A crise da igreja global
A violência produzida por duradouros conflitos intergrupais em diversos países como Israel-Palestina, Iêmen, Nigéria, Hong Kong, Irlanda do Norte, Síria, Mianmar e Estados Unidos é um dos indicadores de que a comunidade cristã internacional não está assumindo a responsabilidade de promover a reconciliação. Isso não significa que os cristãos sejam os principais responsáveis pelos conflitos ao redor do mundo, mas sim que não fazemos o suficiente e, muitas vezes, acabamos agravando esses conflitos. Nos últimos anos, alguns cristãos perderam sua credibilidade e autoridade espiritual para atuarem como reconciliadores. Muitos cristãos desempenham um papel importante neste mundo cada vez mais polarizado, seja na política dos Estados Unidos ou do Reino Unido, na crise de refugiados nos países da UE e, claro, no conflito israelense-palestino.
Como cristão palestino, considero surpreendente e desanimador observar os comportamentos militantes e odiosos de alguns cristãos no Ocidente: o racismo contra pessoas de cor, a promoção da islamofobia e a opressão de mulheres. Muitas vezes, Jesus é apresentado de forma individual e limitada na categoria de amigo e companheiro, mas é posto de lado quando o assunto são os poderes estruturais em nossas esferas de vida política, econômica e social. Na verdade, se sequer forem mencionados, o amor pelo inimigo, a reconciliação e a justiça parecem ser deixados de lado. Frequentemente me pergunto: como é possível compartilhar sobre um Deus amoroso quando não há reconciliação entre os cristãos? Ou, em meu contexto específico, por que muitos cristãos não conseguem demonstrar justiça e compaixão no conflito Israel-Palestina?
O envolvimento positivo nos conflitos
O conflito é uma parte inexorável da vida, da qual não conseguimos escapar. Segundo o teólogo David Augsburger: “O conflito é essencial, inextirpável e inevitável na vida humana”.[1] Embora possa ser doloroso e potencialmente catastrófico, o conflito não deve ser evitado. Pelo contrário, deve ser enfrentado de forma adequada e produtiva. Todo conflito tem um latente potencial para o desastre, mas a oportunidade de progresso e mudança positiva é determinada pela maneira como lidamos com tais situações.
O contexto israelense-palestino é conhecido como um conflito insolúvel.[2] Isso significa que ele se estende por um longo período e parece impossível de ser resolvido. Devido aos dois grupos concorrentes, o conflito assume características particulares tais como: a disputa por recursos, a adoção de uma mentalidade de soma zero [ganha-perde], a convivência em estreita proximidade e as narrativas históricas concorrentes.[3] Naturalmente, quando lhes são negadas suas necessidades humanas básicas tangíveis e intangíveis, as pessoas se tornam violentas.
No caso do complexo conflito em Israel-Palestina, a incapacidade de impactá-lo de forma positiva está relacionada a aspectos exclusivistas e discriminatórios da teologia sionista cristã. Segundo essa teologia, a narrativa histórica do conflito e os eventos políticos atuais são compreendidos por meio de profecias do Antigo Testamento. Qualquer tentativa de questionar ou desafiar essas crenças pode ser dolorosa e costuma encontrar forte resistência. Enquanto esses cristãos perpetuam o conflito por meio de ideologias e políticas violentas, outros cristãos não extremistas também deixam de fazer parte da solução. O entendimento limitado a respeito de missões e evangelismo obscurece e oculta a fundamental mensagem bíblica de reconciliação. A ênfase na necessidade de salvar almas para a vida após a morte não consegue resolver o conflito atual entre os grupos concorrentes e, em última análise, trazer o reino de Deus à terra.
