Global Analysis

Ralph Winter e a missiologia “Grupo de Povos”

As fronteiras missionárias de alcançados e de não alcançados

Kevin Higgins nov 2022

Em 2017, deixei a liderança de uma organização e ingressei na Frontier Ventures (FV), tornando-me diretor geral em 2019. Eu já conhecia o pensamento do fundador da instituição, Ralph Winter. Sua visão incluía os conceitos de grupos de povos não alcançados e o incentivo à contextualização radical. O enfoque deste artigo é apenas o primeiro: os grupos de povos (especialmente alcançados e não alcançados).

Dr Ralph Winter

Comecei a estudar mais a fundo o pensamento do dr. Winter, inclusive, obviamente, seu discurso no Congresso Lausanne sobre Evangelização Mundial de 1974. Eu queria me certificar de que entendia as raízes da FV antes de tentar subir na árvore. Estamos nos aproximando da marca de 50 anos do Congresso Lausanne de 1974. Desde então, o mundo missionário não cessou de debater e reavaliar o conceito de grupo de povos. A FV fez o mesmo. E descobri que Ralph Winter também reavaliava continuamente essas questões.

Meu objetivo aqui é simplesmente apresentar, de forma resumida, algumas das reflexões do dr. Winter, outras da FV, além de minhas próprias perguntas sobre o futuro. Primeiro, um breve esboço do discurso de 1974.

Lausanne 1974

Ralph Winter foi convidado por Billy Graham para escrever sobre evangelismo transcultural como “a mais alta prioridade”.[1] Grande parte do artigo explicava a chamada escala “E” e especialmente a “E-3”. A letra “E” representava “evangelismo” e o algarismo “3”, a distância cultural mais significativa a ser negociada para que o evangelismo fosse eficaz.

É evidente que, embora fossem apresentados números e dados para ajudar a definir a realidade da abrangência da necessidade, também é verdade que Winter lutava com questões culturais e linguísticas de comunicação e prática que precisariam ser levadas em conta como fatores [preponderantes] para qualquer tipo de progresso.[2] Ao longo dos anos, estes fatores se tornaram cada vez mais importantes para Winter, como descreverei logo mais. Antes, porém, quero mencionar brevemente alguns questionamentos dos primeiros respondentes.


O Primeiro Congresso de Lausanne sobre Evangelização Mundial foi realizado em Lausanne, Suíça, em 1974.

Philip Hogan,[3] das Assembleias de Deus, propunha a “diáspora” como uma solução para as questões do E-3 e orientava os leitores a não se esquecerem do papel do Espírito na missão. Não discordo das premissas básicas – tampouco Winter discordava – mas pode-se argumentar que Hogan não percebeu, em grande parte, os pontos principais das complexidades do desafio cultural.

No que se refere à cultura, Jacob Loewen,[4] antropólogo da Sociedade Bíblica, dava amplo apoio à ênfase de Winter nos desafios da comunicação apresentados pela distância cultural e oferecia exemplos bíblicos e contemporâneos para sustentá-la. A principal crítica de Loewen a isso era a suposição de Winter de que as culturas E-3 não tinham “vizinhos próximos”. Essa questão continua a ser debatida hoje.[5]

Pablo Perez,[6] do Seminário Teológico de Dallas, criticou as primeiras versões do princípio da unidade homogênea e, contrapondo-se a Loewen, pareceu minimizar os desafios das diferenças culturais. Além disso, semelhante ao lembrete de Hogan sobre o Espírito Santo, Perez argumentava que a Bíblia nos dirá o que fazer.

Toda a discussão entre Winter e esses respondentes gira em torno de pesquisa, cultura, comunicação, Bíblia, o lugar do Espírito e as mudanças nas populações globais. Temas que estão, juntamente com outras disciplinas, no cerne da práxis da missiologia.

Um olhar para o futuro e para o passado

Frontiers In
Mission: Discovering And
Surmounting Barriers To The Missio
Dei
by Ralph D. Winter

Em 2005, Winter escreveu um artigo intitulado “Doze fronteiras da perspectiva”.[7] Quase trinta anos após o artigo de Lausanne, seu pensamento havia mudado, amadurecido e aprofundado. Nesse artigo, ele olhou para o passado e descreveu seu pensamento, mas também manteve o olhar no futuro. Das 12 fronteiras discutidas por Winter, me concentrarei em seus comentários sobre “povos” e contextualização.

Winter reafirmou sua descoberta do propósito de Deus registrado em Gênesis 12 de abençoar todos os povos da terra, uma descoberta não apenas desse texto, mas também do propósito de Deus para todos os povos como o tema unificador da Bíblia. A identificação do tema dos povos em toda a Bíblia, bem como a comparação com os dados sobre “grupos de povos”, foi, em parte, o que deu origem ao enfoque da FV e outras organizações em “povos”: alcançados, não alcançados, engajados, não engajados, listas, descrições, movimentos de oração etc.

