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“O mundo nunca mais será o mesmo!” Foi o que disseram no início da pandemia da COVID-19. Um artigo popular escrito em 2020 alertou que não se tratava de uma “nevasca”, nem mesmo um ‘”inverno”, mas uma “breve era do gelo”, com grandes implicações de longo prazo.1 A Operation World também publicou um relatório prevendo um impacto preocupante da pandemia da COVID na obra missionária global.2 O relatório previa mudanças significativas no contexto sociocultural, no testemunho cristão, na vida da igreja, no envio e mobilização de missões e na mídia cristã.

Operation World antecipou significativas no contexto sociocultural, no testemunho cristão, na vida da igreja, no envio e mobilização de missões e na mídia cristã.

Em todas essas áreas, certamente experimentamos “nevascas” e talvez “invernos”, mas e a tal “era do gelo” em longo prazo? Levando-se em conta que a COVID ainda está ativa, seria prematuro dar uma resposta definitiva, mas me pergunto se uma experiência de “deserto” não a caracterizaria melhor. Vamos refletir sobre as tendências atuais e o que aprendemos com a experiência.

Vidas perdidas

Primeiramente, devemos reconhecer a trágica perda de vidas que afetou famílias, organizações missionárias e seus parceiros. Seminários bíblicos perderam membros do corpo docente, igrejas perderam pastores e organizações missionárias perderam funcionários. Essas perdas têm um impacto de longo prazo no ministério e talvez sejam necessários alguns anos até que as organizações se recuperem. No entanto, não se concretizou o temor de que comunidades inteiras em lugares remotos seriam eliminadas por não contarem com assistência médica. Muitas pessoas morreram — e cada perda é trágica — mas não na proporção prevista.3

Crise econômica

De fato, a pandemia teve um impacto significativo nas finanças de indivíduos, empresas e países. Os exemplos mais trágicos vieram de países onde muitos trabalhadores informais perderam sua fonte de renda. Nos países mais ricos, os segmentos já desfavorecidos da sociedade foram os mais afetados, mas mesmo as grandes empresas enfrentaram perdas relevantes. Graças à resiliência dos empresários no Oriente e aos programas governamentais especiais no Ocidente, o número de falência de empresas foi muito menor do que o esperado e muitas economias recuperam-se lentamente.

Embora organizações missionárias e igrejas tenham observado uma leve queda nas doações, os maiores impasses financeiros estão relacionados à inflação. De forma geral, a maioria das organizações continua recebendo doações suficientes para dar continuidade a seus ministérios.4

Os ministérios que atuam entre os pobres sofreram grandes reveses.

Obstáculos e progressos

Os ministérios que atuam entre os pobres sofreram grandes reveses. A assistência médica diminuiu; as crianças foram privadas do ensino escolar por vários anos e talvez nunca mais retornem às aulas; houve aumento da desnutrição. Prevê-se em todo o mundo um acréscimo de 75 a 95 milhões de pessoas entre os que vivem em extrema pobreza, em comparação com as projeções pré-pandêmicas.5 Além disso, as agências de assistência e desenvolvimento perderam funcionários valiosos, pois projetos foram interrompidos e os recursos destinados a eles foram suspensos.

Um efeito positivo da pandemia é o fato de ter proporcionado mais elementos para um desenvolvimento mais verde, holístico e sustentável. O cuidado com a saúde e com o meio ambiente ganhou mais importância, e os programas tendem a ser mais colaborativos e holísticos do que antes. Por outro lado, o retrocesso causado pela pandemia levará anos para ser resolvido.

Saúde mental

A pandemia teve um impacto negativo na saúde mental de muitas pessoas. A experiência de contrair e sofrer com o próprio vírus, o medo dessa doença desconhecida, o isolamento em casa, a falta de contato interpessoal, a imprevisibilidade das regras e a incerteza quanto ao futuro contribuíram para um surto de depressão, esgotamento e outros desafios à saúde mental. Milhões ainda sofrem de fadiga e outros sintomas debilitantes agrupados sob o rótulo de “COVID longa”.6

Para muitos missionários foi difícil deixar o país onde serviam sem saber quando poderiam retornar. Um sentimento de culpa se mesclou ao questionamento de sua vocação e de sua própria utilidade na missão de Deus. Para os obreiros que puderam ficar, o desafio era continuar seu ministério e encontrar maneiras de relaxar e socializar. Essas tensões crescentes resultaram em desafios físicos e mentais de longo prazo para alguns missionários, e ainda afetam sua atuação hoje.

