentro do templo, “pois a minha casa será chamada casa de oração para todos os povos” (Is 56.7).[6]

Os confins da terra

A frase “confins da terra” é usada 46 vezes na Bíblia. Algumas vezes, ela expressa a aproximação do juízo sobre o povo de Deus, como quando Deus mobiliza, “desde os confins da terra”, um exército da Babilônia ou “do Norte” (Jr 6.22; 50.41). Outras vezes, ela prevê o tenebroso e abrangente julgamento sobre a humanidade pecadora: “Um tumulto ressoa até os confins da terra, pois o Senhor faz acusações contra as nações, e julga toda a humanidade: ele entregará os ímpios à espada’… Assim diz o Senhor: “Vejam! A desgraça está se espalhando de nação em nação (goy); uma terrível tempestade se levanta desde os confins da terra” (Jr 25.30-32).

Os profetas, por sua vez, preveem uma grande reviravolta salvífica! As nações gentílicas um dia “a ti virão… desde os confins da terra e dirão: ‘Nossos antepassados possuíam deuses falsos, ídolos inúteis, que não lhes fizeram bem algum’... Portanto eu lhes ensinarei; desta vez eu lhes ensinarei sobre o meu poder e sobre a minha força. Então saberão que o meu nome é Senhor”. (Jr 16.19-21 NVI).

Metaforicamente, “confins da terra” significa “até onde se consegue chegar”. O mundo todo. Toda a humanidade em todas as suas divisões. Todas as raças, nacionalidades, grupos étnicos e linguísticos. Todos os povos em todos os lugares.

“Até onde se consegue chegar” – está aí algo para se pensar! Provavelmente será um lugar muito, muito distante do nosso lar ou zona de conforto, e de contextos cristianizados onde a igreja é doméstica e o evangelho (muitas vezes) domesticado por um grupo ou configuração cultural. “Os confins da terra” nos desafiam a avaliar: “Até onde” estamos dispostos a ir – geográfica, cultural e socialmente, em oração, serviço, sofrimento e sacrifício – para garantir que todos os povos em todos os lugares tenham um testemunho do evangelho?

Observe também o paralelismo hebraico nos versículos acima: a quase equação de “nações” (hebraico, goyim) e “confins da terra”. “Os lugares mais remotos” ou “confins da terra” são as moradas das “nações” gentílicas, povos não-judeus (goyim). A expressão “confins da terra” engloba todos os povos em todos os lugares, através do tempo e do espaço. Nenhuma pessoa, de qualquer lugar ou grupo etnolinguístico ou social escapa do escrutínio de Deus. Isso é essencial para compreender a importância do paradigma do “grupo de povos” e priorizar os “povos não alcançados” ou “povos menos alcançados” – aqueles grupos socioculturais, linguísticos ou étnicos que não dispõem de um movimento viável, local, de plantar igrejas e fazer discípulos.

Dave Datema explica que no Antigo Testamento, “goy pode ser aplicado a agrupamentos humanos definidos por uma diversidade de afinidades/fronteiras (ancestralidade, idioma, território, governo) e tornou-se sinônimo de gentios não-israelitas. Na Septuaginta, goy costuma ser traduzido como ethnos”, o termo em grego que Jesus usou em Mateus 28.19, “discípulo panta ta ethne”.[7] Essas etnias [ethne] ou nações, por uma perspectiva universal, coletiva (povos não-judeus) e individual (agrupamentos humanos ou grupos de povos), são o foco da nossa Comissão e do plano redentor de Deus.

Mateus e seus leitores entendiam o termo “todas as nações” como uma referência tanto à universalidade (todos em todos os lugares) quanto à particularidade (em toda a sua diversidade), significando que, para eles, era impossível conceber o mundo como um todo coletivo sem vê-lo, simultaneamente, nas muitas e variadas partes que o constituem. Panta ta ethne implica “ambos”, não “um ou outro”. Significa a inclusão de todas as nações/todos os gentios em toda a diversidade criada por Deus. Ethne inclui, sim, em sua gama semântica a ideia de várias fronteiras e agrupamentos humanos, incluindo a etnicidade. Não é uma ideia nova ou moderna que os proponentes de grupos de povos estão inferindo do texto bíblico. É antes um entendimento antigo que flui naturalmente do Antigo para o Novo Testamento.”[8]

Um giro para trás: A Grande Comissão original

Isaías 49.6, o versículo “pivô”, remete à “Grande Comissão” original e ao mandato de “todos os povos” de Gênesis 12 (muito anterior a Mt 28.18-20):

Então o Senhor disse a Abrão: “Saia da sua terra, do meio dos seus parentes e da casa de seu pai, e vá para a terra que eu lhe mostrarei.

