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O evangelho para cada pessoa

Desmond Henry 29 abr 2024

Imagine um futuro em que os brilhantes ideais da Grande Comissão e do Grande Mandamento moldem a nossa realidade – um mundo em que as aspirações e os desejos intrínsecos de cada seguidor de Cristo reflitam a ordem atemporal de Cristo de ir a todo o mundo e discipular as nações (Mt 28.18-20; Mc 16.15; Lc 24.46-48; At 1.8; 2Tim 2.2; Jo 15.16; Tg 5.20). O maior gesto de amor que podemos ter é compartilhar as boas novas!1 Imagine uma comunidade global onde a obra missionária de Deus (missio Dei) não seja apenas um conceito para se admirar, mas uma experiência ativa, vívida, personalizada na missão da igreja,2 e de forma ainda mais pessoal, encarnada no propósito de vida de cada crente.3

O Pacto de Lausanne, em seu sexto artigo, referindo-se à Igreja em nosso mundo, reafirma sua missão trinitária e declara de forma contundente: “Precisamos sair de nossos guetos eclesiásticos e penetrar na sociedade não-cristã”.4 “O evangelho para cada pessoa” não é um título conciso de um artigo que explica um conceito central para a obra missionária; é a essência da nossa missão e precisa ser redefinido a cada geração para que não percamos de perspectiva a urgência, a centralidade e a abrangência desta afirmação: “O evangelho para cada pessoa”. Este artigo – em nosso contexto missional – tem como objetivo articular a centralidade e a importância deste conceito à medida que nos preparamos para o Quarto Congresso de Lausanne e o objetivo consequente de moldar o mundo até 2050.

O evangelho para todos

O Movimento de Lausanne busca acelerar a obra missionária global, fazendo com que a paixão da igreja da nossa geração e de gerações futuras seja levar o evangelho para cada pessoa, plantando igrejas discipuladoras para cada povo e lugar, formando líderes como Cristo em cada igreja e setor, visando o impacto do reino em cada esfera da sociedade.5 Que visão! Meu coração quer ver zelosos seguidores de Jesus entre todos os povos. Eu adoraria que todos os crentes tivessem a vida abundante que Jesus oferece (João 10.10), evidenciada pela transformação interior (2Co 5.17) possibilitada pelo evangelho (At 3.19; Jl 2.13), bem como as obras que resultam de uma vida entregue a Jesus (Hb 13.16; Tg 2). Anseio pelo dia em que o cristianismo cultural dará lugar a um movimento cristão centrado no evangelho, que flua desse evangelho e o proclame6, e que se evidencie tanto pela imersão como pela fluência no evangelho como norma, não como uma exceção ao profano.

Toda etnia (Rm 1.16), origem, classe social, raça e nacionalidade necessita das boas novas (Ap 7.9). Não há fronteiras ou muros que o evangelho não possa romper nem áreas da experiência humana (1Tm 2.3-4) que não possa alcançar.

Cremos que o evangelho de Jesus Cristo é para todas as pessoas (Jo 3.16). Para os ricos e para os pobres (Lc 4.18), para os saudáveis e para os enfermos. Toda etnia (Rm 1.16), origem, classe social, raça e nacionalidade necessita das boas novas (Ap 7.9). Não há fronteiras ou muros que o evangelho não possa romper nem áreas da experiência humana (1Tm 2.3-4) que não possa alcançar. Ou seja, o evangelho é para todas as pessoas em todos os lugares (At 10.34-35). Esta boa nova não limita nem exclui, não julga nem rejeita. Ninguém fica de fora do impacto e do poder transformador do evangelho (2Co 5.14-15).

O evangelho e as nações

A ideia de que o evangelho deve chegar a todos, em todos os lugares, está profundamente enraizada nas Escrituras, e nelas intrinsecamente tecida com beleza e precisão. É um conceito que não se limita a uma passagem somente; pelo contrário, abrange toda a Bíblia.7 A ideia de que o evangelho é para todas as nações vai além de Mateus 28.18. Apesar da enorme estima que os cristãos evangélicos têm pela “Grande Comissão” registrada no evangelho de Mateus, ela é apenas uma faceta de um mandato bíblico mais abrangente.8 A frase grega panta ta ethne, que significa “todas as nações”, sublinha este apelo universal e moldou nosso foco na evangelização de grupos de povos não alcançados. Mas nem sempre foi assim.

