O centenário da famosa Conferência Missionária Mundial de Edimburgo de 1910 foi a oportunidade para quase uma centena de conferências e projetos de estudo em todos os continentes.[1] Passado pouco mais de uma década, é hora de perguntar o que aprendemos com as reflexões de 2010, e dos anos seguintes, e como isso pode contribuir para a obra missionária hoje. Em primeiro lugar, vou olhar para o passado, especificamente para três eventos significativos do centenário; em seguida, vou avaliar a notável série de livros que nasceram a partir de Edimburgo 2010; e terceiro, vou sugerir como esses recursos capacitam e sustentam a obra missionária no mundo ferido da década de 2020.
Lembranças distintas: “Os três filhos de Gana”
Em 1978, Ralph Winter, ex-professor do Seminário Teológico Fuller em Pasadena, Califórnia, e, na época, líder do Centro de Missões Mundiais dos Estados Unidos, lembrou-se do que, vinte anos antes, ele chamou de “casamento”. Winter estava se referindo à decisão tomada em Accra, Gana, pelo comitê de continuidade de Edimburgo 1910 – o Conselho Missionário Internacional (IMC) – de unir-se ao Conselho Mundial de Igrejas (CMI), um órgão que também teve sua origem na Conferência Missionária Mundial. O intuito era que a integração entre as duas organizações – IMC e CMI – promovesse uma união missionária estrutural entre as agências do Ocidente e as igrejas dos países anteriormente colonizados, ou seja, do Terceiro Mundo. Winter, no entanto, argumentou que esse “casamento” havia gerado três “filhos” missionários com características distintas.[2] O primeiro deles foi a Comissão para Missão Mundial e Evangelismo (CWME) do Conselho Mundial de Igrejas. O segundo filho foi o Movimento de Lausanne,[3] que já havia realizado seu primeiro e histórico congresso em Lausanne, Suíça. O terceiro “filho de Gana” foi o resultado do “chamado” que Winter e outros missiólogos americanos lançaram, propondo uma conferência de missionários comprometidos com “missões transculturais”.[4]
Quando olho para o ano de 2010, percebo que a previsão de Winter cumpriu-se amplamente. Na ocasião do centenário da Conferência Missionária Mundial, cada um dos “três filhos de Gana” de Winter tinha [crescido e] realizado eventos de grande escala.
- A Conferência de Edimburgo 2010 foi patrocinada pelo CMI, tornando-se, portanto, herdeira institucional de Edimburgo 1910. O encontro captou, em especial, a visão enunciada por John Mott em seu discurso de encerramento em 1910 de “um Cristo maior”, referindo-se ao crescimento global da igreja, unindo todos aqueles que se autodenominam cristãos – semelhante ao que hoje se conhece como “cristianismo mundial”.[5]
- O Lausanne Cidade do Cabo 2010,[6] o Terceiro Congresso Lausanne sobre Evangelização Mundial, organizado pelo Movimento de Lausanne, concentrou-se na evangelização mundial – a visão despertada em Edimburgo 1910 e reinterpretada no Primeiro Congresso Lausanne como “toda a igreja levando o evangelho todo ao mundo todo”. Desse modo, aprofundava-se e ampliava-se a compreensão da missão, estabelecendo a Grande Comissão no contexto do Grande Mandamento.[7]
- A Conferência de Tóquio 2010 foi concebida por Winter[8] e destacava o fato de Edimburgo 1910 ter sido um encontro de missionários transculturais, muitos dos quais sonhavam chegar aos locais não alcançados do mundo. Enfatizou a diversidade de membros e a multidirecionalidade do movimento missionário contemporâneo.[9]
Apesar de estar comprometido com uma expressão do centenário em particular, Winter não entendia essa diversidade de redes missionárias globais como um problema, mas usava a expressão “um casamento frutífero” para defini-la.[10] Concordo com essa afirmação no sentido de que esses eventos, por terem a mesma origem, foram fiéis à memória de Edimburgo 1910, porém cada um de uma maneira diferente. Visto que eles compartilham de um objetivo comum, que é anunciar a boa nova de Jesus Cristo, é de esperar que os três filhos aprendam e colaborem uns com os outros.[11]
