Global Analysis

O sentimento de vergonha na vida dos missionários

Mulheres que servem na Ásia Central

Faith Stephens mar 2024

O que é vergonha?

Vinte anos de experiência de trabalho no mundo muçulmano e de interação com missionários que servem nesse contexto me levaram a analisar como os missionários veem a vergonha. Este artigo explora o sentimento de vergonha, a forma como a vergonha é vivenciada pelos missionários, e oferece ferramentas para capacitar os missionários a lidar com essa questão de forma eficaz.

A vergonha é um sentimento universal que muitas vezes resulta de expectativas não satisfeitas, sejam essas expectativas próprias ou de um grupo.[1] A vergonha está presente em todas as culturas e grupos, mas as normas sociais e os valores culturais de formação, gênero, idade, religião e função de uma pessoa, bem como os tipos variados de personalidade, desencadearão diferentes tipos de vergonha.[2] A vergonha pode fazer com que alguém se sinta imperfeito, inútil e fracassado.[3]

A vergonha pode estar presente ao longo de toda a vida, começando em bebês, logo a partir dos 18 meses de idade. À medida que se experimenta a vergonha, desenvolvem-se padrões de disparo neural que são acionados em experiências semelhantes, perpetuando assim o ciclo desse sentimento.[4] A vergonha sinaliza ao cérebro que entre no modo “lutar, fugir ou congelar”, dificultando o pensamento racional.[5] O sentimento de vergonha pode produzir respostas físicas como dificuldade de encarar, enrubescimento, ombros caídos e suor.[6] Entre as reações comuns ao sentimento de vergonha estão esconder-se ou fugir dos outros, o que pode comprometer os relacionamentos e impactar a participação e o envolvimento de alguém em um grupo.[7]

As raízes da vergonha na teologia

Para obter um quadro abrangente da vergonha na vida dos missionários, era importante explorar as raízes desse sentimento na teologia. A vergonha foi a primeira emoção experimentada na Bíblia, conforme registrado em Gênesis 3.6-8. Tanto Adão como Eva sentiram vergonha depois de comerem o fruto que Deus lhes havia ordenado que não comessem. Como resultado, perceberam que estavam nus e sentiram-se envergonhados. Embora Adão e Eva tenham experimentado vergonha após o pecado, o que os envergonhou não foi o pecado em si, mas a vulnerabilidade da exposição de seus corpos. Sentiram vergonha porque perceberam que estavam expostos, sendo vistos por outra pessoa, e porque sua conexão com Deus e um com o outro estava ameaçada.

Na narrativa bíblica, não foi apenas o relacionamento entre Adão e Eva que foi corrompido pela vergonha, mas também o relacionamento deles com Deus.[8] Curiosamente, a reação de Deus à vergonha de Adão e Eva foi buscá-los em seu esconderijo: “Onde estão vocês?”[9] Em seguida, ele cobriu aquela vergonhosa exposição fazendo-lhes roupas de peles de animais. Ao mover-se em direção a Adão e Eva e seu sentimento de vergonha, Deus demonstra que continua a interagir com o ser humano que experimenta esse sentimento. Jesus superou a vergonha na cruz. Allender e Longman explicam:       “Jesus suportou voluntariamente a vergonha da cruz, no entanto, ele a desprezou ou, em outras palavras, envergonhou a vergonha”.[10] O movimento de Deus em direção ao ser humano quando este experimenta a vergonha é um convite para que as pessoas exponham esse seu sentimento a Deus.

“Jesus suportou voluntariamente a vergonha da cruz, no entanto, ele a desprezou ou, em outras palavras, envergonhou a vergonha”. O movimento de Deus em direção ao ser humano quando este experimenta a vergonha é um convite para que as pessoas exponham esse seu sentimento a Deus.

