Um grupo de avós se encontra para estudar a Bíblia, orar, cantar e passar tempo em comunhão. Elas se encontram uma vez por mês para encorajarem umas às outras a compartilharem as boas novas de Cristo com as novas participantes que são corajosas o suficiente para frequentar o grupo. Não é um estudo bíblico típico; é especial porque este grupo é formado somente por seguidoras de Cristo que antes eram muçulmanas. Elas não possuem nenhuma educação anterior cristã, e algumas não podem frequentar encontros cristãos com regularidade por causa das pressões impostas pela sociedade. É esperado que elas ensinem seus netos e netas sobre o islamismo, mas lá elas estão desfrutando da presença do Senhor e da comunhão com suas irmãs em uma casa humilde no Uzbequistão.
Elas se sentam no chão, ao redor de uma toalha de mesa coberta de comidas saborosas generosamente preparadas pela Ester [não é seu nome verdadeiro], a nora da família. Uma das avós começa a pregar. Ela quer que todas abram uma certa passagem na Bíblia. Ester se lembra: “De repente, essas senhorinhas todas tiram seus smartphones e navegaram rapidinho até a passagem bíblica. Elas não hesitaram!”
O fato extraordinário é que quase todas essas senhoras provavelmente nunca tiveram um telefone fixo, muito menos um computador. Elas não vivenciaram a era dos e-mails, dos celulares que não eram smartphones, inclusive, as pessoas que moravam em regiões rurais nem correio tinham. É por isso que os smartphones são tão populares. Eles permitem que pessoas em locais isolados possam se conectar. A modernidade do envio de mensagens instantâneas, aplicativos para chamadas e vídeo chamadas que não precisam de banda larga, permitem o acesso mesmo nas regiões mais remotas do país.[1]
O aplicativo da Bíblia uzbeque
O país é o Uzbequistão, ele possui uma população de 32 milhões. Aproximadamente 33 milhões de pessoas falam o idioma uzbeque, a maioria deles morando no Uzbequistão e nos países vizinhos no centro asiático. O aplicativo da Bíblia em uzbeque foi elogiado pela facilidade do uso:
- A interface pode ser exibida em uzbeque, russo e inglês.
- A fonte pode ser ajustada com um movimento de pinça dos dedos para dar zoom e automaticamente se ajusta para caber na tela.
- É possível facilmente marcar, tomar notas, copiar, compartilhar passagens e buscar palavras ou frases.
- As configurações são fáceis de ajustar.
Um recurso importante do aplicativo é possibilidade de optar entre o alfabeto romano ou cirílico (para usuários do IOS a mudança é feita dentro do aplicativo, já para usuários de Android existem dois aplicativos distintos com os dois alfabetos):
- O alfabeto romano é útil para estrangeiros que não conhecem o alfabeto cirílico e para a geração mais jovem que foi alfabetizada com o alfabeto romano.
- O alfabeto cirílico é atraente para a geração mais idosa que o usou sua vida toda.
Todas as características mencionadas ajudam a popularizar o aplicativo entre pessoas de diversas idades, com diferentes graus de escolaridade e alfabetização. Assim que olhamos ao ícone do aplicativo vemos a atratividade do design que é a imagem de um chapéu masculino típico do Uzbequistão que é fácil de reconhecer. Isso também o torna menos desgastante que outros símbolos religiosos.
Além do texto da Bíblia, o aplicativo possui mais de 7000 notas de rodapé e um glossário com aproximadamente 80 mil links para estudos, além de fotos, mapas, fotos de manuscritos e desenhos esquemáticos do templo.
Impacto
É importante não se basear no número de downloads para obter estatísticas ou medir o uso de um aplicativo, uma vez que esse número pode não ser um verdadeiro indicador de seu uso. Apesar das reformas além da imaginação de muitos cidadãos, a opressão das atividades religiosas ainda é muito real no Uzbequistão:
- Algumas pessoas desinstalam aplicativos religiosos quando não querem que as autoridades os encontrem em seus celulares, especialmente em viagens terrestres ou por avião. Depois eles baixam e instalam o aplicativo novamente.
- Outra tendência é usar o aplicativo “Shareit” que usa uma conexão Bluetooth em vez da internet. Isso permite aos usuários compartilhar aplicativos e os criadores não conseguem ver se o aplicativo foi baixado.