A série do Centenário de Edimburgo da Regnum: recurso para missiólogos
O projeto de Edimburgo 2010 teve início em 2005 com um projeto de estudo e uma conferência.[12] Foi iniciado pelo Conselho Mundial de Igrejas, mas tendo em vista seu intuito de reunir o maior número possível de igrejas, não estava sob o controle desse órgão.[13] A “Chamada Comum” de Edimburgo 2010 foi confirmada na adoração por representantes de igrejas católica, evangélica, ortodoxa, pentecostal, protestante, bem como de igrejas independentes.[14] A “chamada” expressou o ethos aberto e receptivo do projeto e formou a base para a extensa série de livros que originou a Regnum Edinburgh Centenary Series (RECS), em português “Série do Centenário de Edimburgo”, publicada pela Regnum.[15] Inspirado pelos nove volumes publicados pela Conferência de Edimburgo de 1910, um dos principais arquitetos da série foi o falecido Knud Jørgensen. Ele supervisionou o projeto de pesquisa de Edimburgo 2010, atuando também como um dos membros da equipe de liderança do Lausanne Cidade do Cabo 2010. Colaborou com Wonsuk Ma, na época o Diretor do Oxford Centre for Mission Studies (Centro de Estudos Missionários de Oxford), e do seu braço editorial, a Regnum Books International.[16] Entrei para a equipe de editores como representante do projeto Edimburgo 2010 quando Tony Gray era o editor de produção da Regnum.
Publicada entre 2009 e 2016, a série compreende 35 volumes, além de um compêndio de dois volumes lançado em 2018. Cada volume se destina a representar perspectivas diversas que não são necessariamente compatíveis entre si. No todo, a obra oferece um amplo corte transversal do pensamento missionário no início do século 21. Vários volumes da série surgiram diretamente do próprio projeto de Edimburgo. O volume 2, por exemplo, Witnessing to Christ Today (Testemunhando de Cristo hoje) é o livro que todos os delegados da Conferência de Edimburgo 2010 receberam. Ali estão incluídos os relatórios dos nove grupos de estudo que haviam trabalhado por vários anos em continentes e divisões eclesiásticas sobre temas missionários atuais: fundamentos para a missão; missão cristã entre outras religiões; missão e pós-modernidade; missão e poder; formas de engajamento missionário; educação e formação teológica; comunidades cristãs em contextos contemporâneos; missão e unidade – eclesiologia e missão; e espiritualidade da missão e discipulado autêntico. O volume da série sobre a conferência define o tom dos demais volumes ao apresentar seu objetivo de “renovar a espiritualidade missionária, estimular a reflexão e encorajar a ação comum das igrejas neste momento singular da história”.[17]
Esses relatórios formaram a base da discussão da própria conferência e da “Chamada Comum”. Posteriormente, todos os nove grupos produziram livros para a série, e o trabalho de análise desses temas por outros grupos também está incluído. Por exemplo, há dois volumes sobre “missão entre outras religiões”.[18] A série também inclui livros sobre missão pela perspectiva de diversas regiões do mundo: América Latina, Coreia, nordeste da Índia e Europa Central e Oriental, juntamente com trabalhos sobre diferentes teologias missionárias confessionais, entre elas a católica, a ortodoxa, a anglicana e a pentecostal. Outros grupos contribuíram com volumes sobre diferentes tipos de missão – missão holística, glocal, na diáspora e de aprendizagem; sobre a missão e a Bíblia, a criança, a unidade, a formação e a liberdade religiosa; e sobre missão como reconciliação, entre os marginalizados, como serviço e como cuidado da criação.
Todos os três “filhos de Gana” estão representados em livros da série: Missiologia Ecumênica (volume 35), O Movimento de Lausanne (volume 22) e Missão Evangélica e Fronteiriça (volume 9), respectivamente.[19] No todo, a série constitui um recurso incomparável para compreendermos nós mesmos e os outros na obra missionária e no cristianismo mundial hoje.
