Introdução
Como profissional da área, eu deveria ter previsto isso, mas não previ. Minha esposa, normalmente ativa, vibrante e competente, começou a apresentar vários sintomas que não faziam qualquer sentido para nós. Deixou de ser uma líder ministerial e professora extrovertida, articulada e extremamente capaz, para ser uma pessoa com dificuldades para concluir frases ou tomar decisões simples. Começou a ter episódios de perda de memória e alterações de humor. No geral, não conseguia executar tarefas de sua rotina diária e isso estava afetando toda a nossa família. Depois de consultar um terapeuta, ela foi diagnosticada com um caso grave de esgotamento ou burnout. A luta por sua recuperação serviu para que nossa família aprendesse a compreender o valor de uma boa teologia do trabalho, a importância do descanso e do equilíbrio, e como o burnout pode ser destrutivo. Felizmente, hoje vivemos a fase da recuperação do burnout e nossa vida e ministério são melhores por causa disso. A experiência me levou a pesquisar e redigir minha dissertação sobre o burnout entre missionários e organizações missionárias, e, como instrutor e provedor de cuidados, acabei me especializando no assunto.[1]
O que é burnout?
O burnout – ou síndrome do esgotamento profissional – entre missionários é um fenômeno crescente. Segundo uma estatística do instituto Barna, todos os meses, cerca de 1.500 obreiros ministeriais norte-americanos (pastores e missionários) abandonam o seu trabalho, em parte devido ao burnout.[2] Com um investimento colossal de 500 mil dólares no recrutamento, capacitação, envio e sustento de um obreiro ministerial no campo missionário durante os primeiros quatro anos,[3] o custo do burnout pode ser astronômico. Mas esse valor não é apenas monetário. O burnout afeta famílias, equipes, mantenedores, amigos e o avanço do evangelho.[4]
Segundo a Organização Mundial da Saúde, o burnout é uma síndrome resultante da falta de gestão do estresse no local de trabalho. Manifesta-se de três formas principais que agem em conjunto: exaustão, cinismo e redução da eficácia profissional.[5]
- A exaustão ocorre quando os recursos físicos, emocionais, psicológicos ou relacionais são insuficientes para executar ou concluir uma tarefa.
- O cinismo manifesta-se quando as emoções assumem o controle, resultando num aumento da negatividade em relação ao trabalho e às pessoas associadas ao trabalho.
- A eficácia profissional é reduzida devido a um sentimento de incapacidade e a uma sensação de falta de realização.
A pessoa pode sentir-se exausta ou sobrecarregada, mas a exaustão por si só não constitui o burnout. Da mesma forma, um obreiro pode estar mostrando sinais de negatividade ou cinismo, mas isso, isoladamente, não é um indicador da síndrome de burnout. É a combinação dos três componentes que pode ser identificada como burnout e que leva a pessoa a se desconectar física, mental, emocional, relacional e até espiritualmente. “A pessoa com burnout não funciona. Não consegue sequer lidar com sua rotina diária”.[6] Os sinais de alerta do burnout são muitos, mas é importante observar que, geralmente, são três os componentes principais: físico, psicológico e comportamental.
Sinais de alerta do burnout[7] | ||
Físicos | Psicológicos | Comportamentais |
Dores de cabeça frequentes | Ataques de pânico | Produtividade reduzida |
Enfermidade recorrente | Ira crescente | Maio número de ausências |
Fadiga prolongada | Frustração | Isolamento |
Alterações nas experiências de dor | Irritabilidade | Atrasos frequentes |
Inquietação | Falta de esperança | Dificuldade de trabalhar em equipe |
Insônia | Sentimento de incapacidade | Alterações de humor |
Palpitações | Pessimismo | Insatisfação profissional |
Dor no peito | Tristeza | Aumento no uso de drogas/álcool |
Enfermidade cardiovascular | Depressão | |
Problemas digestivos | Ansiedade |
Além desses sinais, a pessoa pode ter lapsos de memória ou dificuldade de tomar decisões e experimentar sentimentos de fracasso e derrota. Muitas vezes, quem sofre de burnout não tem consciência de sua condição e necessita de intervenção externa para identificar e diagnosticar o problema.