Mudanças na equipe

a COVID diminuiu o envolvimento dos expatriados nos programas, aumentando assim o envolvimento local.

A pandemia confinou em seus países de origem muitos expatriados de organizações internacionais. Mesmo os obreiros transculturais em locais como a Indonésia enfrentaram desafios para cruzar as fronteiras entre províncias, e o acesso às comunidades rurais era limitado. Em muitos casos, essas restrições na locomoção levaram ao desânimo e causaram grandes contratempos; por outro lado, possibilitaram maior envolvimento e liderança da equipe local.

Hoje, os ministérios pioneiros constatam o retorno da maioria de seus obreiros expatriados ao país ao qual foram enviados. Outros tipos de ministério, contudo, relatam um declínio da presença de expatriados. Durante a pandemia da COVID, enquanto estava em seu país de origem, um número significativo da equipe foi desviado para o ministério local. Outros aprenderam a dar continuidade ao seu ministério de expatriados mesmo trabalhando de seu país de origem. De modo geral, a COVID diminuiu o envolvimento dos expatriados nos programas, aumentando assim o envolvimento local.

Dinâmica de trabalho

Trabalhar em casa tornou-se a nova e permanente norma. A conexão via Internet e as ferramentas colaborativas on-line evoluíram rapidamente. Ao mesmo tempo, enquanto as famílias lutavam para conciliar educação, cuidados com a família e trabalho em casa, os que tinham conexão limitada ficavam ainda mais para trás.

Por outro lado, muitos missionários que já trabalhavam em casa deram as boas-vindas à melhoria na velocidade da conexão via internet e às ferramentas colaborativas: o recém-nomeado CEO de uma organização missionária internacional conseguiu formar uma equipe diversificada com membros espalhados por todo o mundo; um departamento de captação de recursos aprendeu a se conectar de forma on-line com um grupo muito mais amplo de apoiadores; e uma conferência sobre a mídia e a Bíblia desenvolveu uma plataforma on-line para que missionários que não tinham condições de estar presencialmente pudessem participar virtualmente. O trabalho on-line, mesmo com suas desvantagens, tornou-se algo bem consolidado no mundo missionário.

Hábitos de viagem

No mundo missionário, observamos hoje um processo de recuperação.

Com o fechamento das fronteiras, a pandemia da COVID paralisou as viagens internacionais e domésticas. Sua influência positiva no meio ambiente foi perceptível e incentivou o debate sobre o impacto do ser humano em nosso mundo. As pessoas que costumavam viajar [a trabalho] com frequência perceberam uma melhoria em seu estilo de vida e bem-estar. Quando as viagens foram retomadas, os preços estavam elevados e as regras e regulamentos para os vistos bastante complicados. É possível, contudo, que as viagens em breve voltem aos níveis pré-COVID.7

No mundo missionário, observamos hoje um processo de recuperação. Muitas equipes e redes internacionais se alegram com a possibilidade de voltar a se encontrar pessoalmente. No entanto, diante da maior dificuldade que colegas de certos países enfrentam para obter vistos, e levando-se em conta que a reunião on-line tem um custo significativamente mais baixo e é menos prejudicial ao meio ambiente, é possível que os líderes de organizações missionárias não queiram retornar à frequência de viagens realizadas antes da pandemia que, para a maioria deles, era excessiva. Resta saber se o hábito de viajar menos será de fato estabelecido.