No mundo da FV, nossos principais programas e projetos, como Perspectivas, Joshua Project, Global Prayer Digest, grande parte do que publicamos no Mission Frontiers e no IJFM [International Journal of Frontier Missions] e vários títulos na William Carey Publishing foram todos moldados pelo pensamento relativo aos grupos de povos, fluindo direta e indiretamente das implicações missiológicas da promessa firmada com Abraão.

Em 2005, Winter, surpreendentemente, disse: “No entanto, é claro, reconhecer que todos esses povos podem ser alcançados com razoável facilidade hoje pode ter reduzido essa fronteira a uma espécie de necessidade de mais incentivo”. Ele também disse que “compreendemos plenamente a missão intermediária para os povos não alcançados. Trata-se de uma missão exequível”.[8]

A essa altura, o pensamento de Winter havia se deslocado para outras fronteiras. Ele destacou como extremamente importantes duas outras fronteiras daquele artigo de 2005. A primeira ele chamou de fronteira da descontextualização radical: “Nossa necessidade de uma grande mudança, renunciando ao nosso pretenso cristianismo para que a fé bíblica penetre no hinduísmo, é em si uma fronteira a ser ultrapassada. É a fronteira da descontextualização radical, e não podemos nos esquivar dela”.

tanto a fronteira dos povos não alcançados quanto a nova fronteira dos povos supostamente alcançados devem agora ser abordadas novamente sob uma perspectiva verdadeiramente bíblica da fé cristã.

Winter entendia que a descontextualização do cristianismo como se apresenta hoje também é uma fronteira missionária. Isso implica uma reavaliação, pelo menos até certo ponto, da priorização do foco da missão nos povos “alcançados e não alcançados”. Em sua opinião, enquanto a mobilização se concentrava apropriadamente na atenção dedicada aos não alcançados, a missiologia de fronteira precisava adotar uma abordagem diferente. Ele escreveu: “Podemos chamar de fronteira se estivermos tentando dissociar a fé bíblica de nossa própria tradição cristã? Eu certamente acho que sim”, e “podemos dizer com segurança que tanto a fronteira dos povos não alcançados quanto a nova fronteira dos povos supostamente alcançados devem agora ser abordadas novamente sob uma perspectiva verdadeiramente bíblica da fé cristã que faça sentido para eles. Observe a forma plural “eles” – isto é, tanto o não alcançado quanto o alcançado requerem a mesma coisa. Ambos são fronteiras.

Ao olhar para o passado, Winter delineou uma missiologia de fronteira que também abrangia o mundo dos alcançados. Mas ele também olhou para o futuro. Concluiu seu artigo de 2005 com estas palavras: “De certa forma, não importa se empregamos ou não a palavra ‘fronteira’. Essas são perspectivas que iluminam nosso caminho para o futuro. Afinal, o futuro é em si mesmo uma fronteira” (itálico acrescentado).

Nos círculos da Frontier Ventures, também tenho falado muitas vezes sobre o futuro, ou o que chamo de “mundo vindouro pós-tudo” – pós-cristão, pós-pós-moderno, pós-religioso (da forma como o conhecemos), pós-secular (da forma como o conhecemos), e muitos outros “pós”.

Perguntas para o futuro

Abordei acima alguns aspectos da missiologia de Winter e suas próprias reavaliações. Especificamente, por trás de seu pensamento estava a descoberta do tema da bênção como promessa para todos os povos. Embora a bênção seja claramente um importante tema unificador presente em todos os livros da Bíblia, trata-se de um tema que está inserido em uma estrutura. Essa estrutura começa com a criação e com a humanidade à imagem de Deus e, em sua forma canônica, termina com uma nova criação. Entre esses quadros, a boa nova inclui o resgate da imagem na humanidade, alicerçada no segundo Adão, aquele que é a imagem de Deus, Jesus (veja, por exemplo, 2 Co 4.4, onde é clara a associação entre imagem e a boa nova).

Meu primeiro grupo de perguntas para o futuro, portanto, é: Como esse tema bíblico da imago dei pode moldar a missiologia de fronteira? Como ele pode moldar nosso pensamento sobre “povos” e culturas? Como ele pode moldar nossos pressupostos sobre outras religiões? Há muito trabalho a ser feito aqui, e será necessário levar em conta o quadro completo da humanidade, inclusive o nível de degradação humana. Entretanto, o tema de ser criado à imagem de Deus tem muito a nos ensinar em nossas abordagens.

Como os “povos” de nossas listas enxergam nossas listas? Eles veem a si próprios ali?

Um segundo grupo de questões, relacionado ao primeiro, está mais especificamente ligado ao próprio conceito de “grupo de povos”. Esse tema tem sido debatido há décadas, e aqui, todas as reiterações ou discordâncias dos conceitos importam. Pelo menos dois desdobramentos são necessários para moldar o próximo grupo de perguntas a serem feitas pela missiologia sobre o conceito de grupo de povos. Esses desdobramentos levam a:

Uma consciência cada vez maior de que nosso entendimento não essencialista e êmico (de valores internos) de “povos” se baseia em nossas próprias premissas. A maioria de nossas listas de povos tende a ser definições éticas (exteriores) e a fundamentar-se em pressupostos essencialistas (isto é, há uma definição clara, perceptível e essencial desse ou daquele “povo”).