Missão em um mundo ferido: depois de 2020
O mundo em 2021 parece um lugar mais sombrio do que há uma década. Apesar das críticas contundentes aos modelos coloniais de missão, a atmosfera em Edimburgo 2010 foi de celebração. Em contraste com o pensamento cristão vigente que situava o cristianismo apenas no Ocidente, a conferência demonstrou gratidão pelo cristianismo mundial no que se refere à presença de igrejas em todo o mundo testemunhando de Cristo e aos cristãos de várias origens envolvidos na obra missionária. Em consonância com esta visão, a “Chamada Comum” expressa o forte senso de interconexão global por meio do Espírito Santo, promovendo “mutualidade, parceria, colaboração e trabalho conjunto na missão” (parágrafo 8). Sua abordagem do mundo é esperançosa e caracterizada por uma “confiança ousada”, embora preocupada em abordar os outros com sensibilidade por meio de “diálogo autêntico, respeitoso, engajamento e humilde testemunho” (parágrafo 2).
A conferência de Edimburgo 1910 aconteceu em um mundo globalizado pelo Império Britânico, uma condição que permitiu que obreiros e líderes da igreja de campos missionários de todas as partes do mundo se reunissem para a conferência. É proveitoso lembrar que, apenas quatro anos depois, boa parte do mundo foi dilacerada pela Primeira Guerra Mundial. O mundo, em seguida, foi devastado por uma pandemia, separado pelo protecionismo que precipitou a Grande Depressão e antagonizado pelo nacionalismo crescente que resultou em uma guerra ainda mais global, antes de se estabelecer no impasse ideológico conhecido como Guerra Fria.[20]
A era da globalização que sucedeu à Guerra Fria favoreceu a reunião de cristãos do Leste e Oeste, Norte e Sul em Edimburgo, na Cidade do Cabo e em Tóquio, em 2010. Nos últimos anos, contudo, há sinais de que essa era de conectividade global está abalada. Em seu lugar, vemos o crescente nacionalismo e protecionismo comercial, bem como mais restrições à mobilidade humana. Essas tendências foram exacerbadas pela pandemia da COVID-19. A pandemia expôs as feridas de nosso mundo; não apenas sua natureza doentia e a extensão do sofrimento e do egoísmo humanos, mas também as profundas desigualdades de riqueza, acesso à assistência médica e qualidade do meio ambiente. A maior parte dessas desigualdades é estrutural, visto que correspondem rigorosamente à raça, à etnia e à localização. A situação atual clama para que o mundo se reúna em busca de soluções para esses problemas comuns, embora sob muitos aspectos pareça que estamos cada vez mais separados. Até mesmo as novas mídias e tecnologias, que intensificaram a globalização e permitiram a continuidade da comunicação a despeito da pandemia, são suscetíveis ao nacionalismo tecnológico e à manipulação de líderes poderosos.
O ano de 2010 foi um momento precioso para que os cristãos do mundo se encontrassem e discernissem a missão de Deus e juntos participassem dela. Os recursos que resultaram dessas reuniões apontam um caminho a seguir. O Compromisso da Cidade do Cabo descreve a forma como “o plano de Deus para a integração de toda a criação em Cristo está moldado na reconciliação étnica da nova humanidade de Deus” (CTC II-B-1). À medida que os governos e as organizações transnacionais não governamentais lutam para manter o mundo unido, é fundamental a colaboração dos cristãos de todas as nações, tribos, povos e línguas (Apocalipse 7.9).[21]
A boa nova de Jesus Cristo abrange este mundo e o próximo, corpo e alma, perto e longe. Em Cristo está o potencial para superarmos as divisões, sejam elas nossas próprias ou impostas a nós. A reconciliação não é automática. É um processo que envolve construir relacionamentos, tratar feridas, lidar com injustiças e estruturar juntos um caminho a seguir.[22] A “Chamada Comum” de Edimburgo 2010 conclui: “Ao olharmos a vinda de Cristo em glória e julgamento, experimentamos a sua presença entre nós no Espírito Santo, e convidamos todos a se juntarem a nós, como nós participamos na missão transformadora e reconciliadora de Deus, na missão de amor por toda a criação”.
Notas
- I documented these on the Edinburgh 2010 website, www.edinburgh2010.org, while I was the research coordinator for the project.
- Ralph D. Winter, ‘Ghana: Preparation for Marriage’, International Review of Mission 67, no. 267 (July 1978): 338-53.
