Global Analysis

Por que a política multicultural do Canadá fica aquém do ideal do evangelho

Passos rumo ao envolvimento, à empatia e à comunhão

Sherman Lau maio 2022

O Canadá celebra 50 anos de multiculturalismo

Em 8 de outubro de 2021, o Canadá celebrou o 50º aniversário da adoção do multiculturalismo como sua política federal oficial de diversidade social. Em reconhecimento a esse marco significativo, o primeiro-ministro, Justin Trudeau, declarou:

A diversidade dos canadenses é uma característica fundamental de nossa herança e identidade. Por gerações, recém-chegados de todo o mundo, de todas as origens, etnias, religiões, culturas e idiomas vêm ao Canadá com a esperança de torná-lo seu lar. Hoje, além dos primeiros povos indígenas e dos Métis e Inuit, pessoas de mais de 250 grupos étnicos chamam o Canadá de lar e celebram com orgulho sua herança cultural – eles estão no centro de nosso sucesso como um país vibrante, próspero e progressista.[1]

A introdução dessa política em 1971 coincidiu com uma mudança nas tendências de imigração, pois pela primeira vez, a maioria dos novos imigrantes era de ascendência não europeia – um precedente que persiste desde então.[2]

A igreja multicultural surge como um caminho para um testemunho pragmático do coração de Deus às nações.

O que o multiculturalismo significa para a igreja canadense

Para a igreja canadense, o multiculturalismo permitiu a preservação das congregações de herança e identidade étnica inglesa, escocesa, alemã, holandesa ou menonita, que moldaram o protestantismo canadense, e trouxe mais diversidade ao corpo de Cristo. Hoje, aos domingos, há cultos em cantonês, mandarim, espanhol, coreano, tagalo, suaíli e urdu. O multiculturalismo também é visto como uma oportunidade de refletir sobre Apocalipse 7.9 como uma realidade do reino em nosso tempo. Com a projeção de chegada anual de 400 mil imigrantes ao litoral canadense nos próximos três anos,[3] a igreja multicultural surge como um caminho para um testemunho pragmático do coração de Deus às nações.

No entanto, há quase 20 anos, debate-se a eficácia e a relevância da igreja multicultural. Por exemplo, Mark Naylor, do Center for Intercultural Leadership Development [Centro para o desenvolvimento de liderança intercultural], declara: “Embora eu aplauda esta visão, apoie o esforço e lamente os conflitos interculturais que inevitavelmente surgem, gostaria de discordar daqueles que promovem essa forma de igreja local como se ela estivesse mais em conformidade com o ideal do Novo Testamento do que outras igrejas menos etnicamente diversas”.[4] Ele afirma que defender as congregações multiculturais como a igreja “verdadeira” em contraste com as congregações monoculturais promove a perspectiva do corpo de Cristo como universal ou local, em vez de tanto universal quanto local, o que permite uma expressão multicultural mais bíblica da fé cristã.

Em contrapartida, Sam Owosu, pastor titular da Calvary Worship Centre, a maior igreja multicultural em Metro Vancouver, British Columbia, apresentou a seguinte apologética no Simpósio para Igrejas Intencionalmente Multiculturais de 2002:

O que significa para a igreja de Jesus Cristo viver e testemunhar em um mundo multicultural? Nosso mundo, nossa nação e nossas comunidades estão mudando rapidamente ao nosso redor. E a igreja se vê como uma perplexa espectadora cultural dessa mudança multicultural… Por que perplexa? Para falar a verdade, a maioria das congregações cristãs é homogênea e etnocêntrica […] A forma como a igreja de Jesus Cristo lida com a rapidez e a complexidade desse etos multicultural e pós-moderno dirá ao mundo se há motivos para que ele dê ouvidos à mensagem que proclamamos […] Não devemos buscar a diversidade racial ou cultural simplesmente por ser politicamente correta ou a última tendência teológica. Devemos fazê-lo porque é o evangelho.[5]


