Resumo executivo

Fé cristã e tecnologia

28 jun 2024

Editor's Note

Resumo executivo do artigo ocasional de Lausanne nº 76, de autoria de Jonas Kurlberg, Alexander Chow, Calida Chu, Heidi Campbell, Rei Lemuel Crizaldo, Sara Afshari, Stephen Garner e Vo Nam. Acesse o artigo completo aqui [em inglês].

Este artigo explora o ponto de interseção da tecnologia com a fé cristã e considera como a igreja pode usar a tecnologia e continuar sendo fiel à sua doutrina, de forma que beneficie a vida e a prática cristã. Ele analisa a importância da contextualização, transparência e controle da tecnologia aplicada ao evangelismo; busca definir a tecnologia e discutir seu papel como ferramenta que deve servir às pessoas e aproximá-las de Deus. Este artigo também avalia o impacto da tecnologia na comunhão cristã e suas reuniões; examina como as tecnologias de IA afetam o evangelismo; e destaca a necessidade de utilizar a tecnologia de uma forma cristã que beneficie a sociedade em geral e, principalmente, que leve o evangelho à sociedade.

A tecnologia permite que os humanos se comuniquem, construam, explorem, criem, prosperem e sobrevivam. Essencialmente, a tecnologia tem o potencial de contribuir para o avanço humano. Apesar de a Bíblia reconhecer a tecnologia, ainda que de forma resumida e associada a outros temas, ela dá mais destaque a alguns aspectos da tecnologia. Por exemplo, a tecnologia reflete aspectos de nossa experiência como seres humanos e desperta a curiosidade sobre o significado e o propósito da vida, além de levantar questões sobre o que significa ser humano.

Há uma série de razões pelas quais a igreja precisa considerar com seriedade essa reflexão teológica. Por um lado, como manifestação de nossos maiores medos e esperanças, a tecnologia desperta questionamentos existenciais sobre o significado e o propósito da vida. A tecnologia também levanta questões importantes sobre a natureza humana, a criatividade humana e sua relação com o Deus criador. Os artefatos tecnológicos são resultado das culturas humanas, mas sua aplicação é convencionada por indivíduos e comunidades, originando novas práticas culturais e estilos de vida e moldando as comunicações e relações humanas. Por meio da tecnologia, o tempo e o espaço se expandem; são criados novos ambientes nos quais os seres humanos vivem, se divertem, trabalham, têm comunhão, oram e adoram. Essa realidade nos leva a rever nossa compreensão de discipulado, participação na igreja e missões em culturas emergentes através das tecnologias que criamos e usamos. Afinal, o fato de as inovações tecnológicas serem resultado da cultura sugere que os artefatos tecnológicos estão enviesados e têm implicações sociopolíticas. Portanto, precisamos analisar cuidadosamente a tecnologia sob a perspectiva teológica e ética. 

O Compromisso da Cidade do Cabo (CTC) chama a igreja ao envolvimento criativo e crítico, como parte da defesa da verdade de Cristo. Este artigo vai além das declarações propostas no CTC e expande as definições de tecnologia para incluir suas nuances culturais. Os cristãos precisam considerar com seriedade o papel do discernimento bíblico e da profunda reflexão sobre a tecnologia a fim de enxergar a vida à luz da revelação divina. 

O objetivo principal deste artigo, portanto, é fornecer sugestões de como estruturar esse envolvimento. Buscamos precedentes bíblicos e históricos, bem como perspectivas contemporâneas que pudessem nos ajudar nessa tarefa. Deve ser ressaltado que, embora a tecnologia digital seja fortemente destacada no artigo, nosso objetivo não é limitar a discussão a nenhum artefato tecnológico em particular. Assim, embora seja importante abordar as implicações do uso e do impacto da tecnologia digital na igreja hoje, nossa reflexão sobre a “digitalidade” neste artigo serve principalmente como ilustração dos tipos de questões com as quais a igreja precisa se envolver.

Existem diferentes maneiras de abordar o conceito de tecnologia. Uma das abordagens mais comuns é considerar a tecnologia uma ferramenta, ou seja, um dispositivo ou recurso auxiliar para a conclusão de uma tarefa específica. A tecnologia também pode ser considerada um processo. Nesse caso, entende-se que a tecnologia oferece aos indivíduos uma série de ações ou etapas que facilitam a criação e a descoberta do conhecimento. Essas etapas incluem a criação por meio da invenção, a inovação por meio da adaptação e a difusão por meio do processo de disseminação da tecnologia para outras pessoas. A tecnologia ainda pode ser vista como facilitadora de uma cultura específica. Tornou-se comum usar termos como “cultura digital” ou “tecnocultura” para definir os espaços criados para interação humana com tecnologias. Assim como a cultura humana é uma manifestação de ações e conquistas humanas, também as culturas criadas tecnologicamente revelam as práticas de seus usuários, sejam elas relacionais, comunicacionais ou baseadas em necessidades. Também é importante entender que há uma longa tradição de associar a tecnologia à linguagem espiritual, às qualidades religiosas e às experiências transcendentes. Reconhecer essa conexão entre a tecnologia e os ideais e as práticas religiosas é importante porque nos ajuda a entender por que a tecnologia frequentemente é alvo de fortes críticas por parte de grupos religiosos, uma vez que é encarada como um concorrente da fé em Deus. Essa conexão da religião com a tecnologia também está fundamentada em ideias de que a tecnologia tem um lado enviesado. Nesse sentido, a tecnologia é apresentada como uma força poderosa que molda a cultura humana, porque presume-se que a tecnologia funciona como uma força independente, impulsionada por seu próprio sistema de valores que busca exercer controle sobre a humanidade. Ela tem o potencial de servir como mecanismo de controle ou como meio de libertação, dependendo de quem a usa.