Questões sistêmicas nas organizações que podem levar ao burnout
Maslach e Leiter identificaram as seis principais áreas que influenciam no burnout entre os missionários.[8]
Para o missionário, a [sensação de] falta de controle pode ocorrer de várias maneiras. Os exemplos incluem:
- Perda de autonomia e falta de autoridade para controlar o trabalho ou as decisões para o ministério.
- Não ter voz nos processos de tomada de decisão do ministério, da equipe ou da sua organização missionária.
- Sensação de ser manipulado pelos que estão em posição de autoridade ou por quem toma as decisões.
- Métricas de sucesso implementadas por agências missionárias ou igrejas mantenedoras que são inapropriadas para a cultura e o contexto local, ou cujo foco está na produção e na carga de trabalho.
- Mudanças de funções sem preparação e verificação adequadas, causando ambiguidade, confusão e conflito de funções.[9]
A sensação de falta de recompensa ocorre quando o trabalho é desvalorizado por meio de reforço negativo ou pouco reconhecimento.[10] Dependendo do contexto cultural, as recompensas e os frutos do discipulado, do evangelismo e de outros esforços ministeriais bem-sucedidos podem demorar muito para serem vistos ou jamais virem a acontecer. Pode haver entre os missionários o sentimento de que o trabalho jamais termina e que é difícil quantificar o sucesso, e isso pode levar a sentimentos de ineficácia. Muitas vezes, o desejo de ver frutos e de ser recompensado pelos esforços ministeriais pode suplantar o desejo por progresso ou recompensa financeira.[11]
A incompatibilidade ou conflito de valores pode surgir quando há uma desconexão entre os valores do obreiro e os da organização, ou uma dissonância entre a cosmovisão em relação à obra e a realidade da rotina diária no seu contexto ministerial. Isso pode produzir cinismo, desmotivação, ineficácia e carga de trabalho inapropriada. Os valores são essenciais para que as pessoas experimentem uma relação profunda com o seu trabalho e, quando os valores da organização e do obreiro são mutuamente compatíveis, o resultado é um engajamento significativo do obreiro e de sua função.[12]
A sobrecarga de trabalho pode se apresentar de diversas maneiras. Alguns exemplos incluem:
- Limitação de tempo, dinheiro ou de mão de obra para prover aos obreiros as ferramentas e o apoio necessários para completarem o seu trabalho de forma eficaz e assim evitar horas e carga de trabalho adicionais.
- Obreiros que exigem demais de si próprios e dos outros e assumem uma carga de trabalho muito mais pesada do que suas reais capacidades e recursos.[13]
- Valor próprio e identidade que derivam do trabalho e do desempenho.[14]
“Falta de equilíbrio entre vida pessoal e profissional, expectativas irrealistas, pouco tempo reservado para a família, tempo insuficiente com o Senhor, falta de descanso sabático, exaustão por sobrecarga de trabalho, adaptação cultural e linguística, percepções organizacionais que nem sempre são favoráveis, guerra espiritual, enfermidade pessoal ou de familiares, pais idosos, dificuldade em captar recursos, educação em casa, desafios de relacionamento, conflitos… Vivemos em uma cultura de resultados… e o resultado se sobrepõe à saúde. Números, produtividade e metas substituem o ser. Estamos mais concentrados em fazer do que em ser, e o burnout é impulsionado por esse foco prejudicial.[15]
Frequentemente, ocorre uma ruptura na vivência de comunidade quando o missionário é enviado em missão transcultural. O ministério de evangelismo e aqueles que são os alvos dos esforços ministeriais acabam substituindo ou preenchendo a lacuna nos relacionamentos.[16] A comunhão saudável é um contrapeso ao burnout. As pessoas precisam de um lugar para vivenciar mutuamente o sucesso, a celebração, o riso, a alegria e a camaradagem. A comunidade também é o lugar onde as pessoas podem conhecer outros que partilham dos mesmos valores. No contexto do ambiente de trabalho, a ideia de comunidade refere-se às relações no local de trabalho, a forma como as pessoas reagem aos níveis de conflito, camaradagem, trabalho em equipe e apoio social que se apresentam ali.[17]
Quando se trata de burnout, a justiça é categorizada contrastando-se as formas como são tratadas as pessoas de uma mesma organização. É preciso que haja confiança, transparência e respeito.[18] Os obreiros podem sofrer injustiças relacionadas a salários, benefícios, carga de trabalho, avaliações, contendas, promoções e outros fatores.[19] Evitar a abordagem de questões como incompetência, negligência ou negativismo na organização pode gerar sentimentos de injustiça, hostilidade, raiva e cinismo.[20]
Prevenção: Como as organizações missionárias podem promover mudanças?