A maior implicação de longo prazo

Alguns chamam a pandemia de “grande equalizador”. Outros contestam esse epíteto quando avaliam a forma desigual como pessoas de diferentes raças e faixas de renda foram afetadas. A pandemia, anda assim, desafiou a disseminada visão de mundo de que desastres só acontecem em países em desenvolvimento. A Itália foi tão atingida quanto a Índia, e a América do Norte teve uma taxa de mortalidade mais alta do que muitos países da África. O fato de tanto ricos quanto pobres precisarem se submeter às diretrizes do governo foi um choque para muitos. A COVID desfez o mito de que tudo pode ser controlado pelo dinheiro e pela administração ocidental, uma verdade já conhecida pelo Sul Global.8

No movimento missionário, a COVID acelerou as discussões sobre o domínio ocidental. Os programas que ainda operavam com a mentalidade “do Ocidente para o resto do mundo” viram seu impacto significativamente reduzido, enquanto os programas que adotaram um modelo “de todos os lugares para todos os lugares” se mantiveram e cresceram com a liderança de obreiros locais. Embora ainda seja difícil provar, há uma grande probabilidade de que a pandemia tenha tornado mais real do que nunca o que Jay Matenga chama de “centralizar o que é local”.9

Passos práticos para lidar com as implicações de longo prazo da COVID

Muitas vezes, Deus promove crescimento através de tempos difíceis. Veja aqui algumas formas pelas quais podemos refletir de forma produtiva sobre nossas experiências com a COVID:

Reconheça a dor: reserve um tempo para lamentar as perdas – as pessoas que morreram ou que ainda estão sofrendo, as portas que se fecharam e os contratempos no ministério.

Mantenha o foco: celebre uma maior “centralização local”. Ratifique e continue a apoiar o aumento das iniciativas locais, e as igrejas nacionais, os parceiros e colegas que estão assumindo a liderança.

Prepare-se para o pior: especialistas alertam sobre a probabilidade de uma recessão econômica mundial e a possibilidade de haver outra pandemia.10 Torne seu ministério menos dependente de pessoas e financiamento do exterior.

Tire proveito da tecnologia: as ferramentas on-line permitem diversificar as equipes e convidar uma ampla diversidade de participantes para as reuniões. Use a tecnologia para tornar seu ministério mais inclusivo.

Cuide da criação: conscientize sua equipe a respeito do impacto de nossas ações (hábitos de viagem, por exemplo) no meio ambiente e nas comunidades às quais servimos; promova mudanças de hábitos e práticas.

Seja sensível às necessidades de saúde: apoie as pessoas que enfrentam problemas de saúde mental e sofrem com a COVID longa.

Planeje de forma cíclica: a maioria dos planos das organizações é linear (do atual para o seguinte), mas deveriam ser cíclicos (preparados para altos e baixos), com capacidade para que objetivos de médio prazo sejam revisados regularmente a fim de serem resilientes ao risco.

Elogie: além de reservar tempo para lamentar, também é bom contar as bênçãos. Muitos ministérios conseguiram continuar descobrindo novas maneiras de trabalhar de forma eficaz, permitindo que a equipe local assumisse mais responsabilidade.

Lições do deserto

Não desperdicemos esse valioso tempo no deserto e peçamos ao Senhor que nos guie.

Em vez de pensar no período COVID como uma breve era do gelo ou uma nevasca, pense nele como um deserto. Quando os israelitas estavam cruzando o Jordão para entrar em Canaã, após sua provação no deserto, Josué ordenou que erguessem um memorial com pedras para marcar o que havia acontecido e o que haviam aprendido.

Podemos escolher limitar nosso aprendizado a pequenas informações ou usar a pandemia para abordar algumas questões fundamentais sobre a forma como encaramos as missões. Não desperdicemos esse valioso tempo no deserto e peçamos ao Senhor que nos guie para a “terra pós-COVID”.

