Global Analysis

A Hora Da Etnodoxologia Chegou

Como O Engajamento De Artistas Locais Pode Expandir O Reino De Deus

Robin Harris jan 2014

RPH: Este termo – etnodoxologia – é novo para a maioria das pessoas. O que significa?

BES: Etnodoxologia é uma estrutura teológica e antropológica que orienta todas as culturas a adorarem a Deus usando suas próprias expressões artísticas. O termo deriva de duas palavras do grego bíblico: “etno” vem de ethne (povos) e “doxologia” vem de doxos (glória ou louvor).

RPH: Quanto tempo levou para que a etnodoxologia se tornasse uma abordagem missionária estratégica?

BES: Em 1993, a palavra etnodoxologia provavelmente nunca havia sido pronunciada neste planeta. Em 2003, entretanto, surgiu uma rede chamada Conselho Internacional de Etnodoxologia (ICE, na sigla em inglês). Em 2013, ICE já conectava centenas de indivíduos e dezenas de organizações, já tinha editado uma notável publicação de dois volumes com fundamentação acadêmica e prática para a nova disciplina, e foi pioneira na reorientação da educação e prática missionária.

O poder da etnodoxologia

RPH: Então por que uma comunicação artística local é tão eficiente para a expansão do Reino de Deus?

BES: A comunicação artística:

  • está arraigada na cultura e portanto afeta diversos aspectos importantes de uma sociedade;
  • identifica as mensagens como importantes, separando-as das atividades cotidianas;
  • envolve conhecimento obtido não apenas cognitivamente, mas também experimental e emocionalmente;
  • ajuda a lembrar mensagens;
  • aumenta o impacto da mensagem através de múltiplos meios, que frequentemente incluem o corpo todo;
  • concentra as informações contidas na mensagem;
  • promove solidariedade nos artistas;
  • oferece uma estrutura socialmente aceitável para expressar ideias difíceis ou novas; e
  • inspira e leva as pessoas à ação, podendo agir como um forte indicador de identidade;

Talvez o mais importante é que a comunicação artística local é geralmente criada no local e pertencente a este. Não há necessidade de traduzir materiais estrangeiros, e os artistas da comunidade são capacitados para contribuir na expansão do Reino de Deus.

RPH: De que maneiras a igreja tem tradicionalmente envolvido as artes no ministério transcultural, e como a etnodoxologia se relaciona com estas abordagens?

BES: À minha mente vem pelo menos três abordagens amplas em relação às artes:

  • Alguns obreiros transculturais abordam a arte com uma estrutura de traga – ensine, ensinando suas próprias artes para as pessoas de outras comunidades. Isto pode levar à unidade entre cristãos de diversas comunidades, mas exclui as artes e os artistas locais.
  • Em outra estrutura chamada Construir novas pontes, os artistas de uma determinada comunidade buscam meios de conectar-se artisticamente com membros de outra comunidade. Esta abordagem resulta num esforço artístico mútuo, frequentemente como resposta a eventos traumáticos.
  • Em uma terceira abordagem, os promotores da arte adotam o posicionamento descubra – encoraje, aprendendo a conhecer artistas locais e suas artes de modo a estimulá-los a criar com as formas que eles conhecem melhor. O promotor adentra o processo criativo local, ajudando na produção de novas criações que fluem de forma orgânica a partir da comunidade. Esta abordagem geralmente requer relacionamentos de longo prazo com o povo e, acima de tudo, um compromisso com o aprendizado.

A etnodoxologia procede dessa terceira abordagem: descubra – encoraje. Embora a abordagem não seja nova – Patrício e outros missionários entre os celtas valorizaram as artes locais no século V – a etnodoxologia moldou sua forma atual como resposta às recentes influências missiológicas e acadêmicas.

O processo da etnodoxologia

RPH: Qual é o procedimento básico para colocar a etnodoxologia em prática numa comunidade?

BES: Esta abordagem inclui basicamente cinco passos: [1]

  1. Conhecer a comunidade e suas artes.
  2. Identificar meios pelos quais gêneros artísticos específicos podem ir ao encontro de alvos do Reino na comunidade.
  3. Despertar a criatividade de artistas locais nesses gêneros.
  4. Encorajar os membros da comunidade a melhorarem suas novas criações artísticas.
  5. Integrar e celebrar as novas obras de arte e planejar para que haja continuidade na produção.

