Algo novo na história: um rio no deserto
Karl Jasper observou que, no século 5 a.C., as reflexões filosóficas de pensadores como Sócrates e Platão na Grécia, Shakyamuni na Índia e Confúcio e Laozi na China, bem como dos profetas hebreus, pareciam concordar que a vida não examinada não vale a pena ser vivida. Essa Era Axial significou o amadurecimento da civilização humana, à medida que a revolução agrária ajudava a construir cidades e impérios.
O cristianismo, que veio posteriormente com a encarnação de Cristo, transformou em uma religião vibrante uma antiga fé árida de judeus errantes no deserto. Durante mil anos, essa fé foi a religião dominante do Sacro Império Romano. Cristo foi a “coisa nova” profetizada em Isaías 43.19 que abre “um caminho no deserto e riachos no ermo” da fé.
A cristandade, no entanto, que se centralizou em Roma, passou a orgulhar-se das instituições religiosas palacianas e das poderosas estruturas clericais que mediavam o destino eterno das massas analfabetas. O que fizeram, na verdade, foi drenar a vida dos crentes, devolvendo-os ao exílio desértico. Vieram, então, Martinho Lutero e os Reformadores, determinados a libertar os crentes do cativeiro do institucionalismo e do legalismo imposto pela igreja para que bebessem livremente do “Rio da Vida” unicamente por meio da fé. A partir do século 15, a Europa ofereceu ao mundo outra onda de reflexão filosófica – do Iluminismo à Reforma Protestante – que contribuiu para moldar o mundo moderno.
O cristianismo pode ser uma religião dominante na Ásia?
O cristianismo, que passou a ser exportado para o restante do mundo, ascendeu como a religião globalmente dominante. O século 19 foi descrito como o “Grande Século” devido ao avanço da obra missionária cristã durante esse período, 1 consequência do otimismo diante da iminente possibilidade de que aquela geração presenciaria a evangelização de todo o mundo.2 Visões de novos campos missionários alimentadas por canhoneiras coloniais e navios a vapor comerciais levaram à parcerias missionárias e a sonhos de ocupação cristã amigável de terras estrangeiras na Ásia, África e América Latina.
Mas já havia indícios claros de que não seria assim. Os líderes locais desses antigos campos missionários perceberam rapidamente que o cristianismo estava em rápido declínio no Ocidente e que os missionários ocidentais expandiam seu comércio para novos mercados mesmo enquanto seus mercados internos secavam. O dinheiro era essencial para conquistar adeptos e os convertidos eram desprezados em sua própria terra como “cristãos por interesse [rice Christians]” ou “pequenos ocidentais”. Muitos estavam convencidos de que o cristianismo jamais se tornaria uma fé religiosa dominante em suas sociedades simplesmente por ser uma religião estrangeira e, na verdade, uma fé ocidental. A bagagem histórica da obra missionária cristã ocidental não ajudava muito, especialmente em culturas com sólida conscientização histórica.
O cristianismo global é reavaliado
Será que enquanto estamos aqui, em meio à rápida urbanização do século 21 e nos preparando o Quarto Congresso de Lausanne, temos um falso otimismo de que a evangelização do mundo em nossa geração é iminente? Ou estamos cientes de que o cristianismo, mais uma vez, foi reduzido a uma fé desértica apesar das multidões presentes nas megaigrejas urbanas? Os filhos de cristãos talvez sejam mais perspicazes e observem semelhanças entre a igreja de hoje e o segundo templo da época de Jesus. O alerta profético naquela ocasião era sobre o fim próximo daquele templo majestoso.
A fé da igreja do Mundo Majoritário não se tornará dominante nessas terras, a menos que se liberte dos formatos culturais ocidentais e assuma características locais próprias. Além de traduzir a linguagem usada na igreja para os idiomas locais, mantendo culturas e estruturas inalteradas, as igrejas nativas também devem desenvolver formatos cristãos
locais. A globalização do mundo e a ascensão do cristianismo global policêntrico com comunidades da diáspora são oportunidades para o desenvolvimento de novas expressões de fé.3 Podemos começar questionando o que significa ser humano e nos envolvendo ativamente nos discursos culturais e filosóficos locais.
