Global Analysis

O burnout em mulheres zambianas que atuam no ministério e no trabalho humanitário

A influência da cultura na experiência de burnout e as implicações para o cuidado aos membros

Anisa Moosa mar 2024

Introdução

Em 2021, concluí meu Mestrado em Cuidado aos Membros com a dissertação sobre o tema “O burnout das mulheres zambianas no ministério e no trabalho humanitário”.[1] Na época em que o redigia, eu já trabalhava há 27 anos como missionária na África Meridional, especialmente no Zimbabwe, em Moçambique, em Angola e na Zâmbia. Como facilitadora do cuidado aos membros naquela região, havia visto vários casos de mulheres no campo missionário que sofriam com o esgotamento, ou burnout. Para algumas delas, isso significava o fim do serviço missionário; para outras, uma ausência prolongada do campo. Como tais experiências não fossem comuns entre os homens da nossa organização, perguntei-me por que o burnout parecia ser mais prevalente entre as mulheres. Comecei a refletir se a questão poderia estar associada à nossa cultura africana. Nasceu assim o desejo de explorar o burnout das mulheres em ambientes ministeriais para descobrir de que forma a cultura havia influenciado sua condição.

Ao iniciar a minha investigação, também descobri que embora o burnout seja um fenômeno universal, com extensa literatura sobre o assunto, havia uma lacuna na literatura sobre o burnout especificamente na cultura africana e nos contextos religiosos e missionários. Há escassez de estudos sobre o burnout[2] realizados por africanos e, segundo Bährer-Kohler,[3] a maioria dos estudos disponíveis só foram desenvolvidos na última década. Uma busca na Internet com as palavras “África; burnout” produziu 6.640 resultados de estudos africanos sobre o burnout, a maioria deles conduzidos em contextos sul-africanos e centrados principalmente em profissionais da saúde. Os estudos sul-africanos, com a sua forte influência ocidental, têm pouca relevância para outros contextos da África Subsaariana.[4] O foco de alguns estudos realizados em outros países africanos está principalmente em profissionais da educação e da saúde. Revela-se, portanto, uma clara disparidade bibliográfica entre a África e os outros continentes no que se refere ao tema do esgotamento.

O estudo

Foi adotada para este estudo a definição de burnout segundo Schaufeli e Greenglass, que o caracteriza como “um estado de exaustão física, emocional e mental que resulta do envolvimento de longo prazo em situações de trabalho ou outras que são emocionalmente exigentes[5].

Para avaliar de que forma a cultura zambiana influencia a experiência de esgotamento, as questões de pesquisa do estudo foram formuladas de duas formas – uma questão principal e outras subquestões. A questão principal era: “Como a cultura zambiana influencia a experiência de esgotamento das mulheres zambianas que atuam no ministério e no trabalho humanitário?’ As subquestões eram: “Como os zambianos veem o esgotamento? Que aspecto do esgotamento pode ser diferente nesta cultura? Como a cultura influencia a recuperação?”

O estudo[6] gerou dados por meio de um questionário e de entrevistas semiestruturadas. As entrevistas semiestruturadas e contextualmente específicas de seis mulheres que atuam no ministério e no trabalho humanitário foram complementadas pelas tendências gerais sobre esgotamento presentes no questionário. Dos 80 questionários enviados, 56 foram respondidos – 25% por homens e 75% por mulheres. Como havia questões culturais envolvidas, a voz masculina foi importante, pois contribuiu para validar os resultados.

Como a cultura zambiana influencia o burnout

Desafios da hierarquia

Os participantes descreveram como as pessoas em posições de poder e de status inibiam a livre expressão de opinião, especialmente se essa opinião fosse diferente daquela defendida por quem tinha posição de poder. Esse fator havia contribuído para sua experiência de burnout.

A família estendida e o apoio comunitário

Nas culturas coletivistas, a comunidade e a família estendida zelam uma pela outra. Às vezes, contudo, como resultado da mudança de paradigmas culturais, da concorrência, da desconfiança e do medo, esse sistema natural de apoio desmorona. Os entrevistados apontaram que o apoio da comunidade e da família estendida influenciava sua experiência de esgotamento de forma positiva, negativa ou as duas coisas. Em alguns casos, as expectativas da família estendida pressionavam o indivíduo. Os resultados tanto das entrevistas quanto da pesquisa revelaram que não podemos considerar como certo o apoio da comunidade e da família estendida pelo fato de a cultura em questão ser coletivista.

