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O gap tecnológico

Por que os líderes cristãos negligenciam a tecnologia?

Adam Graber 22 dez 2022

Os líderes cristãos ratificam a importância da tecnologia, mas geralmente não a percebem como uma lacuna que merece mais pesquisa.

Se você perguntar a um líder missionário o que exercerá mais influência sobre a Grande Comissão por volta de 2050, é provável que ele responda “a tecnologia”. Mas se a pergunta for: “O que os cristãos devem fazer hoje a esse respeito?”, a resposta talvez seja: “Nada” ou “Não sei por onde começar”.

Estas são as descobertas de duas pesquisas distintas feitas pelo Movimento de Lausanne nos últimos três anos.

Em julho de 2022, numa sessão plenária do L4NY, um encontro relacionado ao Lausanne 4 realizado em Nova York, os líderes fizeram o exercício de imaginar como seria o evangelho em 2050. O pesquisador e professor Matthew Niermann conduziu os ouvintes em uma enquete digital que tinha duas perguntas. Entre 80 e 90 participantes enviaram suas respostas por mensagens de texto, criando na tela uma nuvem de palavras.

Primeiramente, Niermann perguntou ao público: “Responda em uma ou duas palavras: O que você acha que moldará o mundo em 2050?” Oitenta e uma pessoas responderam gerando cerca de 48 palavras diferentes, entre elas “política”, “ideologia”, “pobreza” e “migração”. Duas respostas, contudo, se sobressaíram muito em relação às outras: “mudança climática” e “tecnologia”.


Responda em uma ou duas palavras: O que você acha que moldará o mundo em 2050?

O tema “tecnologia” também estava presente em outras respostas como “redes sociais”, “transumanismo”, “inteligência artificial”, “era espacial” e “carros elétricos”. Ficou evidente que o tema predominante na mente dos participantes era a tecnologia, de alguma forma. É praticamente certo que ela moldaria o evangelho em 2050.

Em seguida, Niermann fez uma segunda pergunta e as respostas formaram uma nova nuvem de palavras. Ele disse: “Responda em uma ou duas palavras: Que aspecto do mundo em 2050 você acha que mais afetará a Grande Comissão?” Dessa vez, 93 pessoas participaram.

As palavras incluíam alguns dos mesmos tópicos anteriores, mas também novas entradas como “colaboração”, “população”, “localização dos cristãos” e “compartilhar Cristo”. A palavra “tecnologia” aparecia logo atrás de outras mais proeminentes como “oração”, “o Espírito Santo” e “avivamento”. Novamente, no entanto, apareceram termos adicionais relacionados à tecnologia: “desinformação”, “Internet”, “informação”, “tecnologia” e “mídia e tecnologia”.


Responda em uma ou duas palavras: Que aspecto do mundo em 2050 você acha que mais afetará a Grande Comissão?

Fica claro que a influência da “tecnologia” ocupa boa parte da mente dos líderes. Eles a veem como uma importante influência nas próximas três décadas. Na verdade, isso já acontece. Então, o que os cristãos devem fazer a respeito?

A tecnologia desaparece

Talvez devamos encarar com cautela esses resultados. Afinal, trata-se de uma enquete com uma amostra pequena e respostas reflexivas. O que aconteceu no L4NY, contudo, não foi uma anomalia. Outra pesquisa conduzida pelo Movimento de Lausanne destacou descobertas semelhantes. Essas descobertas, contudo, revelam uma aparente contradição e sugerem uma atitude mais problemática em relação à tecnologia.

Iniciando em 2020 e ao longo dez meses, o Lausanne conduziu 36 encontros virtuais de escuta (relatório completo em pdf). As mesmas cinco perguntas foram feitas a líderes evangélicos de todo o mundo. Dentre elas, três perguntas podem agregar mais informações e nuances à pesquisa de Niermann no L4NY:

Pergunta nº1:

“Que avanços e inovações promissores você acha que podem acelerar o cumprimento da Grande Comissão?”

De acordo com as respostas do L4NY, 80% dos encontros virtuais de escuta mencionaram a tecnologia (29 de 36). No decorrer dos vários encontros, surgiram temas relacionados ao “uso de novas tecnologias e mídia para ministérios”. Está claro que os líderes evangélicos de todo o mundo acreditam que a tecnologia desempenhará um papel importante na Grande Comissão.

