Global Analysis

Uma visão holística da obra missionária em tempos de mudança

O movimento Life as Mission na Coreia

Sam Cho jun 2023

O compromisso das igrejas coreanas com as missões transculturais já existe há décadas. Em 2021, essas igrejas enviaram oficialmente mais de 22 mil missionários a outros países.[1] As coisas, porém, não são mais como costumavam ser.

Ao longo dos anos, as mudanças nos contextos missionários têm sido mais frequentes por causa do crescente nacionalismo, as dificuldades na obtenção de vistos e o fluxo de migrantes para a Coreia. Mas os sintomas de mudanças e dificuldades na obra missionária já estavam presentes muito antes da era COVID. O golpe mais perceptível foi em 2017 e 2018, quando ocorreu o despejo sistemático dos missionários coreanos que estavam num país de acesso restrito. A quantidade de missionários coreanos, que excedia os 4 mil, caiu para menos de 40% desse total, segundo os dados de 2022. [2]

O número de cristãos nesse país ficou estagnado por duas décadas após o ano 2000 e diminuiu drasticamente nos últimos anos.

Outra mudança crítica foi o declínio do cristianismo na Coreia. O número de cristãos nesse país ficou estagnado por duas décadas após o ano 2000 e diminuiu drasticamente nos últimos anos.[3] O problema não se resume aos números. A confiança da sociedade nos cristãos atingiu seu nível mais baixo.[4] Igrejas que optaram por uma estratégia pesada de alavancagem financeira com a expectativa de aumentar o número de membros enfrentam agora queda de receita e alto nível de endividamento com alta taxa de juros. Como resultado, a igreja e a infraestrutura da obra missionária hoje enfrentam dificuldades.

Tendo esses desafios como pano de fundo, a Mission Korea, que é a maior iniciativa de mobilização missionária de jovens, formou uma equipe de pesquisa com oito especialistas para desvendar o futuro da obra missionária. O relatório completo foi apresentado na conferência Mission Korea de 2018.[5]

A Mission Korea é a maior conferência missionária para jovens; já mobilizou milhares de missionários espalhados pelo mundo.

Pesquisa sobre o futuro da obra missionária

No 30º aniversário da conferência Mission Korea, foi lançado um projeto de pesquisa para determinar o futuro da obra missionária na Coreia. Esse projeto surgiu do reconhecimento de uma possível limitação no alcance da missão nos círculos missionários coreanos por causa de um enfoque anterior na plantação de igrejas e na evangelização dos não alcançados.

A equipe de pesquisa precisava de uma referência para o questionário da obra missionária que incluísse atividades além do evangelismo e da plantação de igrejas. Documentos passados do Movimento de Lausanne foram verificados por meio de uma análise de conteúdo com o objetivo de listar todas as possíveis formas de expressão missionária.[6] O questionário final, com 99 itens de expressões possíveis da obra missionária, foi enviado a 373 líderes missionários e 62,5% deles responderam.[7] Os itens foram categorizados em doze temas da obra missionária que, com base nas respostas, foram então divididos em seis grupos distintos por ordem de importância estatística:

  • 1º grupo: “Alterações demográficas na sociedade e na igreja” e “Revisitando o evangelho”
  • 2º grupo: “Missões com a Coreia do Norte” e “Movimento da igreja missionária”
  • 3º grupo: “Renovação da igreja”
  • 4º grupo: “Gestão de organizações missionárias” e “Migrantes e ministérios multiculturais na Coreia”
  • 5º grupo: “Fazedores de Tendas e Negócios como Missão (BAM)”
  • 6º grupo: “Indigenização da teologia na Coreia”, “TI e mídias sociais”, “Temas sociais na arena pública” e “Dons espirituais e ministérios”

Temas futuros da missão coreana por importância.
Cores diferentes indicam diferenças estatísticas significativas.

Os resultados foram bem diferentes do questionário anterior quando o foco era os povos não alcançados. O tema “Alterações demográficas” no primeiro grupo pode ser interpretado como uma pergunta: “Com todas as mudanças na composição dos membros da sociedade e da igreja, que rumo devemos tomar agora?”. A inclusão do tema “Revisitando o evangelho” no primeiro grupo sugere que devemos retornar à mensagem do evangelho e começar de novo. Os temas do segundo ao quarto grupos também não incluem nada relacionado a povos não alcançados. Os entrevistados indicaram como necessários os trabalhos na Coreia do Norte e entre os imigrantes, e a renovação da igreja.