- Then the Lausanne Committee for World Evangelization.
- Winter, ‘Ghana’, 351-53.
- John R. Mott, ‘Closing Address’, in World Missionary Conference, 1910, Vol. 9: The History and Records of the Conference (Edinburgh: Oliphant, Anderson, & Ferrier, 1910), 348.
- Nota da Editora: veja o artigo de Doug Birdsall intitulado “A Personal Reflection on Cape Town 2010” na edição de novembro/2015 da Análise Global de Lausanne, https://lausanne.org/content/lga/2015-11/a-personal-reflection.
- The Cape Town Commitment, Preamble. https://lausanne.org/pt-br/recursos-multimidia-pt-br/ctc/compromisso#p2-2
- Winter died in 2009.
- Tokyo 2010 Declaration, https://www.ggcn.org/tokyo-declaration/.
- Winter, ‘Ghana’, 353.
- I was privileged to attend all three conferences.
- For the background, see Daryl Balia and Kirsteen Kim, ‘Introduction: Experimenting with a Multi-Regional, Cross-Denominational, Poly-Centric Study Process’, in Daryl Balia and Kirsteen Kim, eds., Edinburgh 2010: Witnessing to Christ Today, RECS 2 (Oxford: Regnum, 2010), 1-9.
- Other key partners were the Church of Scotland and the University of Edinburgh.
- Edinburgh 2010, Common Call, http://edinburgh2010.org/fileadmin/Edinburgh_2010_Common_Call_with_explanation.pdf.
- For purchases of books and ebooks go to https://www.regnumbooks.net/collections/edinburgh-centenary. To get free PDF downloads for personal use, visit https://www.ocms.ac.uk/regnum-centenary-free-downloads/.
- Dr Ma is currently Dean, College of Theology and Ministry and Distinguished Professor of Global Christianity, Oral Roberts University, USA.
- Kirsteen Kim and Andrew Anderson, ‘Introduction’, in Kirsteen Kim and Andrew Anderson, eds., Edinburgh 2010: Mission Today and Tomorrow, RECS 3 (Oxford: Regnum, 2011), 6.
- Lalsangkima Pachuau and Knud Jørgensen, eds., Witnessing to Christ in a Pluralistic World: Christian Mission among Other Faiths, RECS 7 (Oxford: Regnum, 2011); Marina Ngursangzeli Behera, Interfaith Relations after One Hundred Years: Christian Mission among Other Faiths, RECS 8 (Oxford: Regnum, 2011).
- Kenneth R. Ross, Jooseop Keum, Kyriaki Avtzi, and Roderick R. Hewitt, eds., Ecumenical Missiology: Changing Landscapes and New Conceptions of Mission, RECS 35 (Oxford: Regnum, 2016); Margunn Serigstad Dahle, Lars Dahle, and Knud Jørgensen, eds., The Lausanne Movement: A Range of Perspectives, RECS 22 (Oxford: Regnum, 2014); A. Scott Moreau and Beth Snodderly, Evangelical and Frontier Mission: Perspectives on the Global Progress of the Gospel, RECS 9 (Oxford: Regnum, 2011).
- Bryant L. Myers, Engaging Globalization: The Poor, Christian Mission, and Our Hyperconnected World (Grand Rapids, MI: Baker Academic, 2017); Peter Sedgwick, ‘Globalization’, in Peter Scott and William T. Cavanaugh, The Blackwell Companion to Political Theology (Oxford: Blackwell, 2007), 486-500.
- Nota da Editora: veja o artigo de Kirsteen Kim intitulado “Desbloqueando a partilha de recursos entre o Norte e o Sul” na edição de novembro/2017 da Análise Global de Lausanne, https://lausanne.org/pt-br/recursos-multimidia-pt-br/agl-pt-br/2017-11-pt-br/desbloqueando-a-partilha-de-recursos-teologicos-entre-o-norte-e-o-sul
- See, for example, Al Tizon, Whole and Reconciled: Gospel, Church, and Mission in a Fractured World (Grand Rapids, MI: Baker Academic, 2018).
Crédito das fotos
Tokyo 2010 imagem de ‘Tokyo 2010‘ (GNU Free Documentation License).