“Farei de você um grande povo,
e o abençoarei.
Tornarei famoso o seu nome,
e você será uma bênção.

Abençoarei os que o abençoarem,
e amaldiçoarei os que o amaldiçoarem;
e por meio de você todos os povos da terra
serão abençoados”.
(Gn 12.1-3)

O falecido John R.W Stott, líder fundador do Movimento de Lausanne, considerava estes “Os versículos mais unificadores da Bíblia, onde todo o propósito de Deus está encapsulado”.[9] “O Deus vivo é um Deus missionário”, declarou ele, não uma insignificante divindade tribal, mas o Criador do universo, da terra e de toda a humanidade. Em Gênesis 12, Deus coloca em ação um plano para vencer os poderes das trevas (cf. Gn 3.15) e redimir para si um povo dentre os povos caídos e dispersos do mundo (Gn 3-11). Diz Stott: “Deus escolheu um homem e sua família para, por meio deles, abençoar todas as famílias da terra”.[10] Por meio de um povo escolhido, a bênção fluiria para “todos os povos da terra”, todas as nações e todos os lugares.

O desenrolar dessa história constitui a espinha dorsal das Escrituras, de Gênesis a Apocalipse, que Steve Hawthorne chama de “A história da glória divina”: “Deus revela sua glória a todas as nações para que ele mesmo possa receber glória de todas as nações”.[11] O propósito e o desejo de Deus, para louvor da sua glória, é ter um “povo formado por todos os povos”, uma “família formada por todas as famílias das nações”. “Os confins da terra” estão em perspectiva desde o início!

Deus missionário, povo missionário

O povo de Deus é um povo missionário, “separado dos povos” e de seus costumes, idolatria e imoralidade (Lv 20.26; Êx 19.6). Israel foi “consagrado” a Deus, é “raça eleita, sacerdócio real, nação santa”, – uma identidade aplicada à Igreja em 1Pedro 2.9-10. Esse “povo sacerdotal” tem o “dever sacerdotal” de intermediar a bênção às nações (cf. Rm 15.18). Deus exibe sua santidade, seu poder e sua majestade por meio do amor obediente e da obediência amorosa do povo da sua aliança. Somos desafiados, portanto, a nos certificar que nossas vidas, nossos ministérios, nossos relacionamentos e nosso testemunho exibam a santidade, a glória e o poder de Deus.

O Êxodo revelou “perante os olhos das nações” o poder e a justiça de Deus (Sl 98.2 ARA). A libertação de Israel do Egito não foi um evento discreto! A história estourou nas “mídias sociais” do antigo Oriente Próximo – todos os povos “tremeram e ficaram angustiados” (Dt 2.25)! Deus disse ao Faraó: “Eu o mantive de pé exatamente com este propósito: mostrar-lhe o meu poder e fazer que o meu nome seja proclamado em toda a terra” (Êx 9.16).

No templo de Israel, o nome, a presença e o poder de Yahweh eram uma atração missional para outros povos e nações. Salomão orou: “Quanto ao estrangeiro, que não pertence ao teu povo Israel, e que veio de uma terra distante por causa do teu nome — pois ouvirão acerca do teu grande nome, da tua mão poderosa e do teu braço forte — quando ele vier e orar voltado para este templo, ouve dos céus, lugar da tua habitação, e atende o pedido do estrangeiro, a fim de que todos os povos da terra conheçam o teu nome e te temam, como faz Israel, teu povo, e saibam que este templo que construí traz o teu nome” (1Rs 8.41-43). O coração, a esperança e a oração de cada líder podem imitar Salomão em sua intencionalidade e fé do tamanho do mundo: “Para que todos os povos da terra te conheçam!”

Por meio dos profetas, Deus fez com que o povo se lembrasse da sua identidade como “testemunhas” do seu senhorio. Se convocada a depor num tribunal, uma testemunha não pode permanecer calada! Ela testifica sobre o que sabe, viu ou ouviu. Deus chama seu povo para um testemunho que é destemido, claro, ousado, global e centrado nele: “’Eu revelei, salvei e anunciei; eu, e não um deus estrangeiro entre vocês. Vocês são testemunhas de que eu sou Deus’, declara o Senhor”. (Is 43.12, 10; 44.8).  