Avalia-se que os temas do quinto e do sexto grupo não são considerados tão importantes se comparados aos temas dos grupos anteriores. Eles tratam dos papéis individuais desempenhados pelos cristãos na sociedade. Os pesquisadores ficaram intrigados com esse resultado. A análise de conteúdo do Movimento de Lausanne realizada como parte dessa pesquisa revelou uma tendência na obra missionária global para a participação social na arena pública, como o cuidado com a criação, a paz e reconciliação, a amenização da polarização da sociedade e o auxílio às minorias sociais. Dentre os 100 itens listados, 32 foram agrupados sob “Temas sociais na arena pública”. Quando todos os resultados foram avaliados em conjunto, os líderes da amostra pareciam afirmar que algo havia dado errado e tentavam encontrar uma solução no nível institucional. No entanto, eles não pareciam perceber os diversos papéis desempenhados no mundo pelos cristãos, individualmente. No final, a equipe sugeriu três implicações para as futuras tendências na obra missionária da igreja coreana:

  • Missão de todos: Os futuros protagonistas da obra missionária serão pessoas comuns com diferentes talentos e experiências.
  • Missão na arena pública: O local da obra missionária futura será todos os lugares e alcançará todas as esferas da sociedade.
  • Missão integral: O testemunho do evangelho se dará por meio de relacionamentos pessoais e pela credibilidade construída ao longo dos anos nesses relacionamentos.

A escola Life As Mission (LAMS)

As igrejas coreanas lembram-se bem da Coreia como colônia do Japão, uma época em que vieram muitos missionários ocidentais. Ao contrário de outros países sob potências coloniais ocidentais durante esse período, a Coreia não recebeu missionários de seu colonizador. Isso resultou em dois legados na igreja coreana.

Primeiramente, a obra missionária é algo desejável e até obrigatório para os cristãos. Em segundo lugar, a obra missionária envolve o aspecto transcultural. Desde a década de 1980, quando as igrejas coreanas começaram a ter recursos suficientes para a obra missionária em outros países, elas se envolveram em missões cujo enfoque era os povos não alcançados e a plantação de igrejas. No entanto, conforme apresentado no resumo da pesquisa acima, é necessário revisitar e ampliar o conceito de missão na atualidade.

Capa da tradução para o coreano de A Missão do Povo de Deus, de Christopher Wright

Um pequeno grupo formado por líderes missionários e pastores de igrejas tem se reunido desde 2017 para ajudar igrejas locais e missionários a adotar formatos mais diversificados de missão. Usando o conteúdo do livro de Christopher Wright, A missão do povo de Deus, que foi planejado para ser um bom guia para esse propósito de diversificação, esse grupo de líderes começou uma escola para ajudar os cristãos a encontrar sua própria missão, compartilhando suas vidas em pequenos grupos.[8] A escola recebeu o nome de Life As Mission School (LAMS) [A vida como missão].[9]

     O Deus da missão que restaura o mundo também opera na vida de uma pessoa e por meio dela.  Alguns têm como missão o resgate de espécies ameaçadas; outros, a assistência a idosos que residem em aldeias remotas; alguns ensinam coreano a meninas imigrantes muçulmanas em Itaewon, Seul; e outros entendem que sua missão é ouvir atentamente aos próprios filhos que sofrem de depressão. A obra missionária não se resume a ministérios em lugares distantes nem à quantidade de missionários. A missão de Deus é holística; abrange tanto as necessidades espirituais quanto as físicas.

Um pôster da LAMS que lembra um jogo de tabuleiro, dirigido à igreja local.

Estes são alguns depoimentos dos participantes da escola:

  • “Sempre me senti confuso e culpado em relação à minha identidade nos últimos dez anos, embora tenha ajudado ativamente os missionários. A razão é porque pensava que não poderia me tornar um deles. Hoje percebo que já fui enviado a um campo missionário com jovens profissionais que trabalham comigo”. (Sang Hyup Lee, médico que dirige a LAMS para jovens e profissionais da área médica)
  • “Eu pensava que a preparação para a obra missionária oferecida pela igreja era apenas para os que partiam em viagens missionárias de curto prazo. Agora podemos ajudar todos os membros a viver a obra missionária onde estiverem!” (Young Suk Yoon, ministro participante da LAMS para pastores)
  • “Eu não sabia que os evangélicos encaram com seriedade o bem-estar do planeta Terra. Fiquei satisfeito ao descobrir que a Bíblia nos ensina sobre nossa conexão com as vidas ao nosso redor e nos dá a esperança de uma nova terra”. (Ryoung Kim, produtor de morangos orgânicos que participou do LAMS como facilitador)
A equipe oficial da LAMS, formada em dezembro de 2022.[10]

Nos últimos cinco anos, a LAMS expandiu-se para outros grupos e lugares, como médicos e enfermeiros, hospitais, empresas, jovens profissionais, missionários em nações muçulmanas e outras regiões, universidades, organizações missionárias e igrejas locais. As escolas não são organizadas de forma centralizada, por isso cresceram em diferentes contextos. Recentemente, um pequeno grupo de leigos até desenvolveu o livro Missions of God’s Children, uma adaptação do livro de Wright voltada para crianças do ensino fundamental e médio. O livro será publicado pela IVP Korea nos próximos meses. Tudo isso é a ascensão de um movimento.