Em 1974, no primeiro Congresso de Lausanne sobre Evangelização Mundial, Ralph Winter introduziu o conceito de “cegueira dos povos” [em relação à existência de povos separados dentro dos países]. Desde então, a tarefa da obra missionária tem-se centrado cada vez mais na evangelização de nações ou povos não alcançados que são definidos pela etnia e não necessariamente por fronteiras políticas.9 As décadas seguintes levaram à definição do conceito de “grupo de povos”,10 e o que se tornou evidente é que a nossa definição prática de “todas as nações” determinará o nosso foco missional como crentes. Os seguidores de Cristo são compelidos a levar as boas novas do reino a todos os cantos, comunidades e culturas que ainda não ouviram essa mensagem transformadora. No contexto de nossos dias, a ideia de “grupos de povos não alcançados” pode ir além das definições étnicas, linguísticas, culturais e geográficas tradicionais para incluir microsegmentos da sociedade que são muitas vezes negligenciados ou difíceis de alcançar, como os “nômades digitais” e os “criativos culturais” que hoje partilham dos elementos básicos da teoria de grupos de povos. Precisamos dar continuidade à missão pioneira de Cristo em cada geração e nos empenhar para compartilhar o evangelho imutável em contextos que estão em constante mudança.

O evangelho: nossa sagrada missão

Com relação à mensagem transformadora, a forma como definimos o próprio evangelho e comunicamos a sua verdade é importante para a integridade da obra missionária de Deus. O evangelho é traduzível para todas as culturas11 e entre todos os povos, porém não é moldável. Em nossos esforços para chegarmos a uma fluência no evangelho em nosso mundo, temos visto os perigos das “melhorias” culturais no evangelho, que adaptam não apenas os meios, mas também a própria mensagem. A arte do improviso em apresentações ao vivo é espontânea, divertida e pode até entreter. Não me interpretem mal, gosto muito do humor e da franqueza que emergem da improvisação, mas quando se trata de apresentar e compartilhar as boas novas, os cristãos não podem improvisar. De certa forma, abandonamos a fluência no evangelho e optamos por um evangelho relevante, divertido e alegre que agrade à cultura que nos rodeia. Este é o evangelho que Paulo afirma ser o poder de Deus para a salvação de todo aquele que crê (Rm 1.16). É tolice pensar que qualquer outra coisa pela qual substituamos o evangelho terá um efeito duradouro.

De certa forma, abandonamos a fluência no evangelho e optamos por um evangelho relevante, divertido e alegre que agrade à cultura que nos rodeia. 

Este mandato celebra a boa nova da intervenção de Deus – uma iniciativa divina que se tornou acessível a todos por meio da graça de Deus (Tt 2.11), é recebida por meio do arrependimento individual e da fé, e habilitada pelo Espírito Santo (Ef 2.8-9; Rm 10. 9-10). Aos crentes é confiada a grande responsabilidade de propagar a mensagem da redenção e manifestar em todo o mundo a realidade do reino de Deus. Nosso dever missional enfatiza a capacidade do evangelho de transformar corações, elevar comunidades e remodelar a história, demonstrando o seu alcance abrangente e impacto transformador – o evangelho inclui tanto a redenção como a elevação social.12 Ao encarnar e proclamar essa mensagem, os crentes participam do desenrolar do plano redentor de Deus, capacitados e fortalecidos não por poder humano, mas pela presença dinâmica e persistente do Espírito (até o fim dos tempos).


E finalmente, o chamado do evangelho não é uma ordem apenas; é um convite dinâmico para encarnarmos a obra missionária de Deus no mundo. Exorta os crentes a tecer na estrutura de sua própria vida os elementos da missão divina, transformando o seu caminhar numa busca coletiva (missio ecclesia) e num chamado pessoal – um chamado ativo e persuasivo para nos envolvermos na obra missionária de Deus como se fosse nossa; levando as boas novas do reino até os confins da terra (e a todos os lugares e espaços que as pessoas chamam de lar) no poder do Espírito Santo – até que ele venha! Maranata!