Os aspectos adaptativos e negativos da vergonha

Há aspectos adaptativos e negativos no impacto da vergonha na vida de uma pessoa.  O argumento mais forte para os aspectos adaptativos da vergonha é que ela ajuda a preservar os valores morais, as regras sociais, contribui para modificar comportamentos e leva as pessoas ao arrependimento do pecado e a uma aproximação de Deus.[11]

A lista dos aspectos negativos da vergonha é muito longa e inclui ruptura de relações sociais, medo de relacionamentos, reações de raiva, baixa autoestima, diminuição da empatia, suicídio, automutilação, humor depressivo, transtorno de personalidade borderline, fobia social, abuso de substâncias, comportamentos de dependência e transtornos alimentares. Outro aspecto negativo da vergonha é que ela pode levar a pessoa a pensar que Deus está distante e não a aprova ou não a ama assim como fazem outras pessoas.

O sentimento de vergonha entre os missionários

Considerando que os missionários lidam com expectativas de uma diversidade de culturas e grupos, além das expectativas que têm para si próprios, são muitos os gatilhos que podem despertar o sentimento de vergonha.[12]  Alguns exemplos de gatilho incluem:

  • aprendizado de línguas;
  • captação de recursos;
  • expectativas ministeriais da equipe ou da organização de envio;
  • experiências traumáticas;
  • ser molestado ou assediado;
  • reações a situações de risco;
  • o papel das mulheres no ministério e no lar;
  • estar solteiro;
  • falta de filhos;
  • quantidade de bens materiais (ter mais do que a cultura anfitriã ou menos do que a cultura de origem);
  • esgotamento;
  • duvidar ou questionar a fé;
  • adaptação à vida em um novo país;
  • tirar férias ou os gastos feitos nas férias;
  • deixar a família ou pais idosos no país de origem;
  • dificuldade para equilibrar todas as responsabilidades;
  • expectativas variadas de múltiplas culturas como a cultura anfitriã, a cultura de origem e a cultura de expatriado no país de serviço;
  • deixar o campo de trabalho.

Potenciais gatilhos da vergonha para missionários

Esse entendimento mais profundo sobre a vergonha me ajudou a compreender a minha própria experiência de vida como missionária no mundo muçulmano. O país onde eu servia era um campo muito desafiador devido à sua instabilidade política, sua sociedade dominada por homens e suas rigorosas leis religiosas. Como mulher e missionária servindo nesse contexto, tive muitas oportunidades de achar que não estava atendendo às expectativas da minha organização, da comunidade de expatriados, das igrejas que me enviaram, da cultura anfitriã e as minhas próprias. À medida que aprendi mais sobre a vergonha, compreendi que provavelmente eu não era a única a experimentá-la. Percebi que era importante estudar esse tema com mais profundidade, pois os aspectos negativos da vergonha podem afetar os missionários, dificultando sua conexão com Deus e com os outros, o que acaba impactando negativamente o ministério.

Para compreender como as missionárias vivenciam a vergonha, convidei mulheres que serviam no mesmo país onde eu estava para participarem de dois grupos focais de discussão sobre o tema. A discussão baseou-se nas descobertas da literatura. Como era de se esperar, as conclusões dos grupos focais se alinharam à literatura sobre a vergonha, inclusive o fato de que todas experimentavam esse sentimento. Quando pedi às mulheres que descrevessem a sua experiência de vergonha, elas o fizeram usando uma linguagem ainda mais contundente do que as definições citadas anteriormente. Confessaram que a vergonha é extremamente dolorosa, alienadora, depreciativa e traiçoeira para a alma, e que se assemelha a uma prisão. Além disso, quando tiveram a oportunidade de partilhar experiências que causaram o sentimento de vergonha, mencionaram muitos dos possíveis gatilhos listados acima. Os dados foram classificados sob vários temas principais, entre eles: relacionamentos, assédio, valores culturais, reputação, aprendizado de idiomas e transições.

Muitos dos aspectos negativos da vergonha foram mencionados, como, por exemplo, pensamentos suicidas, choro, frustração, raiva, autocondenação, culpa, constrangimento, sensação de isolamento, dificuldade de falar abertamente, tentativa de esconder-se, desejo de abandonar suas funções, tentativa de aumentar a carga de trabalho.