Em resumo, o nosso trabalho é conhecer as pessoas e encorajá-las a produzirem obras de arte em contextos que fortaleçam e espalhem o Reino de formas sustentáveis.

RPH: Quais os contextos em que a abordagem da etnodoxologia contribui para um impacto maior do Reino de Deus?

BES: Nós a temos visto aumentar a eficácia dos esforços de plantação de igrejas, desenvolvendo expressões de adoração em comunidade saudáveis e multiculturais, discipulado e formação espiritual, evangelismo e viagens missionárias de curto período, e auxiliando as pessoas a responderem à injustiça e ao trauma.

Estudo de caso da África Central

RPH: Que tipo de impacto dessa abordagem você viu quando trabalhou na África Central?

BES: Na década de 1940, um evangelista congolês plantou a primeira igreja entre falantes de mono, onde hoje é a República Democrática do Congo (RDC). Ele aconselhou os primeiros cristãos a queimarem seus instrumentos musicais e a aprenderem a cantar hinos euro-americanos traduzidos para uma língua comercial – lingala. Quando minha família e eu nos mudamos para aquela comunidade a fim de ajudar na tradução da Bíblia para a língua mono no início dos anos 90, encontramos uma igreja que, embora ativa, usava língua e expressões artísticas estrangeiras em sua adoração e tinha uma reputação moral confusa.

Junto aos líderes da igreja, eu explorei possibilidades de integrar os antigos estilos de canções à vida dos cristãos, e eles eventualmente decidiram formar os Chorales Ayo, ou Corais do Amor. Estes grupos compuseram canções baseadas nas Escrituras, com letras na língua mono, e em seu estilo tradicional de canção usando a harpa local. Após anos de dificuldades (que incluíram uma guerra civil), esses grupos espalharam e agora florescem em muitas aldeias mono. Em 2012, o pastor mono Gaspard Yalemoto relatou o seguinte:

“No passado, os instrumentos tradicionais mono eram apenas utilizados para adorar os deuses dos nossos ancestrais. Entretanto, em 1992, Brian veio morar na minha aldeia e aprendeu a tocar as canções tradicionais mono no kundi – a harpa local. Eventualmente, um pequeno grupo juntou-se a ele e começaram a compor canções bíblicas. Hoje, em todas as igrejas mono, vemos uma mudança radical na maneira como os cristãos vivem, porque a mensagem de Deus comunicada através das músicas do kundi toca diretamente seus corações. Muitos mostram com as suas ações que o Espírito tem usado isso para trazê-los de volta ao pé da cruz de Jesus Cristo.”

Implicações

RPH: Se nós, a igreja, adotarmos a mesma abordagem que você usou na RDC, o que você acha que aconteceria?

BES: Se a etnodoxologia se tornar a abordagem principal para o desenvolvimento na missão e adoração:

  • Artistas de comunidades minoritárias e suas formas de arte serão bem integrados no dia a dia das igrejas de sua comunidade.
  • As igrejas se tornarão um motor para a revitalização das artes minoritárias e suas comunidades, em vez de de contribuírem para o seu desaparecimento.
  • O compartilhamento de recursos artísticos na igreja acontecerá a partir de culturas minoritárias em direção às majoritárias e também vice-versa.
  • Mais formas artísticas estarão representadas diante do trono de Deus (Ap. 7.9-12) e em sua cidade (Ap. 21.22-27).

RPH: E se nós não usarmos essa abordagem?

BES: Se a etnodoxologia der um último suspiro e morrer:

  • A adoração protestante e evangélica vai se tornar cada vez mais parecida com o catolicismo pré-Vaticano II: expressões essencialmente uniformes de adoração corporativa e individual. Isso aumenta a sensação de unidade da igreja ao redor do mundo, enquanto diminui o seu reflexo da criatividade de Deus.
  • A maior parte dos artistas de tradições antigas e minoritárias permanecerão fora da igreja, continuando a cair num desaparecimento inevitável. Este desaparecimento é causado pela globalização, urbanização, atividades missionárias mal orientadas e outros fatores que fortalecem as artes majoritárias e sufocam as das comunidades minoritárias.

Sugestões de resposta

RPH: Um futuro como esse parece frio! Entretanto, existe um crescente número de recursos que ajudam a integrar a etnodoxologia às igrejas e organizações. Qual é a melhor maneira para as pessoas terem acesso a esses recursos?