O evangelho da reconciliação
É importante destacar esse fenômeno por uma variedade de razões. Em primeiro lugar, ele prejudica a mensagem do evangelho e impede que cristãos palestinos locais construam relacionamentos de confiança com os vizinhos muçulmanos e judeus. Isso ocorre porque alguns cristãos muitas vezes apoiam posições violentas e têm pontos de vista islamofóbicos e antissemitas. Em segundo lugar, a falta de ação dos cristãos se torna um obstáculo para a reconciliação e para a paz, especialmente se o seu poder e sua influência são significativos. Na melhor das hipóteses, essa atitude ignora a raiz do conflito e o clamor contra as injustiças e, na pior delas, permite que o conflito israelense-palestino persista e se perpetue. Por fim, a reconciliação e o amor ao inimigo são o mandato do evangelho, a marca universal da vocação cristã. A nova comunidade de pessoas que se submetem a Jesus como Rei deve se tornar uma comunidade transformadora que aborda e administra os conflitos de forma diferente.
O futuro do conflito é responsabilidade de todos
À medida que os cristãos se envolvem no conflito israelense-palestino, dois resultados imediatos despontam no horizonte. Se a reconciliação não for um tema central na vocação cristã, podemos esperar mais guerras, violência e destruição tanto das comunidades quanto da natureza. O ano de 2021 foi um lembrete contundente de que o conflito precisa de atenção urgente. Não se deixe enganar pelo cessar-fogo. Os ingredientes para outro ciclo de violência estão sempre presentes. É apenas uma questão de tempo. Por outro lado, colocar a reconciliação como um tema central da nossa missão pode trazer cura aos feridos e traumatizados, justiça aos oprimidos e esperança aos temerosos.
Apesar de tudo, o estabelecimento do reino de Deus não depende dos próprios cristãos. Podemos fielmente nos unir a Deus e participar do reino inaugurado que está sendo estabelecido desde a ressurreição. Um dos temas centrais da Bíblia é o envolvimento de Deus na história, revelando-se de maneiras inesperadas. Não podemos nos esquecer de como o símbolo da cruz mudou de seu significado original de punição por meio da morte para simbolizar a vida por meio da ressurreição. É o sucesso final através do fracasso total. E as pessoas mais inesperadas são convidadas a participar da intervenção de Deus na história.
O processo de reconciliação
Uma iniciativa cristã em relação ao conflito Israel-Palestina que entendeu a necessidade de reconciliação é a organização Musalaha (“reconciliação”, em árabe). A Musalaha foi fundada em 1990 em resposta à Primeira Intifada[4] e, nos últimos trinta anos, lidando com sucessos e fracassos, desenvolveu a teologia e o modelo singulares de reconciliação de seis estágios.[5]
Modelo: Seis Estágios de Reconciliação
Como é possível ver na imagem, o modelo começa com o estágio 1: Relacionamentos iniciais. Nesse estágio inicial, os pontos em comum e os valores e crenças partilhados são enfatizados. Esse processo costuma acontecer no deserto, onde as pessoas podem se desconectar de seus conflitos diários. Além disso, o ambiente hostil e neutro do deserto aproxima as pessoas. O sucesso do modelo depende de quatro ingredientes principais: (1) criação de status igualitário no grupo e na liderança, (2) partilhamento de objetivos comuns, (3) minimização da competição e (4) apoio de autoridades ao processo.
No estágio 2: Abertura, a Musalaha oferece outras oportunidades para workshops, seminários, viagens e atividades de acompanhamento. Durante esse estágio, as pessoas se sentem mais à vontade para compartilhar e expressar suas diferenças. Geralmente, o lado palestino descarrega suas queixas e oprime os israelenses com suas histórias e opiniões políticas. Os palestinos tendem a ser mais ansiosos para discutir a ocupação, enquanto os israelenses geralmente preferem se concentrar na construção de relacionamentos. No estágio 3: Confronto com o desafio, há um período de retrocesso ou desistência dos participantes. A razão para o recuo é uma reação humana às questões levantadas durante o estágio 2, quando os participantes foram desafiados em relação à sua identidade ou à sua percepção do conflito. O recuo faz parte do processo; não se deve desanimar, mas esperar sentimentos negativos em determinados momentos. No estágio 4: Resgate da identidade, o objetivo não é evitar a dor e o desconforto, mas reservar um tempo para a autorreflexão e a renegociação da identidade e dos relacionamentos.
