Introdução
Nos últimos anos, em várias partes do mundo, tem se direcionado muita energia para a formação missionária de migrantes econômicos da igreja do Mundo Majoritário.1 Afinal, o evangelho levado por meio da migração econômica parece ser uma forma normativa de realizar a missão intercultural. Essa hipótese, no entanto, tem algumas lacunas. Em virtude da escassez de oportunidades, é improvável que a migração econômica ofereça muita esperança missionária aos não alcançados e não engajados dos países com baixo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH).2 Além disso, tem havido poucos movimentos missionários intencionais do Mundo Majoritário para esses locais. O artigo “World Christianity and Mission 2021: Questions about the Future” [O cristianismo e a missão globais 2021: Perguntas sobre o futuro] resume bem o problema: “Muitos fatores, […] como a tradição da igreja […] e os recursos financeiros impactam a capacidade […] de enviar missionáriosdo próprio país. Além disso, muitos missionários no Sul Global servem como obreiros nacionais em seus próprios países”.3
Os “hubs” missionários do Mundo Majoritário 4 estão procurando suprir essa lacuna. Engajando-se no envio missionário estratégico, eles imitam (até certo ponto) o modelo das organizações missionárias ocidentais. Começando com o chamado, eles enfatizam o recrutamento, o treinamento, o envio e o apoio a missionários estrategicamente localizados. Não surpreende que os recursos financeiros representem o maior desafio para essas iniciativas.
À primeira vista, o problema da captação de recursos para a obra missionária do Mundo Majoritário parece ser de fácil solução, bastando redirecionar os sistemas de irrigação financeira das missões. E, em vez disso, enviar dinheiro das agências ocidentais para os centros de distribuição. No entanto, regulações financeiras, relatórios e adequada diligência das doações, bem como as estratégias normativas ocidentais de financiamento missionário, tornam este redirecionamento ineficaz. Além disso, iniciativas policêntricas, voltadas ao estabelecimento da organização ocidental “em escritórios locais dos países” têm enfrentado dificuldade para internacionalizar a administração, a definição de regras e o controle dos recursos. Portanto, quais modelos alternativos de financiamento existem para hubs missionários autênticos e intencionais do Mundo Majoritário?
A adoção de uma abordagem orgânica
A tecnologia, ao que parece, permite acesso a recursos e redes e tem abolido a necessidade de um hub ou uma organização. Os modelos missionários autossustentáveis do tipo Igreja para igreja, ou pessoas para pessoas estão ganhando força. É comum o uso de aplicativos de transferência de fundos para o sustento de obreiros missionários. Na última geração, as comunidades da diáspora têm usado aplicativos de transferência de dinheiro para influenciar a mudança.5 O Banco Mundial estima que, em 2022, 513 bilhões de libras esterlinas foram transferidos pela diáspora a países de rendimento médio e baixo.6 Embora seja impossível saber qual parcela desse total foi investida em missões locais, ainda assim ela representa uma significativa capacidade econômica de gasto da diáspora.7
Nunca foi tão fácil para os missionários do Mundo Majoritário acessar recursos e transmitir a poderosa mensagem de esperança do evangelho. Atualizações de tópicos de oração pelo WhatsApp em tempo real. Doações de dinheiro pelo celular mediante solicitação. Há uma infinidade de sites cristãos de crowdfunding 8 como o Fundly ou o Give Send Go.9 Até mesmo o surgimento do Metaverso, que permite acesso ilimitado a qualquer nação, sem necessidade de visto e viagem e sem qualquer custo extra, por meio de seu próprio avatar missionário. A tecnologia, e o acesso global que ela proporciona, eliminou em grande parte as barreiras ao sustento da obra missionária do Mundo Majoritário. No entanto, se o papel do hub ou da organização é meramente mobilizar apoio financeiro, então eles são evidentemente redundantes.
Propósito do hub?
