Global Analysis

O dilema da salvação pessoal nas culturas coletivas

Considerando a devoção filial de um ponto de vista missionário

I'Ching Thomas mar 2022

Uma mulher estava convencida da verdade do evangelho, mas não conseguia tomar a decisão de aceitá-lo. O principal obstáculo para que ela abraçasse a fé cristã era o destino de sua falecida mãe:

“Se Jesus é o único caminho para a vida eterna na presença de Deus, então terei de viver com o pensamento terrível de que minha mãe, que morreu budista, está perdida para sempre e que nunca mais a verei caso me torne cristã. É uma verdade terrível e dolorosa demais para mim”.

“Se Jesus é o único caminho para a vida eterna na presença de Deus, então terei de viver com o pensamento terrível de que minha mãe, que morreu budista, está perdida para sempre e que nunca mais a verei caso me torne cristã. É uma verdade terrível e dolorosa demais para mim”.

Essa história é familiar a muitas pessoas do leste asiático.

O dilema

Para muitos asiáticos orientais, o terrível destino daqueles que morrem sem Cristo significa que os que escolhem seguir Jesus estão eternamente separados de sua família e de seus ancestrais incrédulos.

Embora seja verdadeira para todos nós, essa crença é particularmente significativa para os asiáticos orientais, pois implica escolher entre a salvação pessoal e o dever de amar e respeitar os pais e ancestrais. Muitos deles, mesmo convencidos da verdade do evangelho, optaram por rejeitar a oferta de salvação pessoal por meio de Cristo por causa de seus entes queridos falecidos. A decisão pela rejeição do evangelho pode parecer desconcertante para alguns de nós, mas quando consideramos os valores culturais e religiosos que a sustentam, nos sensibilizamos com o dilema.

Entendendo a devoção filial

Em grande parte do mundo, vida e realidade são conceitos abordados de forma coletiva. Muitas vezes, os interesses individuais estão subordinados aos do grupo, e as decisões são movidas pelo que seria melhor para a comunidade e não para o indivíduo. Assim, uma decisão de salvação pessoal que diz respeito exclusivamente ao indivíduo será considerada não apenas egocêntrica, mas também contrária à norma de colocar o interesse da comunidade acima do indivíduo. Tal decisão é considerada ainda mais vergonhosa quando a comunidade em questão são os pais ou familiares.

Vista pelas lentes de uma cultura do leste asiático, esta decisão viola a expectativa fundamental de devoção filial. Embora esse imperativo moral de respeitar e amar os pais esteja presente em todas as culturas, a devoção filial é excepcionalmente central nas culturas do leste asiático. O confucionismo, influência marcante nas culturas chinesa, japonesa e coreana, ensina que a devoção filial é a maior das virtudes e descumpri-la equivale a renegar os pais.

O dever e a lealdade aos nossos pais e ancestrais é uma obrigação incondicional a ser cumprida tanto para com os vivos quanto para com os mortos.[1] Para os anciãos falecidos, é nossa obrigação realizar certos rituais que garantam seu bem-estar na vida após a morte. Enquanto isso, nosso dever para com os pais ou idosos ainda vivos seria priorizar seus desejos e interesses em detrimento dos nossos. Portanto, se nossos pais se opõem à nossa conversão, devemos atender seu desejo.[2] Devemos também sempre nos esforçar para amá-los e servi-los. Mas se nos tornamos cristãos depois que nossos pais faleceram sem a oportunidade de ouvir o evangelho, isso significaria abandoná-los no inferno. Eis o dilema: tornar-se cristão ou manter-se fiel às obrigações filiais.

Se nos tornamos cristãos depois que nossos pais faleceram sem a oportunidade de ouvir o evangelho, isso significaria abandoná-los no inferno. Eis o dilema: tornar-se cristão ou manter-se fiel às obrigações filiais.

Considerações teológicas: O que não dizer

Muitos que desejam ver mais asiáticos orientais tornando-se seguidores de Jesus anseiam encontrar uma maneira de solucionar esse dilema. Não há uma maneira simples ou fácil de resolver esse enigma missiológico, mas podemos evitar as duas afirmações a seguir.

1. Evite enfatizar a certeza de que aqueles que morrem sem ouvir o evangelho estão condenados ao inferno, embasando-se no fato de que a Bíblia é clara quanto ao juízo após a morte (Hb 9.27) e de que os que estão em Cristo não serão condenados (Rm 8.1-2).

Somente Deus conhece nosso destino e a prerrogativa de julgar é dele. Seria extremamente presunçoso de nossa parte declarar com autoridade absoluta que aqueles que morreram sem expressar sua fé em Cristo estão eternamente perdidos, pois muitas vezes não sabemos se uma pessoa persistiu na rejeição a Cristo até seu último suspiro.[3] Na verdade, a percepção da morte iminente muitas vezes traz à lembrança o evangelho ouvido anteriormente e pode levar ao arrependimento genuíno. Desse modo, em muitos casos, temos apenas um conhecimento provável, porém não absoluto, do destino dos incrédulos falecidos.