Uma consciência cada vez maior de que nosso entendimento não essencialista e êmico (de valores internos) de “povos” se baseia em nossas próprias premissas. A maioria de nossas listas de povos tende a ser definições éticas (exteriores) e a fundamentar-se em pressupostos essencialistas (isto é, há uma definição clara, perceptível e essencial desse ou daquele “povo”).

Uma crescente globalização, juntamente com uma “democratização” de informações sobre religiões e espiritualidade, que tem resultado num impulso crescente para uma ampla variedade de “múltiplos pertences”, não apenas na esfera das religiões, mas de muitas outras autodescrições de identidade.

Meu segundo grupo de perguntas gira em torno do tema da identidade, de forma geral: Como as pessoas se veem? É possível saber quantos “povos” existem apenas por um olhar externo? Como os “povos” de nossas listas enxergam nossas listas? Eles veem a si próprios ali?

Artigo

Que brilhem os crentes locais

Um paradigma missionário alternativo

Finalmente, ao concluir esta reavaliação dos conceitos de grupos de povos à medida que avançamos para uma próxima era missionária, trago uma pergunta estando bastante consciente da posição que ocupo. Assumi a liderança da FV, uma organização conhecida por promover o conceito de povos não alcançados. E descrevi aqui as reformulações do tema, propostas por nosso próprio fundador em 2005.

Ao refletir sobre os tópicos de contextualização e descontextualização, ele concluiu que a necessidade de alcançados e “não alcançados” é a mesma: uma fé verdadeiramente bíblica. Winter costumava ver as fronteiras como limites e barreiras. Às vezes, as barreiras estão em nós mesmos e, portanto, exigem nossa própria descontextualização. Ao dizer isso, ele abriu uma porta para esta questão: “Se a forma de cristianismo que estamos exportando para o mundo hindu, por exemplo, não for verdadeiramente bíblica, podemos afirmar que os [países] ‘alcançados’ que enviam [missionários] foram de fato alcançados?”

Winter não apenas abriu a porta para essa pergunta, mas também entrou por essa porta. E devemos fazer o mesmo. À época, foi uma pergunta perturbadora, especialmente no contexto do nosso próprio movimento. É ainda uma pergunta perturbadora hoje.

As fronteiras da missão são barreiras e limites que, citando Winter novamente, “talvez não sejamos capazes de enxergar claramente, e que podem até ser contestados ou negados. O estudo dessas fronteiras envolve a descoberta e a avaliação do desconhecido ou mesmo a reavaliação do conhecido”.

Que tenhamos olhos para ver e disposição para nos desprender do que acreditamos saber, para que possamos descobrir o que Deus quer nos mostrar na próxima era da missão “pós-tudo-como-conhecemos”.

Notas finais

  1. Notas finaisRalph Winter, “The Highest Priority: Cross-Cultural Evangelism”, https://lausanne.org/wp-content/uploads/2007/06/0213.pdf; https://lausanne.org/content/the-highest-priority-cross-cultural-evangelism.
  2. Ele menciona brevemente, por exemplo, a necessidade de uma versão da Bíblia em urdu para leitores muçulmanos, e conta, em tom de aprovação, que ouvira falar de um movimento entre os muçulmanos em que os crentes oravam cinco vezes ao dia (embora usassem orações completamente diferentes).
  3. Philip Hogan, “Response to Dr Ralph Winter’s Paper”, https://lausanne.org/wp-content/uploads/2007/06/0242.pdf.
  4. Jacob Loewen, “Response to Dr Ralph Winter’s Paper”, https://lausanne.org/wp-content/uploads/2007/06/0246.pdf.
  5. David Cho, “Response to Ralph Winter and Jacob Loewen”, https://lausanne.org/wp-content/uploads/2007/06/0253.pdf.
  6. Pablo Perez, “Response to Ralph Winter’s Paper”, https://lausanne.org/wp-content/uploads/2007/06/0255.pdf.
  7. Publicado primeiramente em Ralph D. Winter, Frontiers in Mission: Discovering and Surmounting Barriers to the Missio Dei. Terceira edição (Pasadena, CA: William Carey International University Press, 2005), 28-40.
  8. Como ele pôde dizer isso em 2005? Pois, até então, o fruto da revolução missiológica desencadeada por essa nova descoberta de Gênesis 12 já havia mudado significativamente o mundo missionário: havia um número crescente de agências começando a se concentrar exclusivamente nos não alcançados, redes de agências colaborando para envolver todos os povos na lista, e em várias listas. Mesmo as agências que não adotaram o lema “alcançar os não alcançados” como seu foco principal, tiveram que se adaptar a essa mentalidade.