Global Analysis

Restaurando a visão missional na educação teológica

a necessidade de treinamento pastoral transformativo nos países em desenvolvimento

Ashish Chrispal set 2019

Desde já gostaria de ressaltar que eu acredito nos estudos acadêmicos, mas com um propósito. Me lembro da visão do meu mentor espiritual Dr. John Stott sobre os “santos acadêmicos”. Acredito também em uma forma de enxergar as realidades de uma perspectiva “e…também” em vez de vê-las como “ou…ou”.

Esta análise da educação teológica é baseada em meus 44 anos de envolvimento com treinamento ministerial e teológico.  Meu pensamento foi afiado pelo meu envolvimento com 20 ou mais seminários em diversas nações da Ásia enquanto servi com o Overseas Council[1] nos últimos 12 anos. Assim como a exposição aos desafios impostos pela primeira geração de novos crentes que agora formam as “igrejas emergentes” na Índia e em muitas outras nações asiáticas e em outros países em desenvolvimento.

Falta nas vidas dos crentes da primeira geração, o discipulado sob o senhorio de Jesus Cristo, que transformaria sua visão de mundo.

O estado da educação teológica nos países em desenvolvimento

A maioria das igrejas emergentes são formadas por crentes de primeira geração. Portanto, eles possuem uma visão de mundo totalmente diferente. Falta em suas vidas o discipulado sob o senhorio de Jesus Cristo, que transformaria sua visão de mundo. O ensinamento da palavra de Deus, é, portanto, de suma importância. No entanto, eles vêm de comunidades oprimidas; portanto, sua educação é mínima e discipulá-los deve ser nossa prioridade. Há um déficit significativo de liderança em muitas regiões onde a igreja está crescendo rapidamente.

Esse déficit de liderança já foi quantificado por uma pesquisa conduzida pelo Centro de Estudo do Cristianismo Global, da Gordon-Conwell Theological Seminary: mais de 2 milhões de pastores protestantes nos países em desenvolvimento não possuem treinamento bíblico formal.[2] Noventa por cento das igrejas no mundo todo possuem líderes sem formação; e com o aumento nas taxas de conversões, existe uma necessidade mundial de centenas de novos pastores todos os dias.[3]

Enquanto a educação teológica formal contribui criticamente com a saúde de longo-prazo da igreja, abordagens não-formais se dirigem ao grande e crescente número de pessoas que necessitam de treinamento pastoral básico, mas para quem o treinamento formal não é acessível ou adequado. A maioria dos pastores ou missionários de movimentos populares que falam a língua do coração das pessoas possuem educação limitada como seu rebanho, mas são cristãos comprometidos. Eles precisam de treinamento, que em grande parte deve ser transmitido de forma oral, através de métodos de ensino informais. Os materiais da educação teológica formal enfatizam a leitura e escrita e isso é bem difícil para quem aprende de forma oral. Eles também levam consigo diferentes pressupostos em sua visão de mundo. Portanto, precisamos de materiais adaptáveis com base bíblica sólida, que sejam fáceis de transmitir de acordo com as necessidades das pessoas.

Friedrich Schleiermacher, teólogo alemão (1768 – 1834)

Histórico da educação teológica

A educação teológica como vemos hoje em nossas universidades de teologia e seminários são frutos do iluminismo do século XVIII. Suas diversas formas seguem o paradigma estabelecido pelo teólogo alemão Friedrich Schleiermacher (1768-1834). Ele queria que a educação ministerial da igreja fosse reconhecida pela universidade. A aceitação pela academia levou à compartimentalização dos silos do velho testamento, novo testamento, teologia, história do cristianismo e teologia prática, com uma dimensão de estudos religiosos. A filosofia de Schleiermacher foi moldada pela herança acadêmica da lógica de Aristóteles e alto criticismo literário da Bíblia.

É também o produto de uma mentalidade de “cristandade” e, portanto uma visão mundial cristã maioritária. Uma visão de mundo baseada na Bíblia não é a realidade da maioria dos cristãos no Hemisfério Sul, que são minoridade religiosa e precisam se relacionar com pessoas de outras fés.

O estudo de caso da educação teológica indiana começa em 1818 com o estabelecimento da Serampore College (Faculdade Serampore, em tradução livre), fundada por William Carey, Joshua Marshman e William Ward. Se tornou uma universidade de fato através de um decreto do rei da Dinamarca (que patrocinou as primeiras missões na Índia) em 1827. Após Serampore, faculdades teológicas e escolas de divindade de grandes denominações foram estabelecidas em diversas partes da Índia, incluindo a Bishop’s College (Calcutá), Leonard Theological College (Jabalpur), United Theological College (Bangalore), e a Orthodox Theological Seminary (Kottayam). Por causa de seus antecedentes teológicos liberais, estas faculdades eram a rota preferida para treinamento ministerial nas igrejas de tradição histórica. O alto criticismo literário se tornou mais proeminente e à medida que muitos dos locais recebiam seus diplomas acadêmicos em instituições na Alemanha e em outros países ocidentais com uma persuasão liberal, as universidades se tornaram o centro de treinamento de “sacerdotes da seita”, sem visão missionária. O cristianismo lentamente se via tomado pelo pluralismo como sua vanguarda