Como consequência da pandemia da COVID-19, temos indagado sobre a natureza e o destino do homem, em reflexões antropológicas filosóficas que muito se assemelham àquelas da Era Axial. Que “coisa nova” pode surgir mais uma vez em nossa peregrinação pelo deserto que ajude a nos preparar para seguirmos em nossa jornada?
Sugiro que voltemos à pessoa do próprio Cristo, a “coisa nova” que surgiu na história. Em Cristo podemos avaliar como nos tornar a sua comunidade escatológica, missional e encarnacional. Conforme criamos coragem para enxergar o que ele espera que sua igreja seja, talvez possamos nos tornar, verdadeiramente, o “novo ser” em Cristo a caminho da “Cidade Celestial”.
A comunidade escatológica da esperança
Cristo veio na plenitude dos tempos e na história como o Deus-Homem encarnado. Sua vinda demonstrou que a história é a arena onde Deus ainda atua. Sua kenosis – Deus esvaziando-se para viver como um servo humilde, entregando sua vida como sacrifício humilhante na cruz – revela um novo protótipo para a vida humana. O apóstolo Paulo chama essa nova humanidade em Cristo de “nova criação”.
N.T. Wright chama a igreja de “projeto piloto para a nova criação”.4 Como discípulos de Cristo que são a nova criação, também nos tornamos a comunidade escatológica, nascida do Espírito Santo e imbuída da esperança de uma nova vida futura. A igreja é histórica, mas também escatológica. Tem fundamentos cristológicos, mas também é direcionada escatologicamente, como afirma o teólogo da esperança Jurgen Moltmann.5 A esperança do reino futuro de Deus pode propiciar ao mundo uma visão esperançosa de transformação na história que é mediada pela igreja.
A comunidade missional da fé
A igreja primitiva entendia seu papel de comunidade de fé ekklesia (assembleia “convocada”), que seria enviada ao mundo como mensageira do evangelho de Cristo. Como igreja perseguida, exigia que os discípulos tivessem fé para adorar e coragem para testemunhar.
Um dos principais fatores para o crescimento e propagação da igreja primitiva foi a conscientização pelos discípulos de que eles formavam uma comunidade não apenas escatológica, mas também missional. Eles entenderam o chamado que haviam recebido para ser uma igreja apostólica, os enviados (apostolos). Esse papel não se limitava aos apóstolos, mas envolvia todos os membros da igreja. Compreender o seu papel missional contribuiu para que a igreja primitiva se multiplicasse. Eles pregavam o evangelho onde quer que a perseguição os dispersasse. Pela fé, viram a cidade que não é construída por mãos humanas, aquela cujo arquiteto e construtor é Deus.
A igreja de Antioquia foi plantada por cristãos missionais, todos leigos. Os líderes da igreja também eram claramente multiétnicos e multiculturais. A iniciativa de plantar igrejas sob a liderança de leigos levou os líderes da igreja-mãe em Jerusalém a enviar Barnabé e, mais tarde, a convocar o concílio de Jerusalém, onde os líderes se encontraram com Paulo para decidir sobre as especificidades do cristianismo gentio.
Para que a igreja prospere no século 21, precisamos resgatar o ministério conduzido por leigos e equipar a igreja como um todo para participar da obra missionária de Deus (missio Dei), se é que há alguma esperança de que a igreja cumpra a Grande Comissão.6 Para isso, o atual sistema separado em dois níveis – clérigos-leigos, sagrado-secular – precisa ser desconstruído. A exaltação do obreiro em tempo integral, seja em funções clericais ou como missionário de carreira, deve ser desmistificada, e toda a igreja, como nação santa de Deus e sacerdócio universal dos crentes, deve ser capacitada para participar da missão, conforme a visão de Lutero. Se há esperança de que a igreja cumpra a missão de Cristo, devemos cumprir a tarefa inacabada dos Reformadores: libertar os cristãos para que de fato vivam em Cristo.
