O irmão Ashok [1] lidera um centro de discipulado no sul da Ásia. Ele compartilhou seus planos de expansão com um parceiro de recursos em potencial que o ajudou a desenvolver um projeto com metas, estratégias, orçamentos e prazos claros.
“Por um lado, eu realmente gostei – me ajudou a refletir sobre todo o processo”, diz Ashok. “Por outro lado, me fez questionar: Todo esse planejamento está substituindo minha fé em Deus? O trabalho administrativo está dificultando os relacionamentos? Essa é uma abordagem própria da minha cultura ou é uma influência ocidental?”
Ao longo das últimas décadas, o movimento missionário vive uma tendência à “projetização” – o uso de processos sistemáticos para solucionar problemas, aprimorar a eficiência e sustentar o crescimento, com resultados e objetivos mensuráveis. Em outras palavras, uma sobreposição das melhores práticas de negócios com o mundo das missões. Tenho uma necessidade pessoal de refletir sobre isso com base em uma perspectiva bíblica e ver como as oportunidades podem ser aproveitadas e as armadilhas atenuadas.
Valores sob tensão
Quando iniciou seu ministério mundial, Jesus tinha uma forma de operar bem diferente das melhores práticas de gestão de projetos dos nossos dias. Em vez de recrutar pessoas bem-conceituadas, sua equipe era composta de párias. Em vez de usar as prudentes habilidades de gestão de tempo, ele espremeu todo o seu ministério nos últimos três anos de sua vida. Em vez de comunicar objetivos e planos claros, ele se referia de forma vaga ao “Reino de Deus”. Em vez de elaborar um orçamento sólido, ele contava com a imprevisível generosidade de outros. Em outro texto bíblico, as pessoas são exortadas a confiar em Deus, e não em “carros e cavalos” (Sl 20.7). David Bosch atribui ao Iluminismo as características como razão, causalidade, progresso e a crença de que todos os problemas devem ser solucionáveis. É possível argumentar que o pensamento por trás dessa estrutura de projetos seja mais fruto do Iluminismo do que da Bíblia.[2]
No entanto, como aponta o missiólogo Andrew Walls, não seria bíblico simplesmente descartar a atual cultura filantrópica.[3] Segundo Walls, o princípio da peregrinação afirma que, como cristãos, nossos valores e o mundo ao nosso redor estão frequentemente sob tensão. Isso nos torna diferentes, mas não deve nos levar a desistir. Já o princípio da missão local (adaptação cultural) de Walls reconhece que Deus nos colocou em culturas das quais devemos participar ativamente. Walls nos encoraja a abraçar os dois princípios e mantê-los sob tensão.
Neemias, aparentemente, foi capaz de manter esses princípios sob tensão. Antes de partir para Jerusalém (Ne 2.7-9), ele apresentou ao rei persa uma “proposta de projeto”, trabalhou de forma sistemática e foi guiado por objetivos. Ainda assim, em todo o tempo, enquanto ele executava seus planos e lidava com obstáculos, era evidente a sua confiança no Senhor. Outros heróis lideraram projetos igualmente focados e progressivos – Noé: “Projeto Resgate do Dilúvio”, Moisés: “Projeto Deixa Meu Povo Ir” e Paulo: “Projeto Alcance de Gentios” – enquanto simultaneamente viviam o princípio de Provérbios 3.5: “Confie no Senhor de todo o seu coração e não se apoie em seu próprio entendimento”.
Samuel teve dificuldade para administrar essa tensão quando Israel exigiu um rei. Ele queria que o povo confiasse no Senhor e não no modelo de gestão da monarquia, em voga na época. O Senhor, contudo, permitiu que Israel tivesse um rei como as outras nações (Dt 17.14-20), e as tensões de valor foram gerenciadas estabelecendo limites e mantendo os reis na linha por meio de profetas.
Pontos fracos e fortes
Qualquer pessoa que trabalhe com foco em projetos pode reconhecer as desvantagens desse processo: papelada excessiva, flexibilidade reduzida e reuniões intermináveis. Mas além disso, em um nível mais profundo, surgem outras questões: Uma abordagem de projeto criaria uma mentalidade na qual os números são mais importantes do que as pessoas e a qualidade?[4] Essa exigência de uma estrutura de projetos seria uma nova forma de colonialismo?[5] É uma imposição do pensamento iluminista segundo o qual, se fizermos tudo direito, os resultados virão? Em outras palavras, os projetos missionários estão fazendo o que muitos reis do Antigo Testamento fizeram: consumindo muitos recursos e nos levando a confiar em “nosso próprio entendimento” (Pv 3.5) em vez de confiar em Deus?