A obra missionária é como uma melodia. Seguimos rumo às nações com o coração cheio de cânticos! É fácil adorar num santuário, auditório ou estádio com crentes apaixonados e uma banda animada. Porém, nos momentos difíceis, talvez clamemos: “Como poderíamos cantar as canções do Senhor numa terra estrangeira?” (Sl 137.4). Deus, contudo, está conosco mesmo em momentos sombrios e lugares solitários. “Por volta da meia-noite, Paulo e Silas oravam e cantavam louvores a Deus, e os demais companheiros de prisão escutavam” (At 16.25). Como podemos desenvolver em nossas próprias almas e na próxima geração dos que enviam ou são enviados, o tipo de perseverança, resiliência e dependência do poder do Espírito necessário para “cantar um novo cântico ao Senhor” em uma terra estranha?

Um giro para a frente: A vinda do Salvador e os confins da Terra

Da mesma forma como o versículo “pivô” Isaías 49.6 nos remete ao passado, a Gênesis 12 e aos desdobramentos da obra missionária de Deus no Antigo Testamento, ele também nos leva para a frente, para a vinda do Messias. Isaías 49.6 conecta o fim e o começo, revelando o meio pelo qual os propósitos de Deus serão cumpridos, bem como o fim redentor, a saber, “salvação até os confins da terra”.

Qual é o meio? Deus envia seu Servo escolhido, Seu único Filho: “Farei de você uma luz para os gentios”. Esse era o entendimento que Jesus tinha de si mesmo: “O Espírito do Senhor está sobre mim, pelo que me ungiu para evangelizar os pobres…” (Lc 4.18; cf. Is 61.1-2). Ele veio não apenas como o Messias de Israel, mas como o Cordeiro de Deus, o Salvador do mundo: “Pois nem mesmo o Filho do homem veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos” (Mc 10.45; Mt 20:28). “Ele é a propiciação pelos nossos pecados, e não somente pelos nossos, mas também pelos pecados de todo o mundo” (1Jo 2.2). O sacrifício de Cristo não é apenas suficiente, mas também eficaz: “Depois do sofrimento de sua alma, ele verá a luz e ficará satisfeito; pelo seu conhecimento meu servo justo justificará a muitos, e levará a iniquidade deles” (Is 53.11).

A “Grande Comissão” em Mt 28.18-20, portanto, não é uma ideia nova tampouco a reflexão final de um Messias que se retira! É uma confirmação, uma reiteração e um mandato carregado de autoridade para prosseguir e cumprir o propósito original de Deus de alcançar os “confins da terra”. “Vão e façam discípulos de todas as nações (panta ta ethne), batizando-os em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, ensinando-os a obedecer a tudo o que eu lhes ordenei”.

A diferença agora é que a Cruz e a Ressurreição garantem o cumprimento do plano redentor de Deus derrotando o pecado, a morte e os poderes das trevas sobre as nações! “Sobre esta pedra edificarei a minha igreja (eclésia), e as portas do Hades não poderão vencê-la” (Mt 16.18). “Com teu sangue compraste para Deus homens de toda tribo, língua, povo e nação” (Ap 5.9).

Testemunhas cheias de poder

O livro de Atos narra o progresso incessante da Palavra de Deus por meio de um povo capacitado e enviado pelo Espírito Santo. “A palavra de Deus se espalhava. Crescia rapidamente o número de discípulos em Jerusalém” (6.7). “A palavra de Deus continuava a crescer e a espalhar-se” (12.24). “Dessa maneira a palavra do Senhor muito se difundia e se fortalecia” (19.20). Oposição religiosa, decretos imperiais, repressão, perseguição, tribulação ou morte – nada pode impedir o Evangelho, “porque é o poder de Deus para a salvação de todo aquele que crê: primeiro do judeu, depois do grego” (Rm 1.16). Como Gamaliel aconselhou o Sinédrio: “Eu os aconselho: deixem esses homens em paz e soltem-nos. Se o propósito ou atividade deles for de origem humana, fracassará; se proceder de Deus, vocês não serão capazes de impedi-los, pois se acharão lutando contra Deus” (5.38-9). Impulsionado pelo Espírito, o Evangelho avançou de tal forma que, em todas as nações da terra, há crentes em Cristo e comunidades de fé! Mas ainda há trabalho a ser feito.

