Em busca da missão integral sem a igreja
O que nos leva a ficar de joelhos muitas vezes nos descortina um novo caminho. Os médicos geralmente são pessoas obstinadas, e eu não fujo à regra. Somente uma experiência extraordinária pode mudar um espírito forte.
Comecei a me envolver com a obra missionária há cerca de 30 anos; estava decidida a transformar a situação dos pobres e vulneráveis. Mas após três anos de trabalho árduo, a véspera do Natal de 1999 colocou-me de joelhos. Foi quando descobri que um aparente fracasso pode levar a um sucesso maior.
Na época, eu me dedicava ao cuidado tanto espiritual quanto físico dos pacientes. Liderava um ministério médico comunitário para pessoas afetadas pela hanseníase – uma população de aproximadamente cinco mil pessoas. Esse trabalho incluía um ministério para crianças em situação de vulnerabilidade – na época do Natal eu liderava uma Escola Bíblica de Férias (EBF) que reunia 400 crianças em nosso quintal. Além disso, eu exercia o papel de esposa para o meu marido e de mãe para meus dois filhos pequenos. Estava bastante ocupada, para dizer o mínimo. A questão mais urgente, no entanto, era a EBF, que atraía um número de crianças maior do que o esperado.
Lembro-me de ter acordado naquele dia muito cedo para comprar pão para as crianças que participariam da EBF. Enquanto dirigia para casa naquela manhã fria e nublada, deparei-me com algo que me chocou profundamente. Crianças de 5, 7 e 10 anos, trêmulas de frio às 6h da manhã, vasculhavam uma lixeira em busca de alimento – eram crianças de rua que viviam à distância de um quarteirão de nossa sede missionária.
Meu coração ficou partido. Lutei contra a vontade de levá-las para casa comigo. Cogitei a ideia de lhes dar o pão que acabara de comprar. Pensei na possibilidade de acrescentar um orfanato aos projetos que minha família e eu estávamos realizando. Como testemunhar isso e ir embora? Como continuar a oferecer auxílio apenas para suprir as necessidades de saúde e negligenciar essa grande carência social, emocional e mental da comunidade? O que significa oferecer cuidado integral a uma pessoa ou comunidade?
O que me motivou a envolver a igreja e como isso aconteceu?
Durante vários dias lutei com alguns pensamentos até que houve uma mudança em todo o meu paradigma ministerial. Decidi que não era minha a responsabilidade dar pão, administrar um orfanato ou mesmo continuar a oferecer os cuidados médicos comunitários para leprosos, muito menos administrar uma EBF que havia saído do controle. Tudo isso precisava parar.
Não seria mais eu. Em vez disso, eu capacitaria a igreja para assumir a responsabilidade de oferecer cuidado integral ao indivíduo e à comunidade. Essa nova estratégia teria o nome de “ministério holístico”. A igreja responderia a essas necessidades:
- Levantando-se para cumprir sua missão e tornando-se relevante.
- Ajudando os vulneráveis, capacitando-os em suas próprias comunidades e conferindo assim dignidade aos menos favorecidos.
- Lidando com questões estruturais e causas-raiz de problemas para oferecer soluções às pessoas afetadas e, ao mesmo tempo, evitar que outros sofram as mesmas consequências.
A implementação de tal estratégia requer uma parceria com igrejas locais, equipando-as para que assumam a liderança e, após três anos, apropriem-se por completo do processo de transformação dessas comunidades. Isso significa envolver-se no processo tendo já em vista uma estratégia de saída planejada. Essa é a abordagem que implementamos na Life In Abundance International.[1]
A abordagem e a base bíblica para envolver a igreja
O modelo baseia-se em Isaías 61, que descreve a missão de Jesus. Jesus veio para levar boas notícias aos pobres. Isaías 61 explica o processo para a redenção completa, afirmando que a “restauração” será completa no “dia da justiça”. Essa missão de Jesus é o ministério que, como seus discípulos, devemos seguir: o ministério voltado à pessoa como um todo.