Existem, no entanto, alguns pontos positivos significativos. Vemos com muita frequência esforços de alfabetização que produzem apenas um punhado de leitores, traduções da Bíblia que se arrastam por décadas e igrejas plantadas que permanecem para sempre dependentes de seus plantadores. Há muitos exemplos positivos em que o planejamento, a criação de estratégias e a prestação de contas amplificaram muito o impacto do trabalho missionário.[6] Além disso, quando o ministério é conduzido em uma estrutura de projetos, mais mantenedores se dispõem a doar quantias maiores. Assim como os bons reis foram uma bênção para Israel, os projetos bem elaborados e bem administrados, com objetivos focados no reino, podem ser uma bênção para o ministério.
Fatores e forças
Nas últimas décadas, as forças avançaram em direção a uma maior projetização do setor da filantropia. O crescimento global das redes terroristas e de lavagem de dinheiro deixam os governos ocidentais preocupados com a saída de dinheiro do país, enquanto os governos do lado receptor estão cada vez mais cautelosos com a interferência de organizações da sociedade civil em seus assuntos internos. As transferências bancárias internacionais são, portanto, fortemente escrutinadas e devem ser rastreadas por meio de planos e orçamentos de projetos. Além disso, devido à globalização e ao aumento da desconfiança nas instituições, os parceiros e mantenedores querem saber como seu dinheiro está sendo usado.
No mundo das missões evangélicas ocidentais, há uma crença geral de que “a tarefa” da Grande Comissão pode ser cumprida, e em breve. Isso começou na Conferência de Edimburgo de 1910 com a visão otimista de “salvar os pagãos”, e foi seguido pelo chamado de Lausanne 1974 para os “grupos de povos não alcançados” e pelo “objetivo de erradicar a pobreza bíblica” da Cidade do Cabo em 2010 (CTC II-D-1). O ativismo evangélico ocidental está criando uma demanda por dados tangíveis, resultados e prestação de contas.
Espera-se que todas as organizações do século 21 – missionárias ou não – cuidem de sua equipe, administrem bem seu dinheiro e tenham uma diretoria profissional. A consequência disso é uma maior profissionalização das organizações missionárias, sendo a projetização um componente essencial.
O diagrama abaixo mostra como essas tendências impulsionaram a elaboração de projetos em instituições filantrópicas em geral e, especificamente, em missões.
Análise de campo de força da projetização: As forças atuais em direção à projetização são mais fortes do que as forças contrárias.
Ao mesmo tempo, há forças específicas trabalhando contra a projetização. Sabe-se que os projetos costumam focar resultados mensuráveis, perdendo de vista o impacto mais profundo. Samuel Escobar, já em 1991, escreveu que “a missiologia gerencial não avalia os aspectos do trabalho missionário que não podem ser medidos ou reduzidos a números. Da mesma forma, dá proeminência ao que pode ser reduzido a um gráfico estatístico”. [7]O tema da conferência da Rede Miqueias em 2021 foi Kushamiri (“florescer” em suaíli) – um objetivo muito mais profundo e que não pode ser descrito por metas mensuráveis e atividades de projeto com prazo determinado.
Além disso, uma postura neocolonialista – a tendência das organizações ocidentais de controlar e determinar o que é “bom” para outras nações – é cada vez menos tolerada em muitas nações. Há recorrentes pedidos para que essa tendência seja revertida e, em lugar dela, que todos trabalhem juntos, como iguais.[8] A projetização é muitas vezes considerada uma ferramenta do Ocidente para controlar todo o restante e pode estar sujeita ao questionamento. Além disso, no trabalho de desenvolvimento, reconhece-se que a taxa de sucesso dos projetos é, na verdade, bastante baixa.[9] Por fim, a realidade de nosso mundo altamente instável, diante de um aumento de desastres naturais, distúrbios civis, perseguições, pandemias etc., torna quase impossível fazer planos e cumpri-los. O contexto muda o tempo todo e trabalhar em modo de projeto não é a melhor forma de lidar com essa constante fluidez.
Apesar dos argumentos e das vozes que se levantam contra certos aspectos da projetização, ainda não foi identificada uma alternativa que seja amplamente aceita, por isso persiste a tendência para a elaboração de projetos.
Mitigação de impactos negativos
Dada a inevitável influência generalizada da projetização, procurei algumas medidas práticas para atenuar potenciais impactos negativos. Aqui estão alguns exemplos:
Desenvolvimento participativo:[10] Uma organização missionária local descobre junto às comunidades locais quais são as necessidades e quais recursos estão disponíveis. Assim, o projeto fica mais centrado na comunidade e menos direcionado pelas prioridades dos que estão de fora.
Representantes nacionais: Um parceiro internacional de recursos emprega pessoas do país para representá-lo. Isso torna a parceria do projeto menos neocolonialista e mais sensível do ponto de vista cultural.