Em Atos 1.8, o Cristo Ressurreto promete “poder” para ser “minhas testemunhas”. Esse poder nos impele a deixar nosso canto, nossa zona de conforto, e cruzar todas as barreiras geográficas, culturais, linguísticas e sociais, até “os confins da terra”. Sem o poder constante do Espírito Santo, nossos esforços são carnais e ineficazes: “Sem mim vocês não podem fazer coisa alguma” (Jo 15.5). “‘‘Não por força nem por violência, mas pelo meu Espírito’, diz o Senhor dos Exércitos” (Zc 4.6). “Compelido pelo Espírito, estou indo para Jerusalém, sem saber o que me acontecerá ali” (At 20.22).
“Compelido… estou indo… sem saber” – a ordem dos verbos é importante! — esta é a fé e a jornada cheia do Espírito de crentes cheios do Espírito, enviados para ser testemunhas “até os confins da terra”.

Hoje, especialmente nas cidades, as nações não estão “distantes”, mas praticamente à nossa porta! De Dubai, Singapura e São Paulo a Nova Iorque, Londres, Bruxelas e Marselha, a igreja deve agora transmitir o conhecimento básico, o entendimento e as habilidades relacionais necessárias para o testemunho transcultural como componente essencial do discipulado. O ministério entre os povos não alcançados inclui o ministério da diáspora e dos imigrantes entre as nações que agora são nossos vizinhos, muitos das quais mantêm conexões transnacionais.

No entanto, ainda é preciso “enviar”. Alguns dados sugerem que muitos dos maiores “grupos de povos de fronteira” têm apenas uma representação mínima na diáspora e nas populações migrantes. Obreiros pioneiros continuam sendo necessário nos países. Não se trata de uma atividade colonial ou ocidental, uma forma de imperialismo cultural ou de hegemonia ideológica. A missão de hoje é policêntrica, “de todas as nações para todas as nações”. O envio começa com o Deus Triuno. Precisamos de fazedores de discípulos em missões transculturais, “onde Cristo não é conhecido” (Rm 15.20-21). Que Deus nos dê olhos para enxergar esses “povos ocultos” que ainda não estão incorporados ou não são “incorporáveis” (devido a barreiras de compreensão ou aceitação) a igrejas e comunidades existentes.

Nosso chamado para a transformação não invalida nosso chamado para a evangelização do mundo. Somos chamados e temos o privilégio de anunciar – testemunhar, falar, contar a história, proclamar – as Boas Novas da salvação em Cristo! Transformação sem proclamação é conformação. A sinergia entre a Palavra e o Espírito é um tema que percorre toda a Bíblia. O Espírito inspira, compele e manifesta palavras ungidas. Como “embaixadores de Cristo”, temos a autoridade e o dever de anunciar, suplicar e apelar, de maneira sábia, cativante e sincera, nos idiomas de todos os povos, a “mensagem da reconciliação”: “Reconciliem-se com Deus” (2Co 5.19-20). “Como são belos os pés dos que anunciam boas novas!”  (Rm 10.15).

Visão arrebatadora

Os povos menos alcançados e os “confins da terra” nos levam ao ponto central da narrativa bíblica. Ao abraçarmos o desejo de Deus de “um povo formado por todos os povos”, vemos novas realidades globais e as necessidades persistentes dos não evangelizados.[12]

A visão final é arrebatadora: “Então vi um Cordeiro, que parecia ter estado morto, de pé, no centro do trono… (Ap 5.6). A atmosfera é tomada pelo incenso das orações do povo de Deus e por um novo cântico:

“Tu és digno de receber o livro
e de abrir os seus selos,
pois foste morto,
e com teu sangue compraste para Deus
homens de toda tribo, língua, povo e nação”.
(Ap 5.9)

Nesta cena, o Povo de Deus é, ao mesmo tempo, um e muitos – multinacional, multiétnico, multilíngue. Unidos na fé e na adoração, com distinções visíveis e audíveis! Cada ethne tem o seu lugar na arena celestial.