Entramos em uma comunidade e começamos a fazer caminhadas de oração dentro e ao redor dela, para compreender e acolher os propósitos do reino. Depois, organizamos um seminário para transmitir a visão, reunimos líderes de igrejas estrategicamente posicionadas e descrevemos como o ministério holístico da igreja pode ser. Os que aderem são convidados para um treinamento de líderes (Training of Trainers). Em seguida, fazemos juntos um levantamento inicial e participativo da comunidade. Começa então a mobilização e a organização comunitária. Iniciamos a implementação, com pequenos passos, tendo como objetivo apresentar uma solução viável que tratará as necessidades identificadas conforme a prioridade. A igreja é preparada ao longo de um período de três anos para implementar intervenções adicionais nas áreas de saúde comunitária, educação, educação/orientação financeira e engajamento social.
O foco está em abordagens holísticas (que sejam sustentáveis e tenham impacto a longo prazo) voltadas para as necessidades percebidas. É, em parte, a forma como Deus chamou a igreja para cumprir o plano do seu reino, sob a orientação do Espírito. As pessoas se envolvem na elaboração de soluções sustentáveis para as necessidades identificadas e apropriam-se de sua mudança.
Durante três anos, o facilitador da Life in Abundance (LIA) caminha com as igrejas numa relação de mentoria – treinando-as, encorajando-as e capacitando-as para garantir que estejam preparadas para servir. As igrejas costumam estar estrategicamente localizadas em comunidades carentes. Elas são os agentes da mudança. São sal e luz. Com essa abordagem sistemática e a presença central da igreja, a missão de Jesus descrita em Isaías 61 é implementada.
Os pesquisadores observaram que as comunidades que experimentam sua própria transformação não mencionam o ministério Life in Abundance e o impacto que promovemos em suas vidas. Em vez disso, elas fazem referência à igreja, para quem realmente deveriam olhar.
O impacto do envolvimento da igreja
Gostaríamos de saber quais efeitos, se é que houve algum, permanecem nas comunidades de onde saímos há 25, 10 ou mesmo três anos. Será que promovemos uma diferença significativa? Nessas comunidades onde o trabalho foi concluído, nas centenas de igrejas com as quais firmamos parcerias, há algum efeito duradouro que seja digno de nota? Valeu a pena o investimento passado e presente?
Em 2015, para acabar com essa especulação, convidamos corajosamente um grupo independente para conduzir uma avaliação do impacto causado. Sua tarefa era escolher, aleatoriamente, seis comunidades entre todas aquelas com as quais havíamos trabalhado e coletar dados quantificáveis para uma avaliação dos modelos de curto e longo prazo. Com esses dados, eles deveriam responder à hipótese de que, quando o modelo é implementado numa comunidade, a mudança holística resultante pode ser mantida e até expandida pela mesma comunidade após a saída do facilitador.
Os avaliadores escolheram as seis comunidades e analisaram a sustentabilidade em seis áreas principais do cuidado integral:
- educação financeira
- saúde comunitária
- educação
- Impacto ambiental
- envolvimento social
- transformação espiritual
O grupo também avaliou os níveis de impacto sustentável nos beneficiários diretos espalhados pela comunidade e o impacto que ultrapassava os limites da comunidade inicial.[2]
A análise dos dados revelou que houve um impacto duradouro nos beneficiários diretos. Os beneficiários do programa de cuidado integral haviam sido transformados de forma sustentável após três anos de serviços participativos. E houve um impacto duradouro na comunidade onde viviam os beneficiários diretos. Depois de nossa saída, eles chegaram a causar um impacto positivo na população vizinha. Isso aconteceu em todas as comunidades avaliadas.