BES: Sim, excelentes ferramentas têm sido desenvolvidas nos últimos dez anos. Por exemplo, você pode:

  • Se associar ao ICE, a crescente rede de profissionais engajados com etnodoxologia, aprendendo e contribuindo para o conhecimento que ela produz.
  • Encorajar ou exigir promotores de arte em potencial para serem certificados pelo ICE. Você pode confiar neste bem elaborado processo de certificação para conduzir e motivar as pessoas a adquirirem a competência necessária para o trabalho de arte-em-missões.
  • Participar do curso Artes para o Reino, com duração de uma semana, para catalisar seu plano estratégico para integrar a etnodoxologia nas atividades da sua organização.
  • Ler “Worship and Mission for the Global Church: An Ethnodoxology Handbook” [“Adoração e missão para a igreja global: um caderno de etnodoxologia”, ainda não disponível em português] e “Criação conjunta de artes locais: um manual para alcançar os alvos do Reino[2] (www.ethnodoxologyhandbook.com) e então implementar o conteúdo desses livros em seus programas de treinamento.
  • Recrutar especialistas em artes para a sua organização, enviando-os para treinamento no Graduate Institute of Applied Linguistics (Dallas), Payap University (Tailândia), Fuller Seminary, Liberty University, ou outra instituição de educação. [No Brasil, esse treinamento é oferecido anualmente na Associação Linguística Evangélica Missionária (Brasília)].
  • Enviar pessoas para o evento trienal Consulta Global de Música e Missões (GCoMM, sigla em inglês).

RPH: Como você resumiria a sua avaliação sobre e visão para a igreja em relação às artes?

BES: A realidade que vejo hoje é que as pessoas se comunicam em quase 7 mil línguas em todo o mundo, não apenas por palavras faladas, mas também por canções artisticamente apresentadas, teatro, dança e narrativas. Essas comunidades tem um relacionamento imperfeito ou até inexistente com Deus e lutam contra a violência, enfermidades, revoltas sociais, raiva, promiscuidade sexual, ansiedade e medo – assim como a nossa própria sociedade.

Deus deu para cada cultura dons singulares de comunicação artística para mostrar a verdade e trazer cura, esperança e alegria em resposta a esses problemas. No entanto, muitos desses dons estão adormecidos, mal-usados ou morrendo. Se pudermos ajudar nossos irmãos e irmãs – e até a nós mesmos – a levar uma vida nova e redimida a essas tradições artísticas, todas as culturas vão eventualmente usar todos os seus dons para adorar, obedecer e alegrar-se em Deus com todo o seu coração, alma, força e mente. Isso não vai acontecer em sua totalidade aqui nesta terra, mas podemos nos juntar à obra de Deus em direção à nova terra.

Notas do Tradutor

  1. Hoje este método de pesquisa denomina-se Criação Conjunta de Artes Locais (CLAT, na sigla em inglês) e foi amadurecido desde a data de publicação deste texto. Agora ele contém sete passos: 1) Conhecer a comunidade e suas artes; 2) Escolher alvos do reino; 3) Conectar alvos com gêneros; 4) Analisar gêneros e eventos; 5) Despertar a criatividade; 6) Aperfeiçoar os resultados; 7) Celebrar e integrar.
  2. Este material será publicado em breve em português. Atualmente ele é oferecido para os participantes do curso Artes para o Reino, oferecido pela ALEM em Brasília.

Autoria (bio)

Robin Harris

Dr. Robin Harris possui Mestrados em Estudos Interculturais e Etnomusicologia, além de um Doutorado em Música/Etnomusicologia. Ela atuou por décadas em contextos interculturais, incluindo 10 anos na Rússia, e agora realiza palestras em faculdades e conferências sobre temas como etnodoxologia e etnomusicologia. As publicações dela incluem a coedição de Adoração e Missão para a Igreja Global: Um Manual de Etnodoxologia (Biblioteca William Carey, 2013) e a Narração de Histórias na Sibéria: O Épico Olonkho em um Mundo em Transformação (University of Illinois Press, 2017). Atualmente, ela ocupa o cargo de Diretora do Centro de Excelência em Artes Mundiais na Universidade Internacional de Dallas (anteriormente GIAL) e atua como Consultora de Artes para a SIL Int’l.

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