Notas finais

  1. Em um editorial da CNN, Ed Stetzer usa os comentários do comediante Penn Jillette – um incrédulo – para ilustrar um respeito inesperado pelo evangelismo, observando: “E algumas pessoas – até mesmo ateus – apreciam nossos esforços”. Jillette, conhecido por ser descrente, compartilhou sua reação ao receber uma Bíblia de presente: “Não respeito quem não faz proselitismo. Se você acredita que existe um céu e um inferno… e pensa: ‘Bem, não vale a pena dizer isso a eles porque ficaria socialmente estranho’. . . quanto você precisa odiar alguém para não fazer proselitismo?”https://www.cnn.com/2017/04/14/living/christians-invite-easter/index.html 
  2. Se há algo que nos ensinaram os líderes do pensamento missional e os teólogos bíblicos – de David Bosch, Alan Hirsch, Chris Wright, Ed Stetzer, Lesslie Newbigin, Darrell Guder, Michael Frost, Craig Van Gelder e John Flett – é que a obra missionária é central para a vida da igreja – ela é a vida da igreja.
  3. A phrase used by Roger Peterson in an article in Perspectives on the World Christian Movement to Contrast God’s mission with our poor focus on short term mission. Peterson, R. (2009). Missio Dei or ‘Missio Me’? In R. D. Winter & S. C. Hawthorne (Eds.), Perspectives on the World Christian Movement (Fourth Edition, pp. 752). Pasadena: William Carey Library.
  4. Grupo de Trabalho de Teologia de Lausanne em parceria com a Comissão Teológica da WEA. (2009). “The Whole Church as a Transformed and Transforming Society.” em Lausanne Occasional Paper 64D. [Online] Disponível em: https://lausanne.org/content/the-church-as-a-transformed-society-an-excerpt#post-179529 (Accessed: 4 April 2024).
  5. Estes são os pilares do compromisso de Lausanne de remodelar o nosso mundo até 2050.
  6. Jeff Vanderstelt, Gospel Fluency: Speaking the Truths of Jesus into the Everyday Stuff of Life. (Wheaton, IL:Crossway Books, 2017). Foi Jeff quem primeiro me apresentou esta fraseologia e lembra aos leitores que evangelismo é transbordamento. Vanderstelt argumenta que a fluência no evangelho requer imersão profunda e prática intencional. Os crentes precisam ensaiar a mensagem do evangelho, internalizando-a até que ela se torne a lente pela qual eles enxergam todos os aspectos da vida. O trabalho de Vanderstelt é um chamado para ir além da mera crença para uma expressão vívida de fé, moldando a forma como os cristãos interagem com o mundo ao seu redor.
  7. Tornar a Bíblia como um todo um texto missionário do começo ao fim, como defende Christopher Wright em sua magnum opus “The mission of God” [A missão de Deus]. Uma das minhas citações favoritas nos faz lembrar desta importante realidade: “A Bíblia inteira nos conta a história da obra missionária de Deus através do povo de Deus em seu envolvimento com o mundo de Deus em prol de toda a criação de Deus”. 8. Muito provavelmente, o conceito de nações que costuma ser depreendido da chamada Grande Comissão é sua interpretação mais abrangente possível. É mais provável que o conceito de “família” do Antigo Testamento encontrado na Aliança Abraâmica de Gênesis 12.1-3 e suas reiterações somente no corpus de Gênesis – 18.18; 22.18; 26.4; 28.14 – representem de forma mais completa o alcance do evangelho em todas as épocas
  8. Tornar a Bíblia como um todo um texto missionário do começo ao fim, como defende Christopher Wright em sua magnum opus “The mission of God” [A missão de Deus]. Uma das minhas citações favoritas nos faz lembrar desta importante realidade: “A Bíblia inteira nos conta a história da obra missionária de Deus através do povo de Deus em seu envolvimento com o mundo de Deus em prol de toda a criação de Deus”. 8. Muito provavelmente, o conceito de nações que costuma ser depreendido da chamada Grande Comissão é sua interpretação mais abrangente possível. É mais provável que o conceito de “família” do Antigo Testamento encontrado na Aliança Abraâmica de Gênesis 12.1-3 e suas reiterações somente no corpus de Gênesis – 18.18; 22.18; 26.4; 28.14 – representem de forma mais completa o alcance do evangelho em todas as épocas.