Relatório oral: Para o relatório, um líder de missões conversa com os gerentes de projeto. Ele então preenche os formulários, que são revisados e aprovados por eles. Isso torna o processo de comunicação mais apropriado culturalmente e reduz a burocracia.
“Oportunidades divinas”: Um consultor de planejamento cria espaço para oportunidades inesperadas para o modelo de gestão baseada em resultados. Isso reduz o risco de rigidez.
Fundos discricionários: Uma agência de recursos trabalha com uma margem de 10% para possibilitar o aproveitamento de oportunidades inesperadas com o mínimo de papelada. Isso proporciona flexibilidade e reduz o trabalho administrativo.
Questões proféticas
Assim como Israel esqueceu rapidamente todas as advertências dadas por Samuel ao nomear seu primeiro rei, muitas vezes nos esquecemos das armadilhas de trabalhar no modo de projeto. Precisamos de uma voz profética que nos mantenha alertas. Aqui estão algumas “questões proféticas” para que a equipe do projeto e as partes interessadas discutam e orem a respeito:
Conteúdo:
‘‘Senhor, o projeto (ainda) está de acordo com os teus desejos? Estamos investindo nosso tempo e esforço naquilo que o Senhor considera importante?’
Implementação:
“Senhor, somos bons representantes teus na forma como nos envolvemos com as comunidades, interagimos com nossa equipe, lidamos com dinheiro, conversamos com parceiros?”
Relacionamentos:
“Senhor, estamos te convidando para todos os nossos relacionamentos? Somos amorosos, transparentes e abertos com todas as partes interessadas?”
Dependência de projetos:
“Senhor, conseguimos realizar mudanças quando nos sentimos movidos por ti, ou nos tornamos muito dependentes de que outros decidam por nós?”
Medidas do projeto:
“Senhor, o que tu consideras mais importante? Em quais prioridades devemos nos concentrar enquanto acompanhamos e relatamos o progresso?”
Caso haja dificuldade em responder alguma dessas perguntas, busque acompanhamento contínuo das partes interessadas apropriadas. Isso exigirá oração e, às vezes, as palavras de um “profeta Natã”!
Reflexão
Quando nomeou um rei, Israel optou por um modelo de gestão arriscado, porém muitas vezes eficaz, para sobreviver na terra prometida. Sob bons reis, Israel prosperou. Para o irmão Ashok, da mesma forma, adotar uma abordagem de projeto na construção de seu ministério realmente o ajudou a expandi-lo e gerenciá-lo. No entanto, mesmo os melhores reis de Israel precisaram ser lembrados pelos profetas de que dependiam do Senhor. Da mesma forma, nós e Ashok precisamos, regularmente, parar e ouvir uma “voz profética” e assim garantir que nossos projetos não se sobreponham ao nosso ministério.
Notas finais
- Baseado em uma situação real, mas com nome fictício e detalhes de outras situações.
- David Bosch, Transforming Mission: Paradigm Shifts in Theology of Mission (Maryknoll, N.Y: Orbis Books, 1991), 268 ff.
- Andrew Walls, The Missionary Movement in Christian History: Studies in the Transmission of Faith, primeira edição (Maryknoll, NY: Orbis Books & Edinburgh: T&T Clark), 1996.
- Scott Bessenecker fala de forma crítica sobre a “empresarialização da fé” em missões, em seu livro, Overturning Tables: Freeing Missions from the Christian-Industrial Complex (IVP Books: 2014), 98.
- O neocolonialismo pode ser definido como o controle dos países em desenvolvimento por parte dos países desenvolvidos por meios indiretos, https://www.britannica.com/topic/neocolonialism. Veja também: Robert Young, Post Colonialism: A Very Short Introduction (Oxford: Oxford University Press, 2003).
- Veja, por exemplo: Peter White e Benjamin O. Acheampong, “Planning and Management in the Missional Agenda of the 21st Century Church: A Study of Lighthouse Chapel International”, Verbum et Ecclesia 38, no. 1 (2017).
- Veja, por exemplo, Joerg Rieger, “Theology and Mission between Neocolonialism and Postcolonialism”, Critical Readings in the History of Christian Mission (Abril 2021): 531–554, https://doi.org/10.1163/9789004399594_009.
- See for example, Joerg Rieger, ‘Theology and Mission between Neocolonialism and Postcolonialism’, Critical Readings in the History of Christian Mission (April 2021): 531–554, https://doi.org/10.1163/9789004399594_009.
- Lawrence Boakye e Li Liu, “With the Projectisation of the World, the Time Is Right to Unravel Why International Development Project (IDP) Failure Is Prevalent”, Universal Journal of Management 4, no. 3:79.
- Um bom ponto de partida é a página da Wikipédia sobre desenvolvimento participatório.