Intercultural Church: A Biblical Vision for the Age of Migration by Safwat Marzouk

Em seu livro Intercultural Church, Safwat Marzouk afirma: “Embora o multiculturalismo seja um grande passo para a aceitação das diferenças culturais e linguísticas, a preocupação é que as pessoas acabem formando ilhas dentro da mesma comunidade enquanto evitam um envolvimento profundo umas com as outras”.[6]

O desafio para que as igrejas canadenses experimentem a unidade do reino em meio à diversidade está na realidade ontológica e na política social do multiculturalismo canadense, que, ironicamente, é o que primeiro motiva os cristãos canadenses a serem hospitaleiros e acolhedores ao estrangeiro. Por meio do estudo da epistemologia do multiculturalismo, os valores do multiculturalismo canadense – acomodação, tolerância e coexistência – são contrários ao alcance de uma comunidade intercultural inspirada no reino. O leitor é convidado a refletir sobre os seguintes valores multiculturais:

  1. A acomodação é, funcionalmente, abrir ou compartilhar espaço com o estrangeiro sem criar um sentimento de pertencimento.
  2. A tolerância é o reconhecimento de valores, crenças ou práticas do outro sem verdadeira aceitação ou compreensão.
  3. A coexistência promove a ideia de igualdade à custa de uma comunhão genuína.

Esclareço que não estou tentando depreciar a política multicultural do Canadá, mas afirmo que ela está aquém do reino ideal que Deus tem para sua ecclesia, ou para os “chamados” (Mc 3.13). Os discípulos de Jesus foram chamados de Jerusalém não apenas para que testemunhassem as boas novas, mas também para que fossem as boas novas, ultrapassando barreiras étnicas, sociais e religiosas. De modo semelhante, como discípulos modernos de Jesus, nós também fomos chamados de nosso etnocentrismo para sermos representantes e embaixadores dele sacrificando nossas preferências homogêneas.[7] Assim, proponho como alternativas aos valores multiculturais de “acomodação, tolerância e coexistência” as práticas bíblicas de “envolvimento, empatia e comunhão” que formam a base para o discipulado intercultural.[8]

o discipulado intercultural também deve influenciar, segundo as Escrituras, a maneira como pensamos e nos sentimos a respeito da humanidade, a forma como cresce nossa empatia pelo outro e como nos reconciliamos uns com os outros como pessoas criadas à imagem de Deus.

A base bíblica para o discipulado intercultural

W. Jay Moon, em Intercultural Discipleship, descreve o discipulado intercultural como “o processo de transformação da cosmovisão por meio da qual os seguidores de Jesus concentram suas vidas no reino de Deus (Mt 6.33) e obedecem aos mandamentos de Cristo na cultura (Mt 28.19-20), utilizando gêneros culturalmente disponíveis. . . [como] símbolos, rituais, provérbios, histórias, dança, música e drama”.[9] O modelo de discipulado intercultural de Moon é incorporado em igrejas multiculturais através da exibição de bandeiras (símbolos), da dança durante a entrega do dízimo (rituais), das canções em diferentes idiomas (música) e do aprendizado sobre nossas diferentes culturas étnicas (histórias). Moon afirma que a congregação que incorpora o discipulado intercultural experimentará um crescimento espiritual exponencial em conhecimento bíblico, acuidade teológica, bem como disciplinas interiores e exteriores.

Essas apropriações culturais podem ampliar a consciência intercultural, mas talvez não moldem de fato a congregação para que seja o povo intercultural de Deus. Embora o modelo de Moon abra nossos olhos para outras formas de adoração e expressões de fé, o discipulado intercultural também deve influenciar, segundo as Escrituras, a maneira como pensamos e nos sentimos a respeito da humanidade, a forma como cresce nossa empatia pelo outro e como nos reconciliamos uns com os outros como pessoas criadas à imagem de Deus.