Portanto, acompanhar o uso do aplicativo é difícil considerando essas circunstâncias especiais. O número real de usuários verdadeiros pode ser muito maior ou menor do que as estatísticas mostram.
A necessidade
No entanto, isso não deveria desestimular os programadores de produzirem e distribuírem aplicativos desse tipo. Existem situações onde obter uma cópia física das escrituras é simplesmente impossível, seja por causa de distância ou pelo número limitado de cópias impressas. No caso do Uzbequistão, os dois motivos são válidos. É possível comprar legalmente uma cópia da Bíblia da Sociedade Bíblica do Uzbequistão (SBU) localizada na capital. Entretanto, viajar até a capital é impossível para muitas pessoas por diversos motivos econômicos e logísticos. Eles acabam dependendo de amigos ou conhecidos para obter uma cópia da Bíblia. É somente possível se um amigo viajar para a capital com frequência e se ele ou ela já tiver comprado uma cópia própria, pois a SBU possui a política de vender somente uma Bíblia por visita à loja, então muitas pessoas não conseguiriam comprar mais de uma cópia por visita à capital, caso sua estadia seja curta demais para visitar a SBU em diversos dias diferentes.
O aplicativo preliminar da Bíblia uzbeque foi lançado em 2013 para aparelhos que usam a plataforma iOS. Isso aconteceu três anos antes da impressão da primeira Bíblia completa em uzbeque. Um cristão uzbeque tomou a iniciativa de desenvolver um aplicativo, mas na época não tinha os recursos para fazê-lo completamente funcional. A equipe, sabendo da grande necessidade da comunidade cristã de uma ferramenta como essas, providenciou os textos não finalizados para esse propósito. Depois que a Bíblia foi publicada, a equipe de tradução dedicou seu tempo e energia para publicar a Bíblia uzbeque de forma eletrônica. Usando um programa conhecido como Scripture App Builder (Construtor de Aplicativos de Escritura, em tradução livre) desenvolvido por funcionários da SIL na África, a equipe conseguiu construir um aplicativo potente e fácil de usar que disponibiliza todos os materiais da Bíblia uzbeque para telefones Android e iOS. O Scripture App Builder é uma ferramenta importante que está sendo usada no mundo todo para ajudar equipes com habilidades digitais relativamente básicas a desenvolver aplicativos da Bíblia de alta-qualidade para suas comunidades linguísticas. O aplicativo da Bíblia uzbeque mais completo foi lançado em 2017. O aplicativo possui a capacidade de tocar arquivos de áudio que serão adicionados quando a gravação da Bíblia em uzbeque estiver completa.
Programa do Livro Santo
Existe também um programa chamado “O Livro Santo” que o Instituto de Tradução da Bíblia em Moscou desenvolveu para pessoas que têm um computador. É um programa para o estudo da Bíblia que pode ser usado para estudar a Bíblia a fundo pois o programa permite ao usuário acessar os idiomas originais; ele possui uma opção para estudar palavras individuais (Word-Study), e é atualizado regularmente. Melhor de tudo: é gratuito. Muitas pessoas da ex-união soviética são fluentes em pelo menos dois idiomas e podem conversar em mais algumas. Eles apreciam essa opção que oferece diversas traduções diferentes e que pode ser baixada e instalada em módulos. Ele oferece ao usuário a possibilidade de estudar a Bíblia mais profundamente do que seria possível através de um aplicativo de celular.
Uma benção para a igreja
Apesar de alguns uzbeques serem bilíngues, muitos não conseguem ler bem em outros idiomas. Eles expressaram sua gratidão por um aplicativo que é fácil de usar, especialmente para iniciantes e pela oportunidade de lerem a Bíblia em seu idioma materno.
A existência do aplicativo da Bíblia em uzbeque tem sido uma grande benção para a igreja, não somente para os pequenos grupos (como igrejas domiciliares) no Uzbequistão, e para a igreja uzbeque do mundo todo. Existem aproximadamente 50 mil uzbeques nos EUA e cerca de 2 milhões na Rússia, a maioria são trabalhadores imigrantes. Além de usarem o aplicativo para um crescimento pessoal na fé, os fiéis podem compartilhar sem restrições a Bíblia com qualquer pessoa que mostre interesse em lê-la, com o simples clique de um botão.