  9. John Piper, em “Let The Nations Be Glad”, outro livro essencial sobre missões, defende, no capítulo 5, a supremacia de Deus entre todas as nações. Esse capítulo é muito útil para mostrar a evidência bíblica clara e abrangente de como o conceito de “todas as nações” é profundamente bíblico e envolve tanto o Antigo quanto o Novo Testamento. John Piper, Let the Nations Be Glad: The Supremacy of God in Missions. (Grand Rapids: Baker Academic,2010).
  10. Uma tentativa mais abrangente dessa definição no contexto do evangelicalismo foi o trabalho elaborado pelo Grupo de Trabalho Estratégico de Lausanne, em março 1982. Cf: Winter, Ralph, “Unreached Peoples: Recent Developments in the Concept”, Mission Frontiers (Agosto/Setembro 1989):18
  11. Obrigado, Andrew Walls, por definir os contornos da discussão sobre como a encarnação de Jesus estabelece o padrão para o cristianismo no que se refere à tradutibilidade do evangelho no contexto da história/das culturas mundiais. “Encarnação é tradução. Quando Deus se tornou homem em Cristo, a Divindade foi traduzida por humanidade, como se a humanidade fosse o idioma de chegada. Era uma declaração clara do que, de outra forma, estaria oculto na obscuridade ou na incerteza, a declaração: ‘Deus é assim’. A linguagem, contudo, é particular de um povo ou de uma área. Ninguém fala uma ‘língua’ generalizada; é necessário falar uma língua específica, particular. Da mesma forma, quando a Divindade foi traduzida por humanidade, ela não se tornou um ser humano generalizado. Tornou -se uma pessoa numa determinada localidade e num determinado grupo étnico, num determinado lugar e numa determinada época. A tradução de Deus para a humanidade, por meio da qual o sentido e o significado de Deus foram transmitidos, foi realizada sob condições culturais muito específicas” (Walls 1996:50). Andrew F. Walls, The Missionary Movement in Christian History: Studies in the Transmission of Faith. (Maryknoll:Orbis Books, 1996). 
  12. Robert D. Woodberry (2012), em “The Missionary Roots of Liberal Democracy”, demonstra estatisticamente que o cristianismo protestante é um agente que promove transformação social. Woodberry prova que os evangélicos são os catalisadores da educação em massa, especialmente entre os pobres e marginalizados (mulheres/”intocáveis”); os evangélicos também são os catalisadores da impressão em massa, de jornais e na esfera pública, bem como da sociedade civil e da reforma social. Acredita-se que Donald McGavran, o pai do movimento de crescimento da igreja, tenha cunhado a expressão “redenção e elevação” [ou transformação] e usa esse fenômeno para descrever todos os efeitos do evangelho com a ressalva de que a “ascensão” promovida pelo evangelho nunca deve impedir os beneficiários de compartilhar as boas novas com os que estão ao seu redor, promovendo uma transformação social mais ampla por meio do evangelismo de pessoa para pessoa. O que costuma ser um obstáculo é quando os crentes se tornam apáticos em relação ao mundo que os cerca e não veem mais a necessidade de compartilhar o evangelho com pessoas de sua origem/comunidade em decorrência de sua posição elevada na vida.

Autoria (bio)

Desmond Henry

Desmond é um líder com mentalidade missional, professor de missiologia, autor e palestrante que serve à igreja global em evangelismo e missões. É o diretor internacional da Global Network of Evangelists (antiga Next Generation Alliance), presidente da revista Conspectus, do Seminário Teológico Sul-Africano, e atua como catalisador da Rede Temática Lausanne de Proclamação do Evangelho. Des procura celebrar, elevar e acelerar o evangelismo em todo o mundo.

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