Na descrição que Gordon Fee, estudioso do Novo Testamento, faz desse cenário de exultante adoração, o “novo cântico” aclama o meio de seu ato redentor (“com seu sangue”), o efeito desse sacrifício (“comprado para Deus”), a amplitude da redenção (“membros de toda tribo e língua e povo e nação”), seu objetivo (“feitos…para serem um reino e sacerdotes para servirem ao nosso Deus…eles reinarão sobre a terra”), e o clímax ­ordenado por Deus, tendo ele como centro: “Àquele que está assentado no trono e ao Cordeiro sejam o louvor, a honra, a glória e o poder, para todo o sempre!”[13] Somos convidados a responder com assombro e adoração, e com um fiel testemunho cruciforme (Ap 6.9-11; 19.10) “à palavra de Deus e ao testemunho de Jesus Cristo” (Ap1.2; 20.4).

As dimensões da tarefa

3,4 bilhões de pessoas – 40% da humanidade – em 7.300 “grupos de povos não alcançados (PNA)” (menos de 2% de evangélicos e 5% de cristãos professos). Dois bilhões destes em “grupos de povos de fronteira”, praticamente sem a presença de cristãos de qualquer tipo nem de movimentos evangélicos conhecidos. 1.600 “PNAs não engajados”, sem iniciativas conhecidas para alcançá-los. Sem acesso ao evangelho e a movimentos eclesiásticos. “Obreiros transculturais pioneiros são necessários”.[14]“Esta é a terra que resta” (Josué 13.2)

A complexidade da tarefa

3.500 grupos de povos muçulmanos não alcançados (PMNA), 2.203 PNA hindus, 511 PNA budistas, 925 PNA tribais (religiosos étnicos). Barreiras culturais, sociais, religiosas, políticas, linguísticas, preconceitos. Urbanização, globalização, migração, grupos de afinidade, múltiplas identidades, surdos, cultura jovem global, perseguição.

A viabilidade da tarefa. Igreja Global

Igreja Global — 1 bilhão de cristãos da Grande Comissão (fé viva), 13% da humanidade. Progresso por meio de movimentos na China, entre budistas na Ásia, grupos tribais na Oceania e na América Latina, alguns movimentos entre muçulmanos e hindus no Sudeste Asiático. Parcerias crescentes entre organizações missionárias, colaboração entre o mundo ocidental e majoritário e redes regionais e internacionais. Ministérios da mídia e da diáspora. Movimentos vibrantes de oração. “Pede-me, e te darei as nações como herança e os confins da terra como tua propriedade” (Sl 2.8). “Foi-me dada toda a autoridade no céu e na terra” (Mt 28.18). “Mas receberão poder quando o Espírito Santo descer sobre vocês, e serão minhas testemunhas…” (At 1.8).

A prioridade da tarefa

99% dos obreiros transculturais servem entre 3/4 da população mundial onde vivem 99,99% de todos os seguidores de Jesus. 1% de todos os obreiros transculturais servem entre 1/4 do mundo, com 2 bilhões de pessoas, 5 mil grupos de povos e 0,01% de cristãos. Jesus deixou as 99 para encontrar uma ovelha perdida. “Sempre fiz questão de pregar o evangelho onde Cristo ainda não era conhecido, de forma que não estivesse edificando sobre alicerce de outro. Mas antes, como está escrito: “Hão de vê-lo aqueles que não tinham ouvido falar dele, e o entenderão aqueles que não o haviam escutado” (Rm 15.20-21). “Nossa esperança é que… possamos pregar o evangelho nas regiões que estão além de vocês” (2Co 10.15-16).

A urgência da tarefa

“’Todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo”. Como, pois, invocarão aquele em quem não creram? E como crerão naquele de quem não ouviram falar? E como ouvirão, se não houver quem pregue? E como pregarão, se não forem enviados? Como está escrito: “Como são belos os pés dos que anunciam boas novas!’” (Rm 10.13-15). “A fé vem por ouvir a mensagem, e a mensagem é ouvida mediante a palavra de Cristo” (Rm 10.17). “E este evangelho do Reino será pregado em todo o mundo como testemunho a todas as nações (ethne), e então virá o fim (Mt 24.14).

