Global Analysis

Gerando líderes tementes a Deus entre os estudantes internacionais em todo o mundo

Phil Thomas out 2023

A Ivy fez uma pergunta. Não estava indagando se ela mesma era ou não uma líder; assim como muitos estudantes internacionais, ela já ocupava posições bem-sucedidas de liderança em vários contextos. Também não queria saber sobre a influência de sua fé cristã em sua liderança; afinal, seu relacionamento com Deus afetava todas as áreas de sua vida, e isso incluía sua conduta como líder. A pergunta de Ivy era sobre os princípios de liderança que desejava levar consigo quando voltasse ao Quênia, seu país de origem. Ivy perguntou: “Quais são os princípios bíblicos de liderança que se aplicam a todas as culturas?”

A meu ver, a pergunta de Ivy destacava uma questão importante para todos os envolvidos no ministério com estudantes internacionais. São esses estudantes “que mudam o mundo de amanhã” e são a próxima geração de “construtores de nações”.[1] Todos os anos, milhares de estudantes cristãos internacionais regressam aos seus países de origem ou mudam-se para um terceiro país. Muitos desejam servir a Deus de uma forma que seja relevante, tanto pela perspectiva bíblica quanto pela cultural, sem simplesmente copiar os modelos ocidentais. No entanto, para fazê-lo, eles precisam saber quais princípios bíblicos de liderança podem ser aplicados em qualquer cultura.

Neste artigo, explicarei primeiramente as falhas que muitos livros sobre liderança cristã costumam apresentar quanto tentam responder a essa pergunta. Depois, quero estabelecer os fundamentos para os princípios bíblicos de liderança, oferecendo uma base de reflexão sobre áreas extremamente contestadas de liderança e interpretação bíblica. Finalmente, proponho três princípios bíblicos de liderança que podem ser aplicados, na minha opinião, em qualquer cultura e ajudam a desenvolver os líderes tementes a Deus espalhados pelo mundo.

Falhas encontradas em livros sobre liderança cristã

Na verdade, muitos livros sobre liderança cristã não se baseiam na Bíblia, embora seus autores afirmem o contrário. Se analisarmos com cuidado, há um número surpreendente de livros que se baseiam na opinião e experiência do autor. Alguns autores reformulam seus próprios livros de liderança secular[2] adicionando alguns versículos bíblicos, enquanto outros apenas usam o texto bíblico como comprovação de sua experiência.[3] Embora a experiência seja um guia útil, ela não pode ser considerada infalível. Por exemplo, o que funciona numa megaigreja nos Estados Unidos pode não funcionar na zona rural do Quênia.

Outra falha encontrada frequentemente nos livros sobre liderança cristã é que muitos deles não levam em conta o papel desempenhado pela cultura. Os estudantes internacionais precisam estar cientes de que a maior parte da literatura sobre liderança é de autores americanos e britânicos.[4] Os autores, portanto, enfatizam características e conceitos de liderança que são valorizados em sua própria cultura ocidental – como, por exemplo, a autorrealização – mesmo quando esses conceitos contrariam o ensino bíblico.[5]

Além disso, muitos livros sobre liderança cristã veem a liderança apenas por uma perspectiva individualista e centrada no líder.[6] Esse ponto de vista ocidental atribui grande responsabilidade ao líder individual designado e sequer considera a liderança distribuída ou coletiva. Trata-se de um aspecto restritivo, pois uma abordagem colaborativa que tenha ecos do “corpo de Cristo” (1Cor 12.12-31) é certamente um modelo mais eficaz, sobretudo em culturas coletivistas.

Finalmente, muitos livros sobre liderança cristã apresentam os líderes como “grandes homens”. Aceitam inquestionavelmente a “Teoria do Grande Homem” de Carlyle, ainda hoje um dos pilares de boa parte do pensamento ocidental sobre liderança.[7] Autores como John Maxwell escrevem que “grandes líderes se levantam e encontram uma maneira de levar a equipe à vitória. . . têm convicção, comprometimento, desenvoltura e perseverança ilimitados”.[8]

Essa visão de liderança, no entanto, é antitética à fé cristã. Apresenta líderes como sendo tão confiantes e capazes que se tornam “heróis” que não precisam de Deus. Assemelha-se ao “ateísmo funcional”.[9] A visão do “grande homem” leva à idolatria tanto do líder como da liderança. Ignora o alerta bíblico: “Não confiem em príncipes [líderes humanos], em meros mortais, incapazes de salvar” (Sl 146.3-4; NVI). Essa visão também distorce a mensagem da Bíblia, pois apresenta personagens como Abraão, Moisés e Davi como “grandes homens” das Escrituras, quando na verdade são homens caídos, pecadores, mas que, pela graça de Deus, ainda são usados por ele.[10]

Fundamentos para os princípios bíblicos de liderança

Essas lacunas comuns indicam que, antes de propormos princípios bíblicos de liderança, devemos definir os fundamentos nas seguintes áreas:

Como a Bíblia é usada na arena de liderança

Embora a Bíblia seja a autoridade máxima para os cristãos, é simplista e anacrônico presumir que comportamentos específicos de liderança possam ser facilmente extraídos do texto bíblico. Huizing afirma que a Bíblia “não foi escrita ou projetada para ser um livro sobre liderança”.[11] A Bíblia não explora de forma direta e explícita a “liderança” da forma como usamos o termo.[12] Quaisquer modelos de liderança derivados das Escrituras são na verdade “formulações de segunda ordem”, visto que o texto “na verdade tem seu foco em um tema totalmente diferente”.[13] Portanto, um uso mais fiel do texto bíblico é identificar crenças ou doutrinas aceitas que podem então ser aplicadas tanto à liderança como a qualquer área da vida.