Além disso, em três dos contextos avaliados, as igrejas locais exportaram o programa, replicando os mesmos projetos em novas comunidades, ampliando assim o seu impacto. Isso contraria totalmente o trabalho humanitário e de desenvolvimento convencional, cujo impacto tende a dissipar-se após a saída do agente promotor. Para surpresa dos pesquisadores de vários contextos, em vez de se dissipar, o efeito cascata do impacto na comunidade havia aumentado com o passar do tempo. Fiquei pessoalmente maravilhada, mas não surpresa com as descobertas.
O relatório desse estudo apontou três conclusões:
- O trabalho continua a florescer mesmo que o facilitador não esteja mais presente.
- Em todos os locais visitados, não houve dúvida de que as pessoas estavam envolvidas em medidas eficazes e transformadoras para promover mudanças holísticas em suas comunidades.
- Para alcançar essa mudança duradoura, é essencial um modelo holístico de cuidados que tenha a igreja como agente local. Para alcançar o sucesso, todos os componentes do modelo atuam em conjunto; nenhum pode ser isolado. Em todos os locais, as interdependências foram evidentes, em níveis profundos e complexos.
Sou grata pelo que Deus tem feito através de nós e da igreja. Esse exame de consciência em 1999 nos levou a buscar a igreja local, depois fomos levados a conduzir o primeiro treinamento de multiplicadores, que foi seguido por um projeto-piloto de três anos, que, por sua vez, avançou rapidamente e se transformou no nosso trabalho contínuo em 12 países da África e 2 do Caribe.
Ao longo dos anos, cerca de dois milhões de pessoas receberam cuidados de forma integral. Dos que foram diretamente beneficiados, mais de 50 mil novos crentes conheceram a Cristo como Senhor e Salvador. Mais de 3.500 igrejas foram e estão sendo capacitadas não apenas nesses 14 países, mas em todo o mundo. As igrejas locais estão implementando em suas comunidades ministérios de cuidado integral.
Tendências atuais
Deus exige uma resposta nossa e se importa com a forma como ajudamos.
Se o incidente da véspera de Natal de 1999 não tivesse me perturbado, eu provavelmente ainda estaria ocupada com aquela primeira comunidade, agindo como uma heroína, em atividades com pessoas, por pessoas e para pessoas. Eu estaria esgotada, sentindo-me indispensável, criando dependência, realizando o que chamo de “boas obras”, mas menosprezando a noiva de Cristo e, no processo, realmente sofrendo os danos de uma postura egoísta.
Deus não chama as pessoas para que se tornem heróis e recebam honras. Ele nos chama para exaltar o seu nome. Aprendemos a dar glória a Deus capacitando a igreja local, para que, aonde quer que formos, o impacto que produzimos seja duradouro. Essa estratégia funciona, e Deus está abençoando esse trabalho em todo o mundo, pois é sua missão, seu caminho.
A igreja local não pode ser ignorada, pois sua missão é anunciar a Palavra de Deus por conexão, demonstração e proclamação. A igreja é a voz espiritual aceitável e duradoura na comunidade. Quando a comunidade aceita um programa fundamentado na igreja, ela aceita a função da igreja e espera a sua expressão nas atividades do programa.
A missão integral da igreja é algo hoje comumente aceito e a tendência atual em missões eficazes. A Palavra proclamada tem poder para promover a mudança transformacional descrita em Isaías 61.
Somente indivíduos que foram transformados espiritualmente em seu interior podem apresentar mudanças tanto físicas quanto comportamentais para se tornarem justiça de Deus, mesmo diante de batalha espiritual. Esse é o ministério redentor que Jesus veio realizar e ele o abençoa e edifica em sua igreja.
Notas finais
- ‘Defeat Poverty. Restore Dignity’, Life in Abundance International, acesso em 28 de agosto de 2023, www.lifeinabundance.org.
- Esse estudo abrangente resultou em um relatório completo de 53 páginas, disponível em www.lifeinabundance.org.