No estágio 5: Compromisso e retorno, os participantes decidem se prosseguem na jornada de reconciliação ou se abandonam completamente o processo. A Musalaha identifica este como o ponto central da reconciliação. Aqueles que não retornam geralmente se refugiam nas próprias comunidades, posições políticas e intolerância. Os participantes que avançam começam a reconhecer as deficiências de seu próprio povo e sua responsabilidade na ruptura de relacionamentos e na violência. A confiança é restaurada durante este estágio e seguir em frente torna-se um processo natural e menos doloroso. No estágio 6: Próximos passos, a Musalaha enfatiza o trabalho em conjunto. Isso normalmente significa lidar com as injustiças, corrigir erros, confessar e perdoar e sentir uma sensação de libertação.
Passos práticos adiante
É urgente que os cristãos em todo o mundo priorizem a reconciliação. A reconciliação deve se tornar um componente central do discipulado. Independentemente da origem, há várias iniciativas práticas que todos podem tomar:
Exercitar a autorreflexão: reavaliar a base de nossa identidade; reconhecer e desconstruir qualquer cosmovisão e teologia racista ou preconceituosa que possamos ter.
Questionar a autoridade: ponderar as informações e a ideologia pronta e acabada apresentadas pelos líderes da igreja. O apoio cego a qualquer estado ou ideologia é perigoso. Indivíduos que desencorajam o questionamento da teologia e da política muitas vezes estão tentando controlar e manipular as pessoas.
Construir relacionamentos: buscar relacionar-se com pessoas que divergem de nós na forma de pensar e que não estão em nosso círculo imediato.
Argumentar: rejeitar e expressar-se contra movimentos supremacistas, nacionalistas e etnocêntricos.
Envolver-se: unir-se a organizações que promovam a paz, a justiça e a reconciliação, como Musalaha, Holy Land Trust, Search for Common Ground e outras.
Finalmente, a igreja global pode redefinir seu envolvimento com os conflitos e assumir um papel de liderança no mandato da reconciliação. O arrependimento autêntico oferece renovação e restauração.[6]
Notas finais
- David Augsburger, Conflict Mediation Across Cultures: Pathways and Patterns (Louisville: Westminster/John Knox Press, 1992), 5.
- Rafi Nets-Zehngut and Daniel Bar-Tal, ‘The Intractable Israeli-Palestinian Conflict and Possible Pathways to Peace,’ in Beyond Bullets and Bombs: Grassroots Peacebuilding between Israelis and Palestinians, ed. Judy Kuriansky (Westport: Praeger Publishers, 2007), 3-4.
- Heidi Burgess and Guy Burgess, ‘Intractability and the frontier of the field,’ Conflict Resolution Quarterly 24.2 (2006): 177-86.
- A Segunda Intifada foi um dos dois levantes populares de palestinos na Cisjordânia e em Gaza com o objetivo de encerrar a ocupação de Israel nesses territórios e criar um estado palestino independente. Começou em setembro de 2000 e terminou no final de 2005. Mais de 4.300 mortes foram registradas, e a proporção de mortes de palestinos por israelenses foi um pouco superior a 3 para 1.
- Phil Rawlings, ‘Six Years of Research Using Musalahas’s Stages of Reconciliation in the UK Context,’ 28 May 2020, https://musalaha.org/six-years-of-research-using-musalahas-stages-of-reconciliation-in-the-uk-context/.
- Nota da Editora: Leia o artigo de Matthew Kaemingk, “Amando nossos vizinhos muçulmanos”, na edição de março/2018 da Análise Global de Lausanne, https://lausanne.org/pt-br/recursos-multimidia-pt-br/agl-pt-br/2018-05-pt-br/amando-nossos-vizinhos-muculmanos