A tecnologia, portanto, é multifacetada, podendo ser definida como: uma ferramenta ou recurso que potencializa as habilidades humanas naturais; um conjunto específico de conhecimentos e processos que produzem ferramentas com o potencial de remodelar o mundo ao nosso redor; e os valores culturais e os relacionamentos que impulsionam especificamente a criação e o uso de ferramentas e processos. A combinação desses aspectos faz com que a tecnologia se torne o próprio ambiente em que nossa vida espiritual é plantada para ali florescer ou murchar. O obstáculo mais significativo enfrentado pela fé cristã em uma era impulsionada pela tecnologia é o desafio da igreja diante de noções tradicionais da conexão entre conhecimento, fé e ação. Além disso, o aspecto relacional e a compreensão tecnológica fazem parte de nossa experiência humana. Portanto, nossa resposta à tecnologia e à mídia costuma aprofundar isso em relação à dinâmica das comunidades cristãs, a saber, a natureza da fé, as tradições e o culto, ou então em relação ao nível mais amplo, estruturado para evangelismo, missões, ética social e teologia pública. Normalmente os cristãos acreditam que a tecnologia em si não é boa nem ruim, mas é a intenção por trás de seu uso e as consequências desse uso que agregam valor moral ao agente tecnológico. Nesse cenário, a tecnologia pode ser considerada neutra em termos de valor, tendo seu uso impulsionado pela mente e pelo coração do ser humano. 

Para obter uma relação aprimorada entre humanos e tecnologia é preciso reconhecer que nossas tecnologias são enviesadas. Ou seja, elas existem e são usadas em função de determinados valores e cosmovisões da comunidade humana que criou essa tecnologia. Esses valores definem quais tecnologias são desenvolvidas, os conhecimentos e processos necessários para desenvolvê-las e a estrutura moral, não apenas para seu uso, mas também para o modo como elas moldam e são moldadas pelas comunidades em que estão inseridas. Como cristãos, vamos analisar e demonstrar como os valores incorporados em nossas comunidades cristãs acabam moldando o desenvolvimento e o uso de tecnologias, e como esses valores moldam nosso engajamento com a sociedade em geral nos níveis local e global. Isso é feito com base na nossa compreensão de Deus Pai como o Criador, nos ensinamentos, no ministério e no exemplo de Jesus, bem como na influência do Espírito Santo. 

Se mantemos o foco em Jesus Cristo, então a tecnologia que desenvolvemos se encaixa na perspectiva de que tudo foi criado por meio de Cristo e para Cristo, e que tudo nele subsiste (Cl 1.15-17). Essa compreensão nos leva a parar de focar o mundo tecnológico cotidiano para vislumbrar um horizonte escatológico em que nossa esperança está em Jesus Cristo, no seu retorno e numa visão do reino que já se manifesta no presente e que está por vir; e essa visão deve ditar como vivemos no presente.

À medida que implementamos essa visão no mundo usando a tecnologia, também devemos estar conscientes e abertos para o poder do Espírito Santo operando em nós, em nossas comunidades e em todo o mundo.

Ao longo da história, várias tecnologias foram usadas para melhorar a vida da igreja. A grande maioria tornou-se parte do mobiliário da igreja, passando despercebida na rotina, e já não é considerada “tecnologia”. No entanto, além do uso imediato de artefatos, dispositivos e ferramentas tecnológicas com seus respectivos recursos, a tecnologia é o ambiente no qual a igreja adora, disciplina e forma sua comunidade. Desde a avançada rede viária do Império Romano, passando pela imprensa, até os modernos meios de comunicação em massa e, mais recentemente, digital, a tecnologia esteve profundamente entrelaçada com a propagação do evangelho desde a época da igreja primitiva. Argumentamos que a discussão, no entanto, precisa ir além de uma mera implementação utilitária de ferramentas tecnológicas de evangelismo e missões para que possa também refletir análises profundas e criteriosas sobre cultura e ética. O Compromisso da Cidade do Cabo (CTC) do Movimento de Lausanne destacou a necessidade da criatividade e, ao mesmo tempo, da crítica no “engajamento com a mídia e a tecnologia como parte da defesa da verdade de Cristo” (CTC 3). E, além disso, como o Compromisso da Cidade do Cabo também afirma, os cristãos precisam se envolver profundamente no campo de mídia e tecnologia contemporânea para poder exercer uma influência cristã positiva.