A dimensão espiritual do burnout

Embora não tenha sido especificamente questionado, os entrevistados destacaram o aspecto espiritual de suas vidas como uma influência significativa na experiência deburnout. Essa influência poderia ser desde facilitar a compreensão do problema até ajudar na recuperação. Os entrevistados sentiam que não havia no local de trabalho acesso fácil à ajuda e ao apoio, embora algumas dessas organizações fossem cristãs. É  significativo, portanto, que os entrevistados possam recorrer a apoio espiritual a nível pessoal, fora da organização.

Mantendo as aparências

O comportamento de tentar manter certas aparências também surgiu naturalmente nas entrevistas, sem que fosse questionado especificamente.      Os entrevistados afirmaram que precisavam continuar realizando as atividades diárias quando, na verdade, sua energia, motivação e alegria haviam se esgotado.  Essas conclusões refletem o aspecto “honra-vergonha” da cultura zambiana.[7] As pessoas procuram manter a aparência de concordância e aceitação das expectativas culturais. Destaca-se assim a necessidade da criação ou disponibilização de um lugar seguro onde as pessoas tenham liberdade para ser autênticas.

Temas abrangentes

Três temas abrangentes emergiram dos dados:

A natureza do burnout

Os entrevistados afirmaram que precisavam continuar realizando as atividades diárias quando, na verdade, sua energia, motivação e alegria haviam se esgotado.

Embora exista na Zâmbia uma significativa conscientização a respeito do esgotamento, essa condição talvez não seja descrita ou expressa da mesma forma que na maioria dos contextos ocidentais.[8] Com referência às dimensões do burnout segundo Maslach – exaustão emocional, despersonalização e falta de realização pessoal[9]  – o estudo mostrou que o fenômeno do burnout era caracterizado principalmente pela exaustão emocional e falta de realização pessoal em contraste com a despersonalização ou o cinismo, descritos como atitudes negativas ou inadequadas em relação a clientes, irritabilidade, perda de idealismo e retraimento.[10] Isso pode ser atribuído aos aspectos culturais zambianos da orientação de grupo e às tendências de honra-vergonha, que levavam os entrevistados a se sentirem obrigados a “ser simpáticos” e a “preservar as aparências” para que o respeito fosse mantido.

A influência positiva e negativa da cultura

Embora se tenha afirmado em algumas entrevistas e na pesquisa que o apoio da família e da comunidade influencia positivamente o esgotamento, esse mesmo fator também influencia negativamente, sendo o efeito negativo classificado como superior ao positivo. Os dados combinados mostraram que a pressão, as expectativas e a falta de compreensão da família estendida e da comunidade causavam o estresse que contribuía para o esgotamento. Essa descoberta é significativa, especialmente quando investigamos ocorrências de burnout nesse contexto.

As expectativas familiares, culturais e sociais no contexto da “distância do poder” – isto é, o relacionamento interpessoal numa base hierárquica – também podem produzir consequências negativas. Por exemplo, a ideia do “lugar da mulher” (a distribuição de papéis e responsabilidades no lar) emergiu do estudo. Harmonizando-se com a cultura da honra-vergonha,[11] trabalhar na cozinha, realizar as tarefas domésticas e cuidar dos filhos estão entre os papéis que se esperam das mulheres. Isso, no entanto, resulta em uma carga desproporcional, uma vez que ainda se espera que as mulheres trabalhem ou desempenhem o ministério fora de casa. Embora não seja exclusiva da África ou da Zâmbia, essa questão precisa de ser abordada neste contexto se quisermos atenuar a prevalência do esgotamento entre as mulheres zambianas.

O caminho para a recuperação

A espiritualidade surgiu como o principal fator para a recuperação. Destaca-se assim a importância do “cuidado principal” [Master care], embora o burnout afete a pessoa como um todo – física, espiritual, emocional e mentalmente.[12] Apesar de estarem em esgotamento, os entrevistados eram capazes de ter uma conexão significativa com Deus. Essa conexão espiritual com Deus era fundamental para compreender a sua condição de esgotamento, iniciar o processo de cura e, finalmente, encontrar o caminho para a recuperação.

O autocuidado por meio da definição de limites também emergiu dos dados das entrevistas como um forte fator de recuperação. Para os entrevistados, perceber sua própria responsabilidade na criação de limites pessoais, a despeito das expectativas familiares e culturais, colocava-os no caminho da recuperação.

São necessárias ações de cuidado aos membros que levem em consideração os fatores culturais específicos que influenciam o esgotamento.

Implicações e recomendações

São necessárias ações gerais de cuidado aos membros que lidem com o burnout nos locais de trabalho na Zâmbia, bem como       ações de cuidado aos membros que levem em consideração os fatores culturais específicos que influenciam o esgotamento.   Um estudo semelhante que explore de que forma a cultura influencia os homens no ministério cristão seria útil para obter uma comparação entre os gêneros e ver como as categorias culturais mencionadas anteriormente influenciaram o esgotamento nos homens zambianos, aperfeiçoando assim o cuidado aos membros de toda a equipe.