Serampore College

Contra esse pano de fundo, a Índia viu o começo da educação teológica evangélica. A maioria das missões evangélicas tinha escolas bíblicas pequenas para treinar seus evangelistas e pastores locais. Foi em Yavatmal, Maharashtra, durante o reavivamento espiritual de 1953, que as missões evangélicas se juntaram para formarem a Union Biblical Seminary (Seminário União Bíblica, em tradução livre – atualmente localizado em Pune, Maharashtra desde 1983). A visão era oferecer uma formação para missão e ministério com excelência acadêmica. A fundação oferecia treinamento centrado em Cristo e na Bíblia, além de ser voltado às missões. Nos anos seguintes, outros seminários pentecostais e evangélicos com uma visão semelhante se enraizaram na Índia. É possível ver modelos semelhantes em outras nações asiáticas. Um aspecto chave dessas universidades evangélicas e escolas bíblicas é que elas possuíam missionários como seu corpo docente.

Nos últimos 30 anos na Índia houve um crescimento explosivo da igreja, especialmente no norte do país, através do trabalho de cristãos que não têm vínculo algum com as denominações e seminários tradicionais.

Foi lançada uma nova era, com cidadãos locais de seminários evangélicos sendo enviados para avançar seus estudos no Ocidente na década de 1970.  John Stott, em seu papel como secretário fundador da Evangelical Fellowship within Anglican Communion (EFAC, em sua sigla em inglês, Irmandade Evangélica da Comunhão Anglicana, em tradução livre), convidou acadêmicos potenciais para estudarem no Reino Unido sob acadêmicos evangélicos ou acadêmicos simpatizantes da causa evangélica. No fim de 1980, EFAC se tornou a Langham Scholarship (Bolsa de estudos Langham, em tradução livre), que é atualmente conhecida como Langham International Partnership (Parceria Internacional Langham, em tradução livre). Um servo de Deus, seguido por muitos outros compromissados com a causa da bolsa de estudos evangélicas, deixou até hoje um legado de diversos acadêmicos evangélicos nos países em desenvolvimento.

As instituições evangélicas levaram a sério sua tradição de treinamento ou educação teológica como formação para um ministério e missão com excelência acadêmica. Este fenômeno continuou com o surgimento de líderes evangélicos respeitados na Índia e em diversas outras nações nos anos 80 e 90. No entanto, em meados dos anos 90 e com o começo do novo milênio, houve uma mudança.

A divisão entre a igreja e a educação teológica aumentou. Nos últimos 30 anos na Índia houve um crescimento explosivo da igreja, especialmente no norte do país, através do trabalho de cristãos que não têm vínculo algum com as denominações e seminários tradicionais. Como resultado, esses líderes não estão sendo equipados pelos seminários, além disso, os líderes dos seminários não estão conscientes das necessidades e desafios das igrejas emergentes.

A visão dos alunos, em muitos casos, mudou. É normal ouvir nos discursos de formatura que quase 60 dos graduandos aspiram “continuar seus estudos”, em vez de aspirarem o ministério. Detecto também outro modelo: os alunos completam o primeiro e segundo grau em teologia, servem em uma das escolas bíblicas ou seminários por um ou dois anos e depois fazem um mestrado com esperança de serem absorvidos por um dos seminários em expansão.

O desafio real que enfrentamos na educação teológica evangélica hoje é que ela está sendo tomada pela academia, sem a visão pela missão e ministério.

Os desafios que enfrentamos hoje

O desafio real que enfrentamos na educação teológica evangélica hoje é que ela está sendo tomada pela academia, sem a visão pela missão e ministério.[4] Em países como a Indonésia, Coréia do Sul, Filipinas e Tailândia, os governos forçaram a educação teológica a um nível de graduação ou contexto universitário. Isso a puxou mais ainda para o lado acadêmico, com ênfase excessiva em aprendizado intelectual em vez de treinamento profissional como acontece no estudo de medicina, direito e engenharia.

O corpo docente está sob pressão do governo ou pelas demandas das carreiras acadêmicas de “publicar ou perecer”. A compreensão da educação teológica como formação para missão e ministério está se enfraquecendo. Formação espiritual e de caráter se tornaram apêndices. A exigência de publicação e pesquisa é tão avassaladora que o discipulado e mentoria dos alunos acaba sofrendo.

Como resultado dessa mudança, as agências missionárias e megaigrejas lançaram seus próprios programas de treinamento teológico, para manter seu DNA vivo. Algumas pessoas até dizem que “os seminários são cemitérios”. Um líder de agência missionária me disse que seu problema é que ele envia bons plantadores de igrejas para treinamento, mas após terminar seus estudos eles querem somente se acomodarem em uma igreja, tendo perdido o zelo pela plantação de igrejas.