Obviamente, a movimentação aleatória de pessoas impulsionada pelo acesso ao fluxo de recursos não equivale à evangelização mundial. A intencionalidade da missão importa. Uma organização coesa e estruturada com capacidade de implementação importa. No entanto, o maior argumento a favor de hubs é que muitos dos obreiros das missões do Mundo Majoritário enfrentam riscos inconcebíveis. Em contextos frágeis, o hub de especialistas (como a organização ocidental) é algo de muito valor. É ao mesmo tempo doloroso e pernicioso ouvir posturas reducionistas que sugerem que os missionários do Mundo Majoritário estão “mais dispostos a pagar o preço” (tornando dessa forma, desnecessário o suporte profissional). As agências ocidentais não deveriam deter o monopólio do tipo de treinamento, do backup de gerenciamento de crise, das redes de apoio de oração, do seguro, dos salários, de uma pensão legítima e de uma gestão qualificada.
No entanto, tais posições baseadas em princípios custam caro. Para dar algum contexto, um dos frutos da conferência da Associação de Missões Evangélicas de Gana (GEMA), em 2023, foi o comissionamento de trinta jovens. O ex-presidente da GEMA10 resumiu desta forma sua situação: “Os campos estão prontos para a colheita, mas os trabalhadores são muitos!” Então, “como podemos obter vistos, seguros, voos esustento para que eles entrem no campo de colheita?” O campo missionário de foco estratégico da GEMA inclui o Sahel e o Norte de África. A GEMA sente intensamente o peso de cuidar da geração emergente de seus próprios missionários. Com a impressionante visão de enviar 30 mil missionários ganeses, o desafio é encontrar 300 milhões de dólares por ano durante os próximos cinquenta anos para fornecer sustento adequado a seus obreiros.11 Não quero desmerecer as duas moedas de cobre da viúva ou a provisão milagrosa de Deus, mas, em termos práticos, pelo menos, no momento a economia não é muito favorável (pelo menos na África).
O equilíbrio pode estar nas “organizações amigáveis” que mantêm estratégias intencionais (movimentos coerentes) que permitem modelos bivocacionais de captação de recursos. Um grupo do Movimento de Formação de Discípulos (MFD) na Índia12 desenvolveu esse modelo. A maioria dos seus missionários são trabalhadores, agricultores e donas de casa, mas também evangelistas e plantadores de igrejas.13 O movimento tem testemunhado um crescimento exponencial. Em alguns contextos, contudo, a oposição ao evangelho é particularmente custosa.14 A maior força do movimento (a amabilidade) é também sua maior fraqueza em locais inseguros. À medida que o movimento cresce, a segurança e a diminuição de riscos assumem maior importância. Na busca de atender às complexas necessidades do atendimento aos membros em contextos extremamente frágeis, o movimento amigável de pouco contato incorre em processos necessariamente mais laboriosos e um suporte especializado mais caro. Por exemplo, gestão de crise, treinamento HEAT (capacitação para segurança pessoal em ambiente hostil), seguro ambiental complexo, pausas para descanso e apoio psicológico ou pastoral abrangente são aportes responsáveis para qualquer movimento de apoio a missionários no Afeganistão ou na Somália.
Repensar a captação de recursos?
Até esta data, muito poucos centros aproveitam de forma eficaz a captação de recursos da diáspora. Isto pode mudar à medida que as colaborações entre a igreja do Mundo Majoritário e a igreja da diáspora começarem a dar frutos. Além disso, o financiamento de hubs missionários que parte de igrejas do Mundo Majoritário ainda não faz parte de muitas culturas.15 Surge então uma terceira possibilidade: o mercado.
Negócios como Missão (BAM) já é um tópico bem explorado. É comum o exercício de atividades mais básicas usando oportunidades de mercado local, como a de fazer tendas, muitas vezes para fins de acesso criativo. O apoio do Mundo Majoritário a missões por meio de iniciativas bivocacionais de empreendedorismo missionário está ganhando força. Dean Miller, chefe de desenvolvimento de missões da Baptist General Association of Virginia (BVAG) descreve o seu modelo de apoio: “Foi determinado juntamente com nossos parceiros que a maior barreira à captação de recursos era a capacidade de criar capital em vez do mero financiamento de subsistência. Nós oferecemos financiamento de capital, na forma de um empréstimo sem juros, que deve ser usado para iniciar pequenos negócios cujos lucros, posteriormente são usados para financiar a missão (no nosso caso, a plantação de igrejas)16 Os empréstimos são pagos e reciclados em novas iniciativas e os empreendedores da missão recebem orientação de especialistas locais.