Uso mundial dos aplicativos
Além do Uzbequistão, os aplicativos estão sendo usados no mundo todo para “engajamento com as escrituras”, como se diz nos meios de tradução da Bíblia, e mais. A história no começo deste artigo é um exemplo de “engajamento com as escrituras”. É um termo muito comum na área de tradução bíblica e pode ser um conceito estranho para pessoas que não são da área. O engajamento com as escrituras busca apresentar o conteúdo da Bíblia juntamente com uma visão de mundo e conceitos bíblicos para o leitor/ouvinte.
Frequentemente esses aplicativos da Bíblia apresentam uma versão em áudio, ou, se ainda não tiverem, terão um logo mais. Isso acontece porque muitos idiomas minoritários não possuem muita literatura própria escrita, e os falantes de tais idiomas frequentemente não estão familiarizados com a leitura de textos e/ou preferem passar informações de forma oral. Muitas culturas são consideradas “culturas orais” e nem todas são necessariamente grupos de pessoas minoritários.[2] A cultura uzbeque é conhecida como uma “cultura oral”, apesar de possuir uma literatura escrita com centenas de anos e mais de 30 milhões de falantes. O engajamento com as escrituras ajuda a garantir que as traduções da Bíblia estão sendo bem usadas em vez de ignoradas e o papel dos aplicativos da Bíblia é vital.
Diásporas
O acesso às escrituras de forma eletrônica é um patrimônio incrível para as diásporas. Para cristãos no exterior é uma forma fácil de acessar a Bíblia em seu próprio idioma, não somente para edificação e evangelização mas também para manutenção de seu vocabulário nativo, pronúncia e outras habilidades linguísticas. Eu menciono o vocabulário especificamente porque é um fenômeno comum entre imigrantes, especialmente os de segunda geração, terem uma proficiência de fala e compreensão em níveis considerados acima da média. No entanto, na maioria dos casos, seu vocabulário não é rico o suficiente para expressar os desejos do coração ou os medos e alegrias da vida no idioma do seu país de origem.
Isso cria uma divisão triste entre as gerações. A incapacidade de comunicar sentimentos pode causar desentendimentos ou criar uma divisão difícil de reparar, à medida em que aumenta a distância entre os níveis de comunicação . Nessa era de informação, muitos pais imigrantes entendem esse fenômeno e estão tomando medidas preventivas. Uma das medidas é o uso de textos bíblicos, que muitas vezes é o único texto escrito ao qual eles têm acesso.
A história de um imigrante cristão mostra como é importante para sua família em sua caminhada com o Senhor ter acesso à Bíblia em seu idioma materno. Tendo recebido sua própria Bíblia pela primeira vez e descoberto que ele podia compartilhar o conteúdo através de um aplicativo, ele enviou uma carta à organização que realizou a tradução. Na carta, ele disse que, apesar de ele e da esposa terem lido a Bíblia diversas vezes no idioma do seu novo país, ler a Bíblia em sua língua materna os deu a sensação de estarem lendo algumas partes como se nunca tivessem as lido antes.
A beleza de disponibilizar a Bíblia de forma eletrônica para uma vasta gama de leitores está nisso: seja para encorajar, exortar e ensinar a igreja ou para ajudar imigrantes a não se esquecerem de sua própria cultura ou idioma para não perderem sua linda herança cultural.
Notas
- Nota do Editor: Veja o artigo de David Yeghnazar, ‘Can Technology Help Iran’s New Believers?’, in January 2019 issue of Lausanne Global Analysis https://lausanne.org/pt-br/recursos-multimidia-pt-br/agl-pt-br/2019-01-pt-br/a-tecnologia-pode-ajudar-a-discipular-novos-cristaos-no-irao.
- Nota do Editor: Veja o artigo de Jerry Wiles: “Oralidade na academia e muito mais”, na edição de maio de 2018 da Análise Global de Lausanne https://lausanne.org/pt-br/recursos-multimidia-pt-br/agl-pt-br/2018-05-pt-br/oralidade-na-academia-e-muito-mais