Talvez a descoberta mais significativa tenha sido o desejo das mulheres de compartilhar suas experiências com o sentimento de vergonha. Conforme algumas delas falavam abertamente do que haviam vivenciado, outras mulheres começaram a compartilhar experiências semelhantes. Nesse compartilhamento, elas foram capazes de ajudar umas às outras a perceber benefícios em suas reações ao sentimento de vergonha que elas próprias não haviam observado.

A vergonha precisa ser discutida

Analisando tanto a literatura quanto os grupos focais, parece inevitável que os missionários continuem a experimentar em seu trabalho e ao longo de sua vida os potenciais gatilhos desencadeadores do sentimento de vergonha. A vergonha existe desde Adão e Eva e certamente estará presente até a volta do Senhor. Curt Thompson explica que      a vergonha é “a arma emocional usada pelo mal para corromper nosso relacionamento com Deus e uns com os outros”.[13] Se não for tratada, a vergonha pode impactar negativamente o relacionamento dos missionários com Deus e com outras pessoas, e levar a outras estratégias de enfrentamento, como vícios e automutilação.
Os missionários precisam ser capacitados para reconhecer a vergonha. Precisam também de estratégias saudáveis para lidar com esse sentimento quando ele surgir, evitar impactos negativos em seus ministérios e fortalecer seu relacionamento com Deus e com os outros.

a vergonha é “a arma emocional usada pelo mal para corromper nosso relacionamento com Deus e uns com os outros”.

Sugestões para lidar com a vergonha

A vergonha é resultado da forma como alguém avalia a si mesmo ou acredita que está sendo avaliado por outros. Mensagens da família, da comunidade e dos ambientes sociais e culturais contribuem para os tipos de coisas que o cérebro codifica como vergonhosas. Esses mecanismos que se formam no cérebro continuam atuando ao longo da vida, a menos que sejam requalificados. Portanto, para tratar de forma adequada o sentimento de vergonha na vida de alguém, será importante requalificar esses mecanismos previamente formados.

Em minha pesquisa concluo que, para lidar com a vergonha de modo eficaz, os missionários precisam avaliar a si mesmos pelas lentes das Escrituras e do que Deus afirma sobre eles. Simon Cozens explica que é problemático procurar validação em nós mesmos ou em um grupo, pois isso seria “voltar nossos olhos para o mundo e não para o nosso Criador”.[14]

Em primeiro lugar, os missionários precisam ter consciência do sentimento de vergonha em suas vidas. Estar apto a reconhecer de que forma a vergonha se manifesta, física, mental e emocionalmente, compreendendo as experiências que muitas vezes a desencadeiam, inclusive como a própria personalidade pode contribuir para o sentimento de vergonha, e saber como ele próprio reage a esse sentimento, ajudará o missionário a reconhecer a vergonha rapidamente.

No entanto, ser capaz de reconhecer a vergonha é apenas o primeiro passo. Em segundo lugar, os missionários devem ser capacitados para buscar Deus e outras pessoas quando enfrentarem esse sentimento. Precisam ter as ferramentas para lidar com a vergonha, como compreender o plano de Deus para eles quando os criou.

Finalmente, os missionários devem aprender a reconhecer e lidar com mensagens que incitam o sentimento de vergonha no contexto da cultura em que estão inseridos. Será especialmente útil para as equipes poder discutir como a vergonha é percebida tanto na equipe como na cultura em que servem.

Ferramenta de conscientização sobre a vergonha

Para orientar os missionários nesse processo, criei a “Ferramenta de conscientização sobre a vergonha” como ponto culminante da minha pesquisa.[15] A ferramenta ajudará os missionários a reconhecer a vergonha em suas vidas e a estabelecer um plano personalizado de resposta. À medida que encontrarem formas úteis de lidar com as suas experiências de vergonha, os missionários também poderão ajudar aqueles a quem servem na cultura anfitriã a lidar com esse sentimento. Capacitar os missionários a reconhecer a vergonha e implementar respostas saudáveis trará benefícios não apenas aos missionários, mas também àqueles a quem servem.