Em primeiro lugar, uma resposta eficaz é ter o cuidado aos membros como parte da linha de gestão, pois coloca o profissional que atua nessa área numa posição mais elevada na hierarquia. Em segundo lugar, a incorporação de intervalos regulares na estrutura organizacional permitirá que os funcionários façam pausas ou tirem férias sem se sentirem culpados ou indulgentes, lidando assim com o aspecto coletivista da cultura. Em terceiro lugar, a oferta de oportunidades educativas, como workshops e seminários sobre o burnout no local de trabalho ou na organização, aumentará a conscientização sobre a influência da cultura e a prevalência do burnout na Zâmbia, e a susceptibilidade das mulheres zambianas ao burnout devido a influências culturais. Durante a redação deste artigo, foram desenvolvidas várias iniciativas de sensibilização e prevenção do esgotamento na Zâmbia, que merecem ser analisadas.

Conclusão

Este estudo é um passo significativo para que se comece a abordar algumas lacunas na investigação sobre o burnout, especialmente em relação à cultura. Os ministérios cristãos e as organizações humanitárias poderiam ser beneficiados se levassem em consideração as influências culturais sobre o esgotamento em sua equipe e em seus funcionários a fim de criar intervenções para o tratamento do burnout que sejam culturalmente apropriadas.

Notas finais

  1. Anisa Moosa, ‘Burnout in Zambian Women in Ministry and Humanitarian Work’ (MA Member Care diss., Redcliff College, 2021).
  2. Sabine Bährer-Kohler, ed. Burnout for Experts: Prevention in the Context of Living and Working (New York, NY: Springer 2013), 20-21.
  3. V.C. Thorsen et al., ‘High rates of burnout among maternal health staff at a referral hospital in Malawi: A cross-sectional study,’ BMC Nursing, 10, no. 9, (2011) 2-7, https://bmcnurs.biomedcentral.com/articles/10.1186/1472-6955-10-9.3. Sabine Bährer-Kohler, ed. Burnout for Experts, 20.
  4. Colin J. Bundy et al., ‘South Africa,’ Britannica, accessed 14 January 2020, https://www.britannica.com/place/South-Africa.
  5. Wilmar B. Schaufeli and Ester R. Greenglass, ‘Introduction to Special Issue on Burnout and Health,’ Psychology and Health 16 (2001), 501-510, DOI: 10.1080/08870440108405523.
  6. John Creswell, Research Design: Qualitative, Quantitative and Mixed Methods Approaches, 3rd Edition (Thousand Oaks: Sage, 2009), 213.
  7. Jason Georges and Mark D. Baker, Ministering in Honor-Shame Cultures: Biblical Foundations and Practical Essentials (Downers Grove: IVP Academic, 2016).
  8. Algumas expressões singulares usadas pelos entrevistados sobre a natureza do esgotamento: “Eu queria que a terra parasse, para poder saltar fora e recuperar o atraso depois”, “Você perde o sabor da vida. É como comer comida sem sal”, “Às vezes parece que estamos sendo enterrados vivos”, “Era como se eu tivesse malária sem ter”, “Sentia que aquele não era o meu corpo. Não era eu’”, e “É perder de vista a identidade e o propósito”.
  9. Christina Maslach and Michael Leiter, ‘Understanding the burnout experience: recent research and implications for psychiatry,’ World Psychiatry 15, no. 2, (June 2016): 103, https://onlinelibrary.wiley.com/doi/epdf/10.1002/wps.20311.
  10. Christina Maslach, Michael P. Leiter and Wilmar Schaufeli, ‘Measuring Burnout,’ accessed 20 December 2023, https://www.wilmarschaufeli.nl/publications/Schaufeli/298.pdf.
  11. Scott D. Taylor, ‘Culture and Customs of Zambia,’ (Westport, Connecticut: Greenwood Press 2006), 94-95.
  12. Brenda Bosch, Thriving in Difficult Places: Member Care for Yourself and Others, Volume 1, Chp.2 (Pretoria, South Africa: Group7), 2014.

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Author's Bio

Anisa Moosa

Anisa Moosa, nascida na Zâmbia, é missionária há 30 anos, servindo com a JOCUM principalmente na África Meridional de língua portuguesa. Ela e seu marido Renildo Soares, brasileiro, hoje estão baseados em Fortaleza, Brasil, onde desenvolvem um centro de cuidado aos membros. Sua paixão é ensinar, capacitar, treinar, orientar e nutrir pessoas através de conhecimento, ferramentas, habilidades e confiança que possam contribuir para levá-las a novos níveis de liberdade, crescimento e eficácia.