Vários investidores puderam conferir as oportunidades financeiras de colaboração no Mundo Majoritário. “Investidores anjos”17 buscam cristãos no Mundo Majoritário que levem suas inovações a mercados “não consumidores”. Em outras palavras, em locais onde não haja mercado aparente, procuram criar um. Por definição, esses mercados não consumidores existem nos países com o menor IDH. Grupos de investimento como Beyond Angel Network, Commonwealth Impact Investing, e Ambassadors Impact Network, oferecem Investidores Anjo.18 Um investidor anjo com quem conversei reconheceu que muitos cristãos do Mundo Majoritário estão prontos para promover uma mudança social. Como investidor anjo, ele opera com uma taxa de fracasso de 90% no período de dez anos (sem nunca obter o retorno do investimento), mas o valor de um negócio bem-sucedido entre dez faz com que o alto risco valha a pena.19
Enquanto o Sul e o Sudeste Asiático experimentaram um crescimento econômico do PIB com potencial para uma entrada significativa no mercado, grande parte da África enfrenta níveis extremamente baixos de renda per capita e várias barreiras para o crescimento econômico. No entanto, a demografia, cedo ou tarde, irá gerar demanda que fornecerá respostas inovadoras a esses mercados de não consumidores. A UNICEF prevê que, até 2050, a população africana alcance a marca de 2,5 bilhões de pessoas, com a grande maioria abaixo de 35 anos.20 Servir a essa população exigirá pessoas com espírito missionário cheias de inciativas inovadoras nas áreas de saúde, educação, agricultura, transportes, gestão de água, energia, saneamento, habitação etc. Os centros podem ser financiados por e para uma nova geração de empreendedores missionários bivocacionais.
No entanto, quer seja um centro de missão do Mundo Majoritário, um empreendedor missionário ou um movimento coerente de formadores de discípulos, a boa notícia é que a Terra é do Senhor e tudo o que nela há. Afinal, Jesus lembra aos discípulos: “Foi-me dada toda a autoridade no céu e na terra”.21 Então, ele ordena que façam discípulos das nações. A missão policêntrica pode ser sustentada por todas as fontes no céu e na terra. Isso deveria dar aos movimentos missionários do Mundo Majoritário a confiança necessária para que sejam ousados na exploração de abordagens de mobilização que não dependem do financiamento das organizações ocidentais. Em vez disso, eles podem associar e adotar o envio missionário estrategicamente intencional, aprendendo com as falhas e as percepções que as organizações ocidentais certamente estarão dispostas a compartilhar, à medida que se tornarem cada vez mais parceiras, catalisadoras e agentes de redes de contato. Neste sentido, as organizações ocidentais devem necessariamente requalificar-se como facilitadores interculturais eficazes, conectando pessoas, competências e recursos por trás das estratégias missionárias do Mundo Majoritário.22 Finalmente, as abordagens baseadas no mercado que podem ser adotadas pelos trabalhadores bivocacionais não apenas oferecem uma possibilidade de autossustentabilidade futura, como também a entrada em novas comunidades e a perspectiva de redução da pobreza por meio de uma visão ousada para os mercados não consumidores.
Notas finais
- A dinâmica “dispersos para reunir” que já é bem explorada pela Global Diaspora Network de Lausanne, https://lausanne.org/pt-br/network/diasporas.
- ‘ “Índice de Desenvolvimento Humano (IDH)”, Relatórios de Desenvolvimento Humano das Nações Unidas, acesso em 8 de julho de 2024, https://hdr.undp.org/data-center/human-development-index#/indices/HDI.
- Gina A. Zurlo Todd M. Johnson, and Peter F. Crossing, ‘World Christianity and Mission 2021: Questions about the Future,’ International Bulletin of Mission Research, Volume 45, Issue 1, 22 December 2020,
- Para os fins deste artigo, os “hubs” missionários referem-se a colaborações principalmente no Mundo Majoritário com o propósito de recrutar, treinar, equipar e enviar missionários do Mundo Majoritário. Visto que o policentrismo implica múltiplos centros, os hubs podem ser comparados aos nós que conectam redes de missionários, competências e recursos.