Endnotes

  1. Brene Brown, The Gifts of Imperfection: Let Go of Who You Think You’re Supposed to Be and Embrace Who You Are (Center City, Minn: Hazelden, 2010), 67. Jesse A. Allpress, et al., ‘Two Faces of Group-Based Shame: Moral Shame and Image Shame Differentially Predict Positive and Negative Orientations to Ingroup Wrongdoing,’ Personality and Social Psychology Bulletin 40 no. 10 (2014):1270-1284.
  2. Claudia Ferreira, et al., ‘A New Measure to Assess External and Internal Shame: Development, Factor Structure and Psychometric Properties of the External and Internal Shame Scale,’ Current Psychology (March 2020): https://doi.org/10.1007/s12144-020-00709-0. Brene Brown, ‘Shame Resilience Theory: A Grounded Theory Study on Women and Shame,’ Families in Society: The Journal of Contemporary Services 87, no.1 (2006): 43-53. Geert Hofstede, Gert Jan Hofstede, and Michael Minkov, Cultures and Organizations: Software of the Mind: Intercultural Cooperation and Its Importance for Survival (New York: McGraw-Hill, 2010), 5-110. Ian Morgan Cron and Suzanne Stabile, The Road Back to You: An Enneagram Journey of Self-Discovery (Downers Grove: IVP Books/Intervarsity Press, 2016), 15-29.
  3. Corinna N. Scheel, Hedwig Eisenbarth and Katrin Rentzsch, ‘Assessment of Different Dimensions of Shame Proneness: Validation of the SHAME,’ Assessment 27, no. 8 (2020): 1699-1717, https://doi.org/10.1177/107319111882013. Mark W. Baker, Overcoming Shame (Eugene, Oregon: Harvest House Publishers, 2018), 13.
  4. Curt Thompson, Anatomy of the Soul: Surprising Connections Between Neuroscience and Spiritual Practices That Can Transform Your Life and Relationships (Carol Stream, IL: Salt River, 2010), 66-195.
  5. Brene Brown, I Thought It Was Just Me (But It Isn’t): Making the Journey from ‘What Will People Think?’ to ‘I Am Enough’ (New York:Gotham Books, 2014), 27.
  6. Neda Sedighimornani, ‘Shame and its Features: Understanding of Shame,’ European Journal of Social Sciences Studies 3, no.3 (2018): 86, DOI: 10.5281/ZENODO.1453426.
  7. Brian Lickel et. al, ‘Vicarious Shame and Guilt,’ Group Processes and Intergroup Relations 8, no. 2 (2005): 145-157, DOI: 10.1177/1368430205051064. Holly A .McGregor and Andrew J. Elliot, ‘The Shame of Failure: Examining the Link Between Fear of Failure and Shame,’ Personality and Social Psychology Bulletin 31, no. 2 (February 2005): 218-231, DOI: 10.1177/0146167204271420.
  8. Simon Cozens, Looking Shame in the Eye: A Path to Understanding, Grace and Freedom (London: Inter-Varsity Press, 2019), 25.
  9. Holy Bible: New Living Translation (Carol Stream, IL: Tyndale House Publishers, 2015), Genesis 3:9,3:21. 
  10. Dan Allender and Tremper Longman, The Cry of the Soul: How Our Emotions Reveal Our Deepest Questions About God (Colorado Springs, CO:NavPress, 2015), 227.
  11. Te-Li Lau, Defending Shame: Its Formative Power in Paul’s Letters (Grand Rapids, MI, Baker Academic, 2020), 106.
  12. Harriet Hill, ‘Missionaries and Shame,’ Missio Dei: A Journal of Missional Theology and Praxis 11. (2020).
  13. Curt Thompson, The Soul of Shame: Retelling the Stories We Believe About Ourselves (Downers Grove, IL:IVP Books, 2015), 13.
  14. Cozens, Looking Shame in the Eye, 58.15. The ‘Shame Awareness Tool’ will prompt you to think about how you have experienced shame so that you will be equipped to recognize it when you experience it in the future. There is also a section to reflect on what God says about you and who he has created you to be, which will be helpful to understand so you can remember his voice when you hear the shaming messages from yourself or others. The ‘Shame Awareness Tool’ will also help you to think about action steps you will take when you are experiencing shame. For questions about or to receive the ‘Shame Awareness Tool’ and other helpful resources to cope with shame, contact the author at [email protected].