2. Evite dizer que aqueles que não tiveram a oportunidade de ouvir o evangelho e/ou crer em Jesus nesta vida terão uma segunda chance após a morte. Nada nas Escrituras sustenta essa afirmação. Pelo contrário, histórias como a do homem rico e Lázaro ensinam que, depois da morte, ninguém pode passar do inferno para o céu (Lc 16.24-26). O texto de Hebreus 9.27 também deixa claro que após a morte vem o julgamento. Além disso, nada nas Escrituras sugere que o juízo final dependa de qualquer coisa que façamos depois que morremos, mas somente do que fizemos nesta vida (Mt 25.31-46, Rm 2.5-10).

A ideia de que deveria haver uma segunda chance de aceitar Jesus após a morte pressupõe que todos têm direito a uma oportunidade de aceitar a Cristo e que o castigo eterno só virá para os que conscientemente decidirem rejeitá-lo. No entanto, ninguém merece ser aceito por Deus, e é somente pela graça de Deus em Cristo que podemos ser aceitos. A crença no castigo eterno é algo certamente difícil de aceitar, mas a Bíblia é clara a esse respeito. Isso deveria servir para nos impelir a compartilhar urgentemente o evangelho.[4]

Engajando-se com o contexto

Em vez de defendermos qualquer uma dessas duas perspectivas, podemos lidar com esse impasse missiológico sustentando firmemente o que nos foi revelado sobre Deus: ele é um Deus bom e misericordioso que, por amar os pecadores e desejar resgatá-los, sacrificou seu Filho para que recebesse a punição de nossos pecados. Em sua graça, ele nos oferece, na vida presente, a liberdade e a oportunidade de escolher viver com ele (2Pe 3.9). Como Deus soberano, ele é o único que conhece nosso coração e o único que tem a prerrogativa de julgar quem merece o castigo eterno.

Como bem expressa Norman Geisler, o falecido apologista: “Pois Deus, em sua sabedoria e bondade, não permitiria que fosse para o inferno alguém que ele sabia que iria para o céu se ele lhe oferecesse mais uma oportunidade”.[5] Sendo assim, podemos estar certos de que por mais que amemos nossos pais, Deus os ama ainda mais. Em sua onisciência, ele os teria alcançado.

Não se espera que abandonemos nossos anciãos assim que nos tornamos seguidores de Jesus. Pelo contrário, espera-se que honremos a Deus honrando nossos pais.

Também precisamos lembrar que as Escrituras têm uma postura muito positiva em relação aos ancestrais – eles são lembrados, honrados e respeitados. A genealogia detalhada de Jesus no Evangelho de Mateus destaca a importância dos antepassados. Na verdade, as culturas do antigo Oriente Próximo compartilham muitas semelhanças com as culturas do leste asiático — e a devida reverência por nossos pais, anciãos e ancestrais é uma dessas similaridades. Em vista disso, portanto, não se espera que abandonemos nossos anciãos assim que nos tornamos seguidores de Jesus. Pelo contrário, espera-se que honremos a Deus honrando nossos pais.

Mesmo à medida que buscamos maneiras de abordar essa preocupação de nossos amigos do leste asiático, precisamos reconhecer que não há duas pessoas iguais. Devemos contextualizar nossa exposição do evangelho.[6] A conversão é obra do Espírito Santo em cooperação com o incrédulo. Somos chamados simplesmente para ser obedientes e fiéis no testemunho das boas novas de Jesus. Conversas inter-religiosas sempre ocorrem em contextos influenciados por crenças, cultura, história pessoal, associações do passado e realidades do presente. Sendo assim, devemos estar atentos a isso e aprender a respeito dos obstáculos culturais que surgem no caminho, para que nossos amigos possam decidir abraçar a fé cristã. Devemos, portanto, procurar anunciar o evangelho em termos que lhes sejam existencialmente relevantes e significativos.

Quando apresentamos a verdade do evangelho a pessoas de outra cultura, estamos essencialmente afirmando que nem tudo o que eles acreditam e sabem sobre a vida e a realidade é verdade. Estamos lhes oferecendo a vida em Cristo, mas isso implica abandonar alguns de seus valores e crenças para se conformar com a verdade que acabam de conhecer. É uma decisão significativa e complexa, que não apenas define seu destino, mas também terá um grande impacto em sua identidade social e cultural durante toda sua vida, mesmo muito depois de terem feito a oração do pecador.

Notas finais

  1. I’Ching Thomas, Jesus: The Path to Human Flourishing (Singapore: Graceworks, 2018), 51.
  2. Daniel J. McCoy, ed., The Popular Handbook of World Religions (Eugene, OR: Harvest House, 2021), 50.
  3. Wayne Grudem, Systematic Theology (Grand Rapids, MI: Zondervan, 2000), 815.
  4. Grudem, Systematic Theology, 822-823.
  5. Norman L. Geisler, Baker Encyclopedia of Christian Apologetics (Grand Rapids, MI: Baker, 1999), 313.
  6. Nota da Editora: Leia o artigo de D.J. Oden, intitulado “Elementos chave da plantação de igrejas na Tailândia” na edição de novembro/2020 da Análise Global de Lausanne, https://lausanne.org/pt-br/lga-05-pt-br/elementos-chave-da-plantacao-de-igrejas-na-tailandia.