Pergunta nº2:

“Quais são as lacunas ou oportunidades restantes mais significativas para o cumprimento da Grande Comissão?”

Em resposta a esta segunda pergunta, um resultado surpreendente começa a surgir: a proeminência da tecnologia começa a cair drasticamente. Apenas 22% dos encontros virtuais de escuta (8 de 36) mencionaram como um problema as “Igrejas que não usam tecnologias e mídia contemporâneas”. Por razões diversas, os líderes atuais não parecem ver a “tecnologia” como uma lacuna ou uma oportunidade perdida para a Grande Comissão. Vamos explorar as razões, mas antes disso, outra pergunta.

Pergunta nº 3:

“Em que áreas a pesquisa é mais necessária?”

Com esta terceira pergunta, o tema “tecnologia” desaparece completamente. Nos encontros virtuais de escuta, nenhum dos líderes sugeriu que a tecnologia precisasse de mais pesquisa. O mais próximo de “tecnologia” que qualquer resposta chega são os comentários sobre “Geração Z e gerações mais novas” ou possivelmente sobre o “contexto sociocultural do ministério”, mas para todos os efeitos, a tecnologia não é mencionada.

Resumindo, líderes de todo o mundo acreditam fortemente que a tecnologia moldará o mundo e o evangelho nas próximas três décadas. Eles também acreditam que a tecnologia promete avanços e inovações para a Grande Comissão. Mas esses mesmos líderes nem sempre veem a tecnologia como uma lacuna, uma oportunidade ou um tema que mereça mais pesquisa.

Por que isso acontece?

Por que os líderes negligenciam a tecnologia?

A todo momento, muitas coisas competem pela atenção dos líderes, inclusive artigos como este. Eles têm muitas preocupações, sejam elas a tirania da urgência ou a paixão pelo cumprimento da missão que têm diante de si. Mas a tecnologia, sem dúvida, está envolvida em muitas dessas preocupações. Então, quando ela aparece em certas áreas e não em outras, vale a pena entender a razão.

Para ajudar a explicar a discrepância, vejamos quatro possíveis razões pelas quais os líderes voltados para o futuro podem estar desconsiderando a tecnologia.

1. Eles estão focados em usar a tecnologia.

Para alguns líderes, a tecnologia é apenas um fato da vida. É difícil imaginar outra forma de conduzir um ministério. A tecnologia fica em segundo plano, passando muitas vezes despercebida. Embora nesta geração, mais do que nas outras, a revolução digital tenha colocado o impacto da tecnologia em primeiro plano, os líderes talvez acreditem que usá-la é uma parte inevitável de sua estratégia ministerial. Para eles, a questão não é se devem usá-la, mas simplesmente como fazê-lo. Com esse tipo de atitude limitando sua perspectiva, a tecnologia que usam fica restrita às opções que chamam sua atenção e os leva a ignorar abordagens que talvez não se encaixem nesses limites.

2. Eles estão focados em redimir a tecnologia

Tendo em vista a maior atenção voltada à tecnologia hoje, muitos líderes são mais intencionais em relação ao seu uso. Eles ainda querem usá-la, mas querem usá-la bem. Eles percebem que pessoas e corporações usam a tecnologia de forma indevida, para vigiar e manipular pessoas, abusando da dignidade humana. Como líderes ministeriais, eles querem usar a tecnologia de maneira diferente.

Para eles, a tecnologia pode ser usada para o bem ou para o mal e entendem a Grande Comissão como algo que vai além de uma boa causa. A Grande Comissão confere à tecnologia um propósito verdadeiramente valioso. Essa perspectiva significa que qualquer tecnologia que possa servir à Grande Comissão deve ser usada. Infelizmente, essa mesma perspectiva também pode errar ao não prever as consequências não intencionais da tecnologia. Os líderes usam a tecnologia para o bem, mas não veem como a tecnologia em si pode impactar sua organização ou as pessoas que são alcançadas. Os fins redentores, portanto, não podem necessariamente justificar os meios tecnológicos.