As motivações para a tarefa

  • Glória a Deus – Amor a Deus e paixão por sua glória (Jo 17.4; 1Pe 2.9; Ap 4.11; 5.12).
  • Obediência ao mandamento de Deus – a Comissão de proclamar Cristo e fazer discípulos (Mt 28.18-20; At 1.8).
  • Amor pelos outros – Desejo pela salvação e pelo bem deles (Lc 15.11-31; Rm 9.1-3; 2Co 5.14-15).Necessidade – Compaixão pelas necessidades espirituais e físicas dos perdidos (Mt 9.35-38; 10.1; 14.13-31; Lc 19.41).Recompensa – O prazer e a aprovação de Deus (1Co 3.11-15; 2Co 5:10-11; 1Ts 2.19).
  • Esperança – Paixão e visão do cumprimento dos propósitos de Deus (Jo 4.34; 17.4; Ap 5.9; 7.9).

Notas finais

  1. Chris Maynard, “Shining a Light into a Dark Corner: Looking at Mission Information Work.” Global CMIS, 2018. https://www.globalcmiw.org/node/52.
  2. https://www.thetravelingteam.org/articles/your-jerusalem-judea-and-samaria
  3. Barry, J. D., Mangum, D., Brown, D. R., Heiser, M. S., Custis, M., Ritzema, E., Whitehead, M. M., Grigoni, M. R., & Bomar, D. (2012, 2016). Faithlife Study Bible (Is 49:6). Lexham Press.
  4. Ibid.
  5. Ibid.; cf. Isa 2:2–4; 56:3-8
  6. Observe que, no contexto, a casa de oração “para todos os povos” não se refere a um local de intercessão para os que estão fora do templo (eunucos, estrangeiros), mas às orações oferecidas no interior por pessoas anteriormente excluídas, mas agora acolhidas por Deus; esta casa é para que “todos os povos” ofereçam adoração alegre e aceitável.
  7. David Earl Datema, “Panta ta Ethne: A Biblical Case for the People Group Concept in Mission,” in People Vision, (ed.) Leonard N. Bartlotti, William Carey Publishing, forthcoming 2024.
  8. David Earl Datema, “The universal particularism of panta ta ethne: A biblical case for the continued viability of the people group concept in mission,” in Missiology: An International Review, Vol 50 (2), 2021, p. 9, revised and republished in Bartlotti (ed), People Vision (forthcoming, 2024).
  9. “The Living God is a Missionary God,” in Perspectives on the World Christian Movement, Pasadena: William Carey Publishing, 2009, p. 3.
  10. Ibid., p.4.
  11. Steve Hawthorne, “The Story of His Glory,” in Perspectives on the World Christian Movement, Pasadena: William Carey Publishing, 2009. https://waymakers.org/hope/story-of-his-glory/
  12. Leonard N. Bartlotti, “Reimaging and Re-envisioning People Groups,” in Evangelical Missions Quarterly, Vol 56 (4), 2020, revised and republished in People Vision, (ed.) Leonard N. Bartlotti, William Carey Publishing, forthcoming 2024.
  13. G. D. Fee, Revelation: A New Covenant Commentary, Eugene, OR: Cascade Books, 2011, p. 88.
  14. Dados de https://joshuaproject.net , Dan Scribner, R.W. Lewis, e Chris Maynard. Para uma teologia útil sobre os dados e a importância dos dados nas missões, veja Chris Maynard, “Honouring Data in Missions,” WEA Missions Commission, Aug 26, 2023. https://weamc.global/archive/reimagining-data.pdf .

Autoria (bio)

Len Bartlotti

Leonard N. (Len) Bartlotti é estrategista de missões, educador intercultural e consultor de organizações e obreiros no mundo islâmico. Ele e sua esposa Debi serviram durante 14 anos em um dos maiores grupos de povos da Ásia Central, onde ele esteve envolvido em ministérios pioneiros de discipulado, música étnica, consultoria para órgãos de auxílio e desenvolvimento e pesquisa sobre cultura, etnia e literatura oral muçulmanas.

Formado pelo Seminário Teológico Gordon-Conwell, em 2000 Len concluiu seu doutorado pelo OCMS - Oxford Centre for Mission Studies/University of Wales, Lampeter (Reino Unido), e faz parte do corpo docente do OCMS, da Biola e de outras universidades.

Dr Len atua como catalisador do Movimento de Lausanne para os Povos Menos Alcançados e como coordenador da Força-Tarefa de Tendências Globais da Visão 5:9. Tem paixão pela verdade bíblica, pelo conhecimento cultural e por compartilhar o amor de Deus entre os povos menos alcançados. Len e Debi têm três filhos adultos e sete netos.