A comunidade encarnacional do amor
Os discípulos de Cristo são chamados para se tornar uma nova humanidade caracterizada pelo amor, imitando Cristo. Ele veio nos chamar para viver segundo um novo mandamento: Amar uns aos outros como ele nos amou. Esse chamado vai além dos grandes mandamentos de amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a nós mesmos. O amor é a marca registrada da igreja e, na verdade, da comunidade escatológica. Essa visão da Igreja como comunidade escatológica pode ajudar a redefinir seu formato atual, que tem múltiplas possibilidades de expressões de fé, libertando-a das formas estruturais ocidentais.
O elemento mais essencial da igreja no século 21 é a participação dos cristãos na vida da comunidade, indo além das quatro paredes da igreja. Mais uma vez, nossa inspiração pode vir da experiência do cristianismo primitivo que cresceu como uma igreja perseguida, sem edifícios religiosos. Ao impossibilitar o acesso e o uso das instalações da igreja, a recente pandemia tornou supérfluas suas construções. Os movimentos das igrejas em lares na China e os movimentos de plantação de novas igrejas na Europa têm proliferado sem investimento em campanhas de captação de recursos para a construção de edifícios. O uso criativo de espaço, especialmente em centros urbanos aos domingos, pode encorajar formas imaginativas e inovadoras de ser igreja.
Se a igreja quiser ser missional, como fiel adoradora e testemunha do evangelho, então ela deve ser encarnacional. Assim como Cristo, Deus encarnado que viveu entre nós, devemos nos humilhar e servir à nossa comunidade na vida prática cotidiana. Se nos despojarmos das caras estruturas e práticas culturais religiosas, talvez possamos investir mais em fazer o bem e desenvolver iniciativas beneficentes que contribuam diretamente para suprir as necessidades sociais e para o desenvolvimento cultural de nossa comunidade, como exorta Bruce Winter.7
Para os cristãos, ser “encarnacional” é envolver-se na sociedade civil e promover a coesão social como pacificadores, revelando simultaneamente a esperança do Reino em Cristo. Muitos jovens cristãos, por exemplo, atuam como facilitadores voluntários na Asian Journeys, uma organização social fundada na multiétnica e multirreligiosa Singapura, que oferece programas de capacitação para que os jovens vivam em comunidade e sejam mediadores em diferenças e conflitos étnicos e religiosos.
Conclusão
A história é a arena onde Deus atua e foi “no contexto da história que nasceu a nova escatologia criacional”.8 A igreja de Deus, aqueles que foram chamados, precisa ser enviada de forma missional para viver o evangelho de Cristo nas ruas; não apenas proclamá-lo, mas, como testemunhas desse evangelho, engajar-se na comunidade e servi-la. Isso é possível quando nos envolvemos de forma vocacional na cidade – no século 21, os desafios urbanos são grandes, mas as oportunidades também são imensas.9
Endnotes
- Kenneth Scott Latourette, History of the Expansion of Christianity v. 6: The Great Century in Northern Africa and Asia, 1800-1914 (England: Paternoster Press, New edition, 1971).
- John R Mott, The Evangelization of the World in this Generation (North America: Sagwan Press, 2018).
- See Scott W. Sunquist, The Unexpected Christian Century: The Reversal and Transformation of Global Christianity, 1900-2000 (Michigan: Baker Academic, 2015).
- N.T. Wright, History and Eschatology: Jesus and the Promise of Natural Theology (Texas: Baylor University Press, 2019), 260.
- Jurgen Moltmann, The Church in the Power of the Holy Spirit: A Contribution to Messianic Ecclesiology (Minnesota: Augsburg Fortress, 1993), 13.
- Nota de Editora: Veja o artigo intitulado “Uma visão radical de toda a igreja”, de Wonsuk Ma, em Análise Global de Lausanne, maio de 2023.
- Veja Bruce Winter, Seek the Welfare of the City: Christians as Benefactors and Citizens (Michigan: Wm. B. Eerdmans, 1996),especialmente sua discussão sobre as obrigações cívicas de ajudar as viúvas e os necessitados na sociedade e a participação na politeia.
- Wright, History and Eschatology, 227
- Nota da Editora: Veja o artigo intitulado “Uma visão holística da obra missionária em tempos de mudança”, de Sam Cho, Análise Global de Lausanne, julho de 2023.