3. Eles estão mais focados nos resultados da tecnologia do que em suas consequências.

Muitos usuários de tecnologia se concentram nos resultados que podem alcançar sem perceber as consequências mais amplas que uma tecnologia pode ter. Os líderes podem, de fato, ser usuários especializados de novas tecnologias. Talvez sejam capazes de explicar como o sistema funciona e podem usá-lo habilmente para atingir seus objetivos. No entanto, colocar o foco nos resultados de curto prazo pode fazer com que eles ignorem as consequências de longo prazo.

Lutero e Gutenberg certamente não previram como a prensa redistribuiria o conhecimento e o poder, enfraquecendo a influência da Igreja Católica e abrindo as portas para o Renascimento e, posteriormente, o Iluminismo. Mas esses são os tipos de efeitos de longo prazo que são indiscutivelmente mais significativos do que quaisquer objetivos de curto prazo que eles tivessem no uso da tecnologia. Da mesma forma, se os líderes de hoje estão pensando na Grande Comissão em 2050, eles precisam pensar tanto nas consequências da tecnologia quanto em seus resultados.

4. Eles estão mais focados em avançar a Grande Comissão do que em entender a tecnologia.

Alguns líderes podem simplesmente preferir manter o foco no trabalho espiritual de promover o evangelho em vez de se atolar em métodos técnicos. Eles veem a tecnologia como uma distração da Grande Comissão, ou apenas um meio necessário para um fim. Suas respostas à enquete de Niermann no encontro L4NY foram palavras como “oração”, “avivamento” e “o Espírito Santo”. Para esses líderes, quando se trata de tecnologia, sua postura é: “O que Jerusalém tem a ver com o Vale do Silício?”

Ninguém afirmará que nossa atenção à tecnologia deve estar acima do avanço do evangelho, da oração ou da voz do Espírito Santo. A tecnologia, no entanto, pode ser tão ou mais influente que o dinheiro, e se considerarmos a frequência com que Jesus ensinou sobre o dinheiro, não deveríamos prestar mais atenção à forma como abraçamos a tecnologia? Ela merece o nosso discernimento lúcido, tanto por seus resultados como por suas consequências. Por essa razão apenas, os líderes cristãos deveriam avaliar a forma como a tecnologia molda seus ministérios hoje e como moldará o evangelho nas próximas três décadas.

A tecnologia requer sabedoria

Os sistemas técnicos não são inerentemente maus ou errados, mas apresentam, sim, riscos inerentes. Já observamos o surgimento do “pensamento sistêmico” logo no início da Bíblia e a forma como os líderes de Deus administraram esses riscos. Ao sentir-se sobrecarregado com a aplicação da Lei, Moisés começa a desenvolver um sistema de juízes. Estabelece um sistema judicial para lidar com o volume de casos, aplicar a justiça e ajudar o povo de Deus a viver em shalom uns com os outros. Seguindo o conselho de seu sogro, Jetro, Moisés seleciona “homens capazes, tementes a Deus, dignos de confiança e inimigos de ganho desonesto”. Sem eles, o sistema jamais teria conseguido alcançar esse shalom.

No Novo Testamento, quando os apóstolos começam a administrar um programa de alimentação para cuidar das viúvas de Jerusalém, logo descobrem que não estão fazendo um bom trabalho. Os crentes de língua grega começaram a se queixar, “porque suas viúvas estavam sendo esquecidas na distribuição diária de alimento”. Em resposta, os apóstolos – acreditando terem sido chamados para ensinar a Palavra de Deus – selecionam sete líderes “de bom testemunho” e “cheios do Espírito e de sabedoria”.

Para os líderes de hoje, “o ensino da palavra de Deus” não se diferencia mais desse tipo de pensamento sistêmico. A Grande Comissão tornou-se sistematizada de muitas maneiras. E ela é acompanhada do mesmo risco inerente apresentado por qualquer sistema. Por essa razão somente, os ministérios cristãos precisam dos mesmos tipos de líderes que Moisés e os apóstolos procuravam — capazes, honestos, tementes a Deus, respeitados, cheios do Espírito e de sabedoria.