Uma revisão do Antigo e do Novo Testamento revela que o Deus dos israelitas estava profundamente envolvido com sua criação e com seu povo. No jardim, Deus se preocupa com o fato de Adão não ter uma companheira adequada, então cria uma para ele (Gn 2.18). Mais adiante, a narrativa do Êxodo descreve em detalhes a promessa de Deus a Abraão ao resgatar seus descendentes do Egito, protegê-los no deserto e fornecer-lhes sua própria terra. Na consagração dos sacerdotes, Deus proclama que habitará entre o povo de Israel e será seu Deus (Êx 29.45). O envolvimento de Deus não se limita apenas ao seu povo. Ele também ordena que os israelitas, seu povo escolhido, demonstrem respeito e amor ao estrangeiro e peregrino que vive entre eles (Lv 19.33). Essa ética da misericórdia contrasta com a norma de explorar ou tirar vantagem do estrangeiro e do peregrino. Além disso, o estrangeiro deve ter os mesmos direitos e liberdades que os habitantes da cultura hospedeira (Dt 17.9).

Além disso, João 4.1-42 resume a importância da empatia na construção da aceitação e, em última análise, da confiança. Jesus não segue um protocolo predeterminado, mas transpõe barreiras geográficas, de gênero e culturais para interagir intencionalmente com a mulher samaritana à beira do poço. Esse contato teria tornado Jesus impuro e exigia que ele passasse por rigorosos ritos de limpeza no templo que o tornariam “aceitável” novamente diante de Deus. A boa notícia dessa narrativa é que Jesus se concentrou na pessoa e não na circunstância e deu espaço para que ela fosse amada por Deus. Da mesma forma, a igreja deve se envolver com os estrangeiros e peregrinos em nosso meio, identificar-se com seus sentimentos de rejeição e criar para eles não apenas espaços de acolhimento, mas de pertencimento.

as igrejas que aspiram uma eclesiologia intercultural inspirada no reino também precisam livrar-se de suas abordagens etnoculturais à homilia e liturgia, ao tribalismo sistêmico e ao medo.

Por fim, para que exista uma comunhão genuína em um ministério intercultural, devemos atender ao mandamento de Jesus: “Se alguém quiser acompanhar-me, negue-se a si mesmo, tome diariamente a sua cruz e siga-me. Pois quem quiser salvar a sua vida a perderá; mas quem perder a vida por minha causa, este a salvará” (Lc 9.23-24). Celebrar a culinária, a língua e a cultura que compõem o mosaico do Canadá é maravilhoso, mas as igrejas que aspiram uma eclesiologia intercultural inspirada no reino também precisam livrar-se de suas abordagens etnoculturais à homilia e liturgia, ao tribalismo sistêmico e ao medo. Há um temor de que nossa herança étnica seja esquecida ou absorvida e, para proteger nossa identidade etnocultural, nos contentamos com a coexistência. Para Deus, contudo, a morte não é o fim, mas a oportunidade para que surja algo novo e melhor. Chega-se a um genuíno consenso entre os discípulos de Jesus quando, no diálogo, compartilhamos nossos medos e esperanças. Hoffsman Ospino sugere os seguintes fundamentos para o discipulado intercultural. Ele afirma: “Uma metodologia intercultural de educação cristã deve (1) afirmar a possibilidade de diálogo entre fé e cultura(s); (2) reconhecer que para nós esse diálogo ocorre e é significativamente moldado pelas demandas de um contexto culturalmente diverso; e (3) contemplar os fatores comunicativos interculturais que determinam a vitalidade e os resultados de tal diálogo”.[10]