Embora as práticas de autocuidado sejam importantes para prevenção e alívio dos sintomas de burnout, é necessário que haja diálogo entre as organizações e a liderança para um exame mais minucioso das práticas e políticas em vigor visando o cuidado dos missionários em ambientes transculturais. Tradicionalmente, o esgotamento é um fenômeno que os missionários e suas organizações tratam quando ocorre, se é que ele chega a ser identificado. Uma abordagem mais eficaz seria reconhecer as causas do burnout e colocar as mudanças em prática de forma proativa, se esforçando para prevenir o problema e criar uma força de trabalho missionária mais saudável e resiliente. Aqui estão algumas sugestões para a prevenção:
- Desenvolver um ponto de partida bem definido e um check-up anual para os missionários e funcionários da organização em relação à saúde mental, usando algumas destas ferramentas:
- Maslach Burnout Inventory (MBI)[21] [Inventário de burnout de Maslach] para determinar em que estágio da síndrome de burnout os obreiros se encontram.
- Conduzir uma pesquisa sobre saúde organizacional desenvolvida e administrada pelo Best Christian Workplace Institute (BCWI)[24] para identificar os alvos de intervenção a nível organizacional e sistêmico.
- Adotar uma cultura de treinamento e desenvolvimento constante em todos os níveis da organização. Tanto a liderança como os missionários devem ser capacitados não apenas em tópicos relacionados à obra missionária, mas também quanto ao autocuidado, ao ritmo de vida profissional e aos sinais e sintomas da síndrome de burnout.
- Dar atenção a processos de treinamento, seleção e verificação, atribuições de acordo com habilidades, funções híbridas, programas de mentoria, devidos processos de integração e transição e consulta de descrição de cargos para ajudar a diminuir a confusão e o conflito de funções.
- Recompensar o obreiro de forma individualizada frequente, espontânea, genuína, sincera e variada.[25] Para isso, é necessário haver comunicação intencional e compreensão do trabalho, do contexto, dos objetivos e das realizações.
- Através de políticas e modelos de liderança, encorajar os obreiros missionários a respeitar as pausas, a dormir e descansar de forma adequada, desfrutar de férias e períodos sabáticos, mantendo uma carga de trabalho sustentável e um tempo de recuperação que evite a exaustão.[26]
- Oferecer múltiplas oportunidades e exemplos para a construção de comunidades através de reuniões regionais e organizacionais, retiros, grupos de estudo bíblico, compartilhando desafios, orando e celebrando juntos (mesmo que remotamente).
- Manter comunicação constante entre o campo de trabalho e o escritório central, garantindo a transparência entre a sede e os missionários com diretrizes claras, confidencialidade e bom fluxo de informação, gera confiança nas organizações e seus obreiros.
- Oferecer treinamento de supervisão, orientação, feedback e adequada definição de metas.[27]
- Valorizar a opinião dos obreiros referente a decisões sobre suas funções pode resultar em menos exaustão e níveis mais elevados de eficácia.[28]
Conclusão
A síndrome de burnout entre os missionários e nas organizações que os enviam é cada vez mais frequente. Embora a perda ou incapacitação de um missionário seja bastante dispendiosa financeiramente, as repercussões são muito mais onerosas para sua equipe, sua família, seu casamento e seu ministério, e impactam de forma negativa o testemunho do evangelho. Mudanças nas questões sistêmicas que contribuem para o burnout, assim como na forma como o burnout é percebido entre os obreiros e os líderes, precisam de atenção. Com a aplicação de algumas medidas preventivas e certa atenção às políticas e aos procedimentos, as organizações que enviam missionários podem promover grandes mudanças na saúde de seus obreiros e criar ambientes mais propícios para partilhar o amor de Cristo com as nações.
Notas finais
- Billy L. Drum, ‘Burnout Among Cross Cultural Workers: An Analysis of Systemic Issues That Lead to Burnout Within Medium Sized North American Mission Organizations’ (MA Member Care diss., Redcliff College, 2021), https://www.scribd.com/document/681117359/Burnout-Among-Cross-Cultural-Workers-billy-Drum.