Notas Finais

  1. Andy Crouch, Kurt Keilhacker, e Dave Blanchard, “Leading beyond the Blizzard: Why Every Organization Is Now a Startup”, The Praxis Journal, 20 de março de 2020, https://journal.praxislabs.org/leading-beyond-the-blizzard-why-every-organization-is-now-a-startup-b7f32fb278ff.
  2. Jason Mandryk, Global Transmission, Global Mission, Operation World, 2020, https://doi.org/10.1136/postgradmedj-2020-139070 https://operationworld.org/publications/global-transmission-global-mission-free-ebook/.
  3. Foram feitas referências à gripe mexicana de 1918 a 1920, que matou um grande número de pessoas em idade produtiva em alguns países. A taxa de mortalidade da COVID-19 foi maior em 19%, mas a maioria dos que morreram tinha mais de 65 anos. Veja, por exemplo: Liang Shu Ting, Lin Ting Liang, e Joseph M. Rosen, “COVID-19: A Comparison to the 1918 Influenza and How We Can Defeat It”, Postgraduate Medical Journal 97, nº. 1147 (Maio de 2021): 273–74, https://doi.org/10.1136/postgradmedj-2020-139070.
  4. Veja, por exemplo, a postagem desse blog que cobre apenas os Estados Unidos. Eu soube, no entanto, de tendências semelhantes em outras partes do mundo: Report Shows Donors Drop by 7% While Giving Amount Increases 6.2%”, MinistryWatch, outubro de 2022, https://ministrywatch.com/report-shows-donors-drop-by-7-while-giving-amount-increases-6-2/.
  5. Reconhece-se que a guerra na Ucrânia também está influenciando o aumento da pobreza. Os números que cito aqui estão em Daniel G. Mahler et. al, “Pandemic, Prices, and Poverty”, World Bank Blogs, 13 de abril de 2022, https://blogs.worldbank.org/opendata/pandemic-prices-and-poverty.
  6. Pouco se sabe ainda sobre a COVID longa, mas há amplo reconhecimento de que afeta muitas pessoas. Veja, por exemplo, “The Impact of COVID-19 on Mental Health Cannot Be Made Light Of”, Organização Mundial da Saúde, 16 de junho de 2022, https://www.who.int/news-room/feature-stories/detail/the-impact-of-covid-19-on-mental-health-cannot-be-made-light-of.
  7. O Relatório de Aviação da Organização Internacional de Aviação Civil mostra que, a partir de dezembro de 2022, as viagens domésticas em muitos países praticamente voltaram aos níveis pré-pandêmicos, enquanto as viagens internacionais ainda estão em recuperação. Veja “Effects on Novel Coronavirus (COVID-19) on Civil Aviation: Economic Impact Analysis”, International Civil Aviation Organization, 27 de janeiro de 2023, https://www.icao.int/sustainability/Documents/Covid-19/ICAO_coronavirus_Econ_Impact.pdf.
  8. Um pesquisador da Universidade de Ottawa aponta, por exemplo, que as grandes doações de países do Sul para outros países do Sul desafiaram os padrões e expectativas existentes: Stephen Brown, “The Impact of COVID-19 on Development Assistance”, International Journal 76, nº 1 (Março 2021), https://doi.org/10.1177/0020702020986888. Isso se assemelha à observação do missiólogo David Bosch em seu livro Transforming Mission (Maryknoll, NY: Orbis Books, 2011) de que as duas guerras mundiais fizeram a Europa descer de seu pedestal aos olhos de muitos africanos.
  9. Como líder da Comissão Missionária da Aliança Evangélica Mundial, Jay Matenga está promovendo uma estrutura de missão que coloca o ônus sobre a igreja nativa local. Veja seu artigo intitulado “Centring the Local: the Indigenous Future of Missions”, 2021, https://jaymatenga.com/pdfs/MatengaJ_CentringLocal.pdf.
  10. Como líder da Comissão Missionária da Aliança Evangélica Mundial, Jay Matenga está promovendo uma estrutura de missão que coloca o ônus sobre a igreja nativa local. Veja seu artigo intitulado “Centring the Local: the Indigenous Future of Missions”, 2021, https://jaymatenga.com/pdfs/MatengaJ_CentringLocal.pdf.

Kirst Rievan (pseudônimo) e sua esposa são da Europa e vivem na Ásia há mais de 20 anos. Kirst exerce um papel de liderança em uma organização cristã de desenvolvimento global na Ásia e no Pacífico. Ele tem doutorado em missiologia pela Biola University, mas se considera um “praticante reflexivo”, um companheiro de aprendizado, não um especialista.