- Dina Ionescu, ‘Engaging Diasporas as Development Partners for Home and Destination Countries: Challenges for Policymakers,’ IOM Migration Research Series, No. 26, 2006, https://www.iom.int/sites/g/files/tmzbdl486/files/our_work/ICP/IDM/MRS26.pdf.
- ‘Migration and Development brief 37: Remittances Brave Global Headwinds,’ KNOMAD, Nov 2022, https://www.knomad.org/publication/migration-and-development-brief-37.
- A título de contexto, 513 bilhões de libras são cerca de 350.000% mais do que o orçamento anual do Conselho de Missão Internacional da Convenção Batista do Sul e maior do que o PIB de vários países!
- https://blog.fundly.com/christian-crowdfunding-platforms/.
- Em essência, essas são plataformas ocidentais de captação de recursos que evitam a necessidade de movimentação de agências. Muitas vezes, contudo, quer estejam na Europa ou na América do Norte, os sites de captação coletiva de recursos estão sujeitos a regulamentações de serviços financeiros, frequentemente relacionadas a maiores obrigações de conformidade no tocante aos relatórios de impacto e de responsabilização.
- Em novembro de 2023, o dr. Ray Mensah era Secretário Geral da GEMA em tempo integral, https://gemagh.org/.
- Com base nas conversas do autor com os líderes da GEMA, estimamos que o sustento básico, juntamente com treinamento, seguro, gerenciamento de crise, acesso a água potável e alimentos, custará US$ 10.000 por pessoa, por ano (por exemplo, custo de vida análogo, US$ 3.000 por ano; moradia US$ 1.000; seguro US$ 500; voos e todas as viagens relacionadas a missões US$ 3.000; suporte à equipe de gerenciamento de crise, US$ 500; suporte à agência e arrecadação de fundos, US$ 1.000; treinamento contínuo e idioma, US$ 1.000).
- Este grupo DMM não tem nome por razões de segurança.
- Neste DMM em particular, se houver, serão poucos os líderes da igreja formalmente treinados e ordenados. As congregações se reúnem em casas e fazem perguntas simples, porém profundas sobre as Escrituras, invocando a assistência dos Paráklētos prometidos para ajudar com a hermenêutica
- O mesmo movimento expandiu-se para vários países asiáticos. Infelizmente, o grupo DMM já perdeu vários obreiros no Afeganistão. Até mesmo na Índia, as famílias dos plantadores de igrejas foram alvo de violência
- Não tenho conhecimento de nenhum estudo empírico que confirme essa afirmação, mas, por experiência própria, há poucos centros missionários que conquistam a imaginação das igrejas no Mundo Majoritário. Existem, é claro, exemplos em contrário, mas o estudo sobre “The economics of missionary expansion: evidence from Africa and implications for development”, Journal of Economic Growth, 7 de abril, 2022, https://link.springer.com/article/10.1007/s10887-022-09202-8, sugere que somas muito significativas de dinheiro foram investidas em instituições e edifícios religiosos na igreja do Mundo Majoritário ao longo do último meio século, mas pouca ou nenhuma evidência sugere qualquer investimento local em centros de envio missionários interculturais.
- Dean Miller, e-mail correspondence with author, March/April 2024.
- Um investidor anjo é semelhante a um investidor de capital de risco em fase inicial.
- https://www.faithdriveninvestor.org/angel-networks.
- Com base em uma entrevista com um investidor anjo sediado nos EUA que optou por permanecer anônimo. Entrevista realizada em 26 de março de 2024.
- ‘Generation 2030: Africa 2.0,’ UNICEF, Oct 2017, https://www.unicef.org/media/48686/file/Generation_2030_Africa_2.0-ENG.pdf.
- Mateus 28.18.
- Nota da Editora: Veja Indo além da captação de recursos para o autossustento missionário, de Kirst Rievan, em Análise Global de Lausanne , agosto de 2023 https://lausanne.org/pt-br/global-analysis/indo-alem-da-captacao-de-recursospara-o-autossustento-missionario,.