A nova comunidade de Deus

Por meio de uma política de multiculturalismo, o governo, os hospitais, as escolas e as corporações do Canadá já assimilaram o mosaico canadense de diversidade étnica. No entanto, ao contrário dessas instituições, a comunhão multicultural dos discípulos de Cristo não serve apenas como uma ilustração de inclusão. É a representação e o testemunho vivo do povo de Deus que, em meio à diversidade, vive intencionalmente a unidade do reino em Jesus Cristo, evidenciada por nosso compromisso com “um só Senhor, uma só fé, um só batismo” (Ef 4.5). Assim, o discipulado intercultural no contexto multicultural canadense é alcançado quando passamos da acomodação ao envolvimento, da tolerância à empatia e da coexistência ao espírito comunitário. Como nova humanidade de Deus, somos chamados de nosso etnocentrismo como testemunhas do poder de Deus para redimir e restaurar relacionamentos rompidos com ele e uns com os outros em uma realidade multiétnica e multirreligiosa.[11]

Notas finais

  1. “Statement by the Prime Minister on the 50th anniversary of Canada’s multiculturalism policy”, última modificação em 8 de outubro, 2021, https://pm.gc.ca/en/news/statements/2021/10/08/statement-prime-minister-50th-anniversary-canadas-multiculturalism.
  2. “119 Years of Immigration in Canada 1900-2019”, última modificação em 14 de fevereiro, 2020, https://youtu.be/zgsgSEHvaQ0.
  3. Kathleen Harris, “Federal government plans to bring in more than 1.2M immigrants in next 3 years”, Canadian Broadcasting Corporation, acessado em 30 de outubro, 2020, https://www.cbc.ca/news/politics/mendicino-immigration-pandemic-refugees-1.5782642.
  4. Mark Naylor, “Setting an Intercultural Agenda for FEBBC/Y Churches”. Acesso em 2 de março, 2020. Disponível em: <https://nbseminary.ca/wp-content/uploads/file/Setting%20an%20intercultural%20agenda.pdf>. Naylor refere-se ao passo intencional na direção de “igrejas multiculturais” com base na visão escatológica de Apocalipse 5.9 e 7.9 com o intuito de tornar-se um microcosmo daquele grande evento na era presente,
  5. Sam Owusu, “What Colour is Your God?” apresentado no Symposium on Intentionally Multicultural Churches, ACTS Seminaries, Langley, BC (Junho 7, 2002), 3.
  6. Safwat Marzouk, Intercultural Church (Minneapolis: Fortress Press, 2019), Location 1552, Kindle Edition.
  7. 2Coríntios 5.20
  8. Nota da Editora: leia o artigo de Nestor Abdon, “Tornando-nos ‘celas de Cristo’ para os imigrantes: um modelo ministerial de hospitalidade da diáspora da igreja The Peoples Church em Toronto”, na edição de março/2022 da Análise Global de Lausanne, https://lausanne.org/pt-br/recursos-multimidia-pt-br/agl-pt-br/2022-03-pt-br/tornando-nos-celas-de-cristo-para-os-imigrantes.
  9. W. Jay Moon, Intercultural Discipleship, (Grand Rapids, MI: Baker Academic, 2017), 53.
  10. Hoffsman Ospino, “Foundations for an Intercultural Philosophy of Christian Education” em Religious Education, Vol. 104, Issue 3 (2009), 310-311.
  11. Nota da Editora: leia o artigo de Scott Moreau intitulado, “Tornando-se uma equipa multicultural saudável”, na edição de março/2019 da Análise Global de Lausanne, https://lausanne.org/pt-br/recursos-multimidia-pt-br/agl-pt-br/2019-03-pt-br/criar-uma-equipa-multicultural.

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Autoria (bio)

Sherman Lau

Sherman Lau atua como diretor de ministério intercultural no Pacific Life Bible College em Surrey, British Columbia, Canadá. Atualmente, ele cursa um doutorado em estudos interculturais no Western Seminary em Portland, Oregon. Seu objetivo vocacional é promover o desenvolvimento e a práxis do ministério intercultural no contexto multicultural canadense, discipular os seguidores de Jesus ao pensamento e à reflexão teológica, ao crescimento intercultural e à vida missionária com ousadia e graça.

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