- Christopher Ash, Zeal Without Burnout: Seven Keys to a Lifelong Ministry of Sustainable Sacrifice (Viborg, Denmark: The Good Book Company, 2016), 16.
- Ken Harder and Carla Foote, Help Your missionaries Thrive: Leadership Practices that Make a Difference (Colorado Springs: GMI, 2016), 4.
- Ash, Zeal Without Burnout, 24.
- ‘Burn-out an ‘occupational phenomenon’: International Classification of Diseases,’ World Health Organization, accessed 7 October 2020, http://www.who.int/mental_health/evidence/burn-out/en/.
- Anonymous P7, interview by Billy Drum, 31 May 2021.
- Paula Davis, Beating Burnout at Work: Why Teams Hold the Secret to Well-Being and Resilience (University of Pennsylvania: Wharton School Press, 2021), 10-11.
- Christina Maslach and Michael P. Leiter, The Truth about Burnout: How Organizations Cause Personal Stress and What to Do About It (San Francisco: Jossey-Bass, 1997), 10-17.
- Arnold Bakker et al., ‘Burnout and Work Engagement: The JD-R Approach,’ Annual Review of Organizational Psychology and Organizational Behavior, no. 1 (2014): 389-411, doi:10.1146/annurev-orgpsych-031413-091235.
- Christina Maslach and Michael P. Leiter, ‘Areas of Worklife: A Structured Approach to Organizational Predictors of Job Burnout,’ in Emotional and Physiological Processes and Positive, Intervention Strategies (Research in Occupational Stress and Well Being, Vol. 3), eds. P.L. Perrewe and D.C. Ganster (Leeds: Emerald Group, 2003), 91-134, https://doi.org/10.1016/S1479-3555(03)03003-8. Brenda Bosch, Thriving in Difficult Places, Volumes 1, 2, & 3 (Pretoria, South Africa:Self-Published 2014), 82.
- Maslach and Leiter, ‘Areas of Worklife,’ 91-134.
- Maslach and Leiter, The Truth about Burnout, 16. Davis, Beating Burnout at Work, 54.
- Christina Maslach and Michael P. Leiter, ‘Reversing Burnout,’ Stanford Social Innovation Review, Winter 2005, https://ssir.org/articles/entry/reversing_burnout. Rob Hay et al., Worth Keeping: Global Perspectives on Best Practice in Missionary Retention (Pasadena: William Carey Library, 2007), https://www.everand.com/book/566434428. Bosch, Thriving in Difficult Places, Volume 2, 67.
- Hay et al., Worth Keeping.
- Anonymous P3, interview by Billy Drum, 14 April 2021.
- Henry Cloud and John Townsend, Boundaries: When to Say Yes, When to Say No to Take Control of Your Life (Grand Rapids: Zondervan, 1992).
- Christina Maslach, ‘Job Burnout: New Directions in Research and Intervention,’ Current Directions in Psychological Science, 12(5), (2003): 189-192, doi:10.1111/1467-8721.01258.
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- Ronald Koteskey, Psychology for Missionaries (Wilmore, KY: GO International, 2014), https://www.missionarycare.com/psychology-for-missionaries.html.
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- Christina Maslach et al., ‘Maslach Burnout Inventory™ (MBI),’ accessed 11 December 2023, https://www.mindgarden.com/117-maslach-burnout-inventory-mbi
- Michael P. Leiter & Christina Maslach, ‘Areas of Worklife Survey,’ accessed 11 December 2023, https://www.mindgarden.com/274-areas-of-worklife-survey
- Maslach and Leiter, ‘Areas of Worklife,’ 102. Maslach and Leiter, The Truth about Burnout, 155.
- ‘Increase Kingdom Impact,’ Best Christian Workplaces, accessed 11 December 2023, https://workplaces.org/.
- Gary Chapman and Paul White, The 5 languages of Appreciation in the Workplace: Empowering Organizations by Encouraging People (Chicago: Moody Publishers, 2019), 132-147.
- Maslach and Leiter, ‘Areas of Worklife,’ 96.
- Bosch, Thriving in Difficult Places, Volume 1, 83. Hay, et al, Worth Keeping.
- Maslach and Leiter, ‘Areas of Worklife,’ 97.