Mission-eol

O zelo e a dedicação das igrejas coreanas para com a missão transcultural é uma herança preciosa a ser preservada. No entanto, mudanças e desafios dentro e fora da Coreia exigem que a igreja abrace a diversidade da obra missionária. Essa diversidade pode ser encontrada quando a obra de Deus é refletida e apreciada na vida das pessoas e da comunidade.[11]

A palavra “missão” em coreano é “sun gyo”. Seu sentido literal é: propagar uma religião. Essa palavra carrega uma nuance marcante dos formatos passados da obra missionária. Por isso, meus colegas e eu frequentemente usamos intencionalmente a palavra “missional” sem qualquer alusão ao seu real significado.[12] Ela soa como “mission-eol”, e “eol” em coreano significa o espírito coletivo de uma comunidade. Também remete a algo nobre. “Mission-eol” implica que o Espírito Santo do Deus da obra missionária está presente e atuante entre os seguidores de Jesus. Esse é o Espírito que queremos plantar por meio do movimento LAM. O Espírito que ungiu Jesus Cristo agora desperta e conecta pessoas para que juntas sejam uma nova onda da obra missionária e assim reflitam a glória do Senhor, conforme profetizado pelo profeta Isaías e proclamado pelo próprio Jesus Cristo nosso Senhor.

Notas finais

  1. “2022 Korean Mission Statistics” (escrito em coreano), Korea Research Institute for Mission (KRIM). Acesso em: 14 de fevereiro de2023. Disponível em: https://krim.org/2022-korean-mission-statistics/.  
  2. Ibid.
  3. “Religions of Koreans 1984–2021 Report” (escrito em coreano), Gallup Korea. Acesso em: 10 de fevereiro de 2023. Disponível em: http://www.gallup.co.kr/gallupdb/reportContent.asp?seqNo=1208.
  4. “2023 Social Credibility in the Korean Church Report” (escrito em coreano), Christian Ethic Movement. Acesso em: 13 de fevereiro de 2023. Disponível em: https://cemk.org/resource/29349/. Essa pesquisa foi conduzida pelo Movimento de Ética Cristã, todos os anos desde 2008. O Movimento de Ética Cristã é uma rede e um movimento de cristãos protestantes muito respeitado desde sua criação em 1987. A pesquisa foi coletada em abril de 2022. O resultado mostra que apenas 21% dos coreanos confiam na igreja; isso significa que quatro em cada cinco coreanos não confiam nas igrejas coreanas.
  5. “Future Issues of Korea Mission” (escrito em coreano), Mission Korea, http://missionkorea.org.
  6. Esse meu trabalho inicial foi estendido a uma equipe de pesquisa para conferir mais confiabilidade. Todos os LOPs foram lidos por meio da revisão por pares. Quando se compara as frequências das palavras nos LOPs por ano de publicação, o foco da missão do Movimento de Lausanne parece ter mudado ao longo dos anos, passando de temas mais transculturais e religiosos para temas mais sociais e públicos. Seus resultados e implicações estão sendo compilados para publicação em inglês e coreano.
  7. A lista inicial foi apresentada e discutida em um grupo focado de 40 líderes missionários para produzir 99 itens. A pesquisa online a seguir pediu que os entrevistados de uma amostra maior marcassem em uma escala Likert o grau de importância de cada item à luz do futuro da missão.
  8. Christopher J. H. Wright, A Missão do Povo de Deus: uma Teologia Bíblica da Missão da Igreja. São Paulo, SP: Edições Vida Nova, 2012).
  9. O primeiro grupo a cunhar o termo “Life As Mission” [A vida como missão] e que, em 2017, fundou a escola com o mesmo nome, formou em dezembro de 2022 uma organização oficial chamada LAMS.
  10. A equipe LAMS é formada por integrantes com diferentes formações, como missionários do GBT, Interserve e WEC; membros da equipe da Mission Korea; uma empresária; e dois pastores de igrejas locais.
  11. Nota da Editora: Leia “’Sonata de amor’ da Coreia para o Japão”, de Eiko Takamizawa, na edição de novembro/2021 da Análise Global de Lausanne, https://lausanne.org/pt-br/recursos-multimidia-pt-br/agl-pt-br/2021-11-pt-br/sonata-de-amor-da-coreia-para-o-japao.
  12. A ideia de usar missional em vez de sun gyo foi do Sr. Sung Keun Jee, diretor do Institute for Everyday Life as Ministry.