Uma mudança de paradigmas muito necessária

Chegou a hora de reconhecermos algumas realidades importantes se quisermos que a educação teológica seja eficiente e não se torne um fóssil:

  1. A teologia é para a igreja toda. Paulo e os outros escritores do novo testamento escreviam sobre o enraizamento da igreja na palavra de Deus (Cl 2:6-7). Não cabe à minoria buscar ser uma liderança elitista na igreja..
  2. A teologia como “Theo-Logos” – o estudo de Deus – precisa ser transformada em “Theos-Eulogeo” – o louvor de Deus. A educação teológica hoje se tornou um busca intelectual. Alguns até definem a teologia como uma filosofia cristã em vez de um modo de vida.
  3. É importante notar que quando Paulo escreveu para Timóteo e Tito, sua ênfase estava em sua formação de caráter, baseado na teologia bíblica.
  4. O paradigma atual do custo dos estudos, doações (levantamento de fundos no Ocidente), e despesas não é mais viável por dois motivos: ppprimeiramente, os alunos que podem fazer uma diferença na sociedade tendem a ser bivocacionais, uma vez que estão desiludidos com a liderança da igreja e querem evitar 3-4 anos de educação teológica. Em segundo lugar, os doadores da geração Y estão mais interessados no resultado e aprendizado baseado no impacto do que nos diplomas tradicionais existentes.
  5. Precisamos reimaginar a educação teológica como “discipular os discípulos”. Há uma necessidade urgente de focarmos intencionalmente em uma educação teológica transformadora, com foco nos resultados que são enraizados na formação missional e ministerial.
  6. A educação teológica precisa focar nas igrejas emergentes onde muitos novos crentes são de contextos de marginalização e opressão. Os pastores que ministram a eles precisam de um mínimo de formação. No entanto, eles falam a língua do coração das pessoas e conseguem apresentar o evangelho de forma eficiente para plantarem igrejas. Mas e o seu treinamento? Eles precisam de educação teológica em seu vernáculo, com a comunicação oral sendo chave, enquanto a crescente massa de pessoas nos movimentos populares precisam que seu modo de aprendizado sejam levados a sério.
  7.  Eu batalho com uma pergunta parecida com aquela enfrentada pela igreja primitiva: os gentis precisam virar judeus para poderem aprender e seguir Jesus Cristo? Os pastores, evangelistas e aqueles interessados em aprender sobre a Palavra de Deus precisam falar inglês, ter uma mente analítica e conhecerem profundamente a lógica aristotélica? A igreja primitiva viveu como minoria entre pessoas com outras fés. Eles sofreram provações e perseguições e ainda assim comunicavam a sabedoria de Deus de forma escrita e oral. A maioria dos crentes vinha de contextos de marginalização e desprezo, mas respondiam às boas novas. Não é essa a realidade do nosso mundo atual, especialmente nos países em desenvolvimento? Podemos ajudar as pessoas a desenvolverem uma educação teológica que floresce e toma a forma nos vasos terrestres de diferentes solos para que as águas vivas do Senhor possam saciar a sede das muitas pessoas que estão morrendo sem Cristo. [5]

Então, qual direção a educação teológica tomará? Precisamos de uma abordagem dupla, que inclui a educação formal e informal, com o foco principal nas nuances dos estilos contextualizados de aprendizado dos países em desenvolvimento. É importante não ser elitista e tradicionalista, deixando de reconhecer a necessidade de transformação que levará a igreja de nosso Senhor Jesus Cristo a ser embasada e enraizada em sua Palavra.

Notas de fim

  1. https://uwm.org/overseas/
  2. Editor’s Note: See article by Kirsteen Kim entitled, ‘Unlocking Theological Resource Sharing between North and South’, in November 2017 issue of Lausanne Global Analysis https://lausanne.org/pt-br/recursos-multimidia-pt-br/agl-pt-br/2017-11-pt-br/desbloqueando-a-partilha-de-recursos-teologicos-entre-o-norte-e-o-sul.
  3. https://gordonconwell.edu/center-for-global-christianity/research/quick-facts/.
  4. Editor’s Note: See article by Brian Woolnough entitled, ‘Reforming the Preparation for Ministry and Mission’, in this issue of Lausanne Global Analysis https://lausanne.org/pt-br/recursos-multimidia-pt-br/agl-pt-br/2019-09-pt-br/repensando-educacao-nos-seminarios.
  5. Editor’s Note: See article by Ramesh Richard entitled, ‘Training of Pastors’, in September 2015 issue of Lausanne Global Analysis https://lausanne.org/content/lga/2015-09/training-of-pastors.

Photo credits

Feature cropped image from ‘Serampore College, Hooghly, West Benal.‘ by gangulybiswarup (CC BY-3.0).

Autoria (bio)

Ashish Chrispal

Ashish Chrispal serviu como pastor em Ahmedabad e em Delhi; como reitor acadêmico da Union Biblical Seminary em Pune, Índia; como reitor e diretor administrativo da Kodaikanal International School; como diretor do South Asia Institute for Advanced Christian Studies em Bangalore, na Índia; e como diretor regional asiático da Overseas Council, uma organização que apoia a educação teológica em países em desenvolvimento. Atualmente ele serve como Conselheiro Sênior para a OC, um ministério da United World Mission que busca treinamento para movimentos de base. Ele recebeu uma bolsa de estudos da Langham Scholarship para realizar seu doutorado na Aberdeen University.