Em geral, o trabalho de evangelismo deve sempre considerar a relação entre os evangelistas e as pessoas a serem alcançadas. Com relação às ações sociais e de evangelismo digital, devemos ser ainda mais sensíveis às pessoas que estão sendo engajadas. É necessário criar recursos digitais para a propagação da mensagem do evangelho para o público de massa. Entretanto, devemos lembrar que “Deus, o supremo evangelista, dá ao seu povo o privilégio de ser seus colaboradores” e que “ele normalmente escolhe testemunhar através de nós” (Manifesto de Manila 6). No evangelismo digital, é necessário haver um equilíbrio entre a transmissão clara, convincente e coerente da mensagem do evangelho e o cultivo de relacionamentos autênticos. O evangelismo digital deve, além disso, ser sensível às dinâmicas de poder possibilitadas pela tecnologia digital. Nenhuma cultura ou prática deve ser considerada normativa. A tecnologia, de fato, traz oportunidades para as igrejas propagarem a Palavra globalmente, mas as comunidades locais são tão importantes quanto as comunidades globais. 

A demanda de reflexão sobre abordagens contextuais da tecnologia em cenários locais precisa ser complementada com a reflexão contextual sobre as culturas da tecnologia. Neste artigo, procuramos destacar a necessidade de ir além de uma aplicação utilitária da tecnologia para missões e ministérios em direção a um paradigma cultural da tecnologia. Assim, a missão digital não se resume a atividades que transparecem nas plataformas digitais por meio de dispositivos digitais. Hoje, a “digitalidade” faz parte da matriz mais ampla de formação e transformação da cultura, e isso precisa ser considerado em nossas reflexões missiológicas.

Cabe observar como uma teleologia robusta da tecnologia destaca um desdobramento fundamental no Movimento de Lausanne: o reconhecimento da necessidade de uma abordagem holística, ou mais integral, da missão. A propagação das boas novas é entendida como uma dinâmica integradora de proclamação e manifestação (CTC 6). Ou seja, evangelismo e ação social, como atividades distintas, são deveres cristãos entrelaçados que se reforçam mutuamente em termos de fornecer um testemunho evangélico completo (Pacto de Lausanne 5). Essa perspectiva missional reconfigura a missão cristã extrapolando sua orientação eclesiocêntrica e foco clerical para um paradigma mais amplo que abrange o papel de todo o povo de Deus como discípulos fiéis de Cristo, na integralidade de suas vidas, cumprindo sua missão onde quer que estejam. 

A tecnologia deve ser usada para o evangelismo de forma coordenada com as boas novas. Devemos ter alguns princípios norteadores para missões e evangelismo. Nesse sentido, os mecanismos de controle e responsabilização são essenciais, tanto em relação ao conteúdo que está sendo compartilhado quanto às pessoas que estamos tentando alcançar, para preservar sua cultura e identidade e evitar potenciais explorações e danos. Desenvolvedores e usuários de tais plataformas tecnológicas devem ser sensíveis ao tipo de informação que é selecionada on-line. Eles precisam ser cautelosos para representar com precisão e fidelidade a essência e as boas novas do evangelho. 

Os seres humanos feitos à imagem e semelhança de Deus têm o potencial e a responsabilidade como agentes tecnológicos estabelecidos no mundo e desenvolvidos intelectual, relacional e espiritualmente. Os evangélicos estão há muito tempo na vanguarda da busca de maneiras pelas quais a tecnologia pode ser usada para promover o reino de Deus, desde o uso da tecnologia impressa para produzir Bíblias e folhetos em massa, até o uso de rádio, televisão e, agora, a internet para disseminar sermões, devocionais e mensagens evangelísticas. Ao fazê-lo, os evangélicos tendem a enfatizar uma abordagem instrumental da tecnologia, enxergando-a principalmente como uma ferramenta para alcançar os propósitos do reino.

A esperança cristã é, em última análise, encontrada em uma glória futura através da consumação do reino de Deus (Rm 8.18-30). Isso é muito maior do que os sofrimentos neste mundo presente que está, como disse o apóstolo Paulo, sob “escravidão que conduz à decadência”. Não apenas nós, mas toda a criação (incluindo, sem dúvida, a criação tecnológica) geme por essa realidade futura. Como nossa escatologia molda nossa visão da tecnologia hoje? A participação humana na obra redentora de Deus através da tecnologia pode intrinsicamente honrar a Deus. Nessa obra, os cristãos exalam a fragrância de Cristo neste mundo (2 Co 2.14-16) e devem buscar maneiras pelas quais a tecnologia possa trazer esperança.

Em resumo, a perspectiva cristã sobre a tecnologia reconhece seu potencial tanto para o bem quanto para o mal. Os cristãos são chamados a usar a tecnologia de forma que se alinhe com os ensinamentos de Jesus, promova o amor a Deus e aos outros e contribua para o bem-estar da sociedade. É importante abordar a tecnologia com sabedoria, discernimento e profunda compreensão de seu impacto nos indivíduos, nas comunidades e no mundo.