Quando se trata de tecnologia, os líderes cristãos de hoje devem acatar a admoestação de Jesus de serem tão prudentes como as serpentes. A tecnologia não pode ser simplesmente usada, redimida e redirecionada para o serviço sagrado ou ignorada por completo. Em vez disso, deve ser considerada como uma lacuna, uma oportunidade e um tema que merece mais pesquisa.

Então, como os líderes podem buscar esse tipo de sabedoria?

  • Fazendo boas perguntas. Talvez a pergunta mais importante a ser feita pelos líderes não seja “O que posso fazer com a tecnologia?”, mas sim “O que essa tecnologia está fazendo comigo, com minha organização e com as pessoas a quem servimos?” Essa pergunta muda o foco, direcionando nosso olhar para as relações que a tecnologia afeta e não para os resultados que ela alcança.
  • Aprendendo com o passado. Os líderes precisam olhar para trás e ver como a tecnologia moldou igrejas, ministérios, instituições e sociedades no passado. A transformação digital de hoje não é inédita. Grande parte já aconteceu antes em escalas menores. Olhe para trás e veja como a escrita se tornou um meio de esquecer, em vez de um registro da memória. Considere como a prensa possibilitou a Reforma, o Renascimento e o Iluminismo. Explore as razões pelas quais as armas surgiram e depois desapareceram no Japão do século 17.
  • Lendo bons livros. A boa notícia é que há um número crescente de cristãos estudando a tecnologia e escrevendo sobre ela. Professores como John Dyer, Douglas Estes, Felicia Wu Song e Darrell Bock publicaram análises profundas da tecnologia. Escritores como Andy Crouch, Tony Reinke e Christina Crook publicaram livros sobre tecnologia nos últimos anos. Enquanto isso, Michael Sacasas escreve regularmente on-line e tem um livro prestes a ser lançado que, sem dúvida, fará valer o tempo de todos os líderes cristãos.
  • Ouvindo bons podcasts. Se os podcasts cristãos são mais a sua praia, confira meu podcast Device & Virtue, além de Breaking the Digital Spell, Winning Slowly, The FaithTech Podcast e muitos outros. Eles vão além de explicar como usar a tecnologia para impulsionar o ministério. Exploram a forma como a tecnologia está moldando os cristãos e a igreja.

Avançar a Grande Comissão é mais do que espalhar uma mensagem. É proclamar um modo de vida. Muitas das tecnologias de comunicação de hoje promovem a proclamação da mensagem do evangelho, mas inibem o desenvolvimento de relacionamentos saudáveis, essenciais para a produção de vidas abundantes e comunidades frutíferas. O evangelho difunde um modo de vida que restaura pessoas e constrói relacionamentos. Não se trata apenas de acreditar nas verdades do evangelho, mas também de experimentar a vida abundante prometida por Jesus. Essa vida é abundante por causa dos relacionamentos.

Os líderes cristãos estão imaginando o evangelho em 2050. Essa perspectiva de longo prazo é o tipo de sabedoria de que a igreja precisa. Ela também é essencial para discernir as reais consequências da tecnologia. Sem essa sabedoria, os ministérios implementarão a tecnologia, mas podem deixar de plantar o tipo de vida abundante que Deus deseja para o seu povo. A tecnologia pode produzir tabelas e gráficos que retratam o que está acontecendo hoje, mas prever o evangelho em 2050 requer líderes que busquem mais do que a tecnologia pode revelar.

Assim que os líderes começarem a perceber como a tecnologia está moldando a igreja, eles começarão a exigir que a tecnologia seja objeto de inspeção. Passarão a vê-la como uma lacuna, uma oportunidade e um tema que merece mais pesquisas. E independentemente de estarem ministrando a justiça, distribuindo alimentos ou divulgando o evangelho, os líderes conhecedores da tecnologia começarão a identificar formas de nutrir comunidades saudáveis onde a fé, a esperança e o amor possam criar raízes e florescer.

Photo Credits: Photo by Gerd Altmann

Author's Bio

Adam Graber

Adam Graber é um dos apresentadores do podcast Device & Virtue. Presta consultoria em teologia digital para a FaithTech e para a Leadership Network, e é coach no Centro de Fé e Inovação do Wheaton College. Conecte-se com ele no Twitter @AdamGraber.

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