Como os princípios de liderança podem ser aplicados em qualquer cultura

Para evitar que o ensino de liderança seja totalmente influenciado pela cultura, ele precisa, como afirma Huizing, conter “verdade suficiente que o torne relevante em qualquer contexto e ainda flexibilidade suficiente para que as verdades inerentes sejam usadas como base em qualquer contexto”.[14] Todos os princípios bíblicos de liderança podem e devem ser contextualizados, assim como o restante da mensagem cristã, a fim de que sejam relevantes em qualquer cultura.

Que tipo de princípios de liderança beneficiaria os cristãos

Os princípios bíblicos de liderança são aqueles mais voltados ao propósito do que à eficácia. Isso ocorre porque, para os cristãos, os questionamentos mais importantes do líder são: “Por que estou fazendo isso?” e “Como isso promoverá o reino de Deus?” Grande parte da literatura sobre o tema da liderança, por sua vez, concentra-se principalmente na eficácia e indaga: “Como podemos alcançar determinados resultados?”.[15] Tendo estabelecido esses fundamentos, quero propor agora três princípios bíblicos de liderança.

Três princípios bíblicos de liderança

Primeiro, o chamado dos líderes cristãos está mais relacionado a seguir do que a liderar.

Esse princípio parece tão óbvio que chega a ser supérfluo. No entanto, os líderes cristãos que seguem a Deus – o líder supremo em quem a fé deve ser depositada – são muitas vezes completamente ignorados por muitos autores cristãos populares. O ato de seguir Jesus pode ser mencionado por alguns autores quando se fala de salvação pessoal,[16] mas raramente afeta sua compreensão sobre liderança.

A descrição mais útil de “seguir mais do que liderar” que posso oferecer aos estudantes internacionais é a descrição que Wells faz dos crentes.[17] Ele afirma que os cristãos “não são chamados para ser heróis. São chamados para ser santos”. Ele contrasta o líder “heroico” e o líder “santo” de cinco maneiras:

  • O herói está no centro da história, endireitando todas as coisas; o santo está nos bastidores de uma história que é centrada em Deus.
  • A história do herói celebra a força, a coragem e a sabedoria; a história do santo celebra apenas a fé, pois o santo não pode possuir quaisquer outras virtudes.
  • As histórias de heróis pressupõem luta e o predomínio da grande coragem. As histórias de santos, por sua vez, envolvem a alegria pelo fato de Cristo já ter lutado e vencido, por isso esses santos praticam amor, alegria, paz, em vez de violência.
  • Considerando que as ações do herói são fundamentais para que a história termine positivamente, qualquer admissão de erro ou falha grave é um desastre, possivelmente fatal, para os heróis e para os que dependem deles. Por outro lado, o santo é passível de fracassos, e os erros dão início a um ciclo de arrependimento, perdão, reconciliação e restauração.
  • O “grande” herói está sozinho, isolado da comunidade, contra o mundo. Os santos, por sua vez, dependem não apenas de Deus, mas também da comunidade de santos para sustentá-los em sua conduta fiel.

Em segundo lugar, os líderes cristãos são os que renunciam ao poder.

Renunciar ao poder é um princípio claro nas Escrituras para todos os cristãos. Jesus instruiu seus seguidores a lavarem os pés uns dos outros (Jo 13.1-17), a se tornarem como uma criança (Mt 18.4), a assumirem uma atitude de servo (Mc 9.35) e a serem escravos de todos (Mc 10.45).

Renunciar ao poder é particularmente importante para os líderes porque o poder está inextricavelmente conectado à liderança. Como afirma Lidstone, o desejo de poder pode facilmente tornar-se profundamente enraizado nos corações e mentes dos seres humanos.[18] Para contrariar essa luxúria, os líderes cristãos devem tornar Jesus “o centro de quem somos. . . substituindo nossa busca por poder”.[19] O principal indicador de que Jesus substituiu essa busca é que podemos renunciar ao poder. Esse tema crucial é muitas vezes ignorado por muitos autores ou simplesmente transformado numa “técnica”.

O princípio da renúncia ao poder é bem ilustrado pela descrição que Lidstone faz do século 3. Naquela época, para que um crente fosse batizado, era necessário que ele deixasse de vestir roupas de cor púrpura, pois esse era o “símbolo máximo do poder mundano”[20] e visto como incompatível com a fé cristã. Foi essa exigência de deixar de usar púrpura que, por 25 anos, impediu Constantino de ser batizado após a sua conversão. Lidstone desafia os líderes cristãos de hoje a não fazerem uso de sua posição para obter honra e poder; em vez disso, exorta-os a renunciarem ao poder e a serem “agentes contraculturais do Reino de Deus”.[21]

Terceiro, os líderes cristãos precisam usar a Bíblia para avaliar e moldar suas opiniões e estruturas de liderança.

Os líderes cristãos devem permitir, como afirma Huizing, “que a teologia defina sua liderança, e não que uma teoria de liderança defina sua teologia”.[22] Muitos autores de livros sobre liderança cristã “baseiam-se mais em experiências subjetivas ou observações anedóticas dos líderes do que nas Escrituras ou em boa pesquisa”.[23] Eles desconsideram pressupostos culturais, o que significa que o ensino de liderança é “amoldado” ao mundo (Rm 12.2). Suas conceitualizações de liderança são usadas para sustentar o viés de um autor e as suas teorias de liderança, “que nada têm a ver com o evangelho”,[24] podem aparecer em livros para cristãos. Todos os cenários acima são factíveis porque os autores não submeteram suas estruturas e opiniões à luz das Escrituras.

Conclusão

Para que os estudantes internacionais se tornem líderes tementes a Deus, eles precisam seguir princípios de liderança verdadeiramente bíblicos que possam ser aplicados em qualquer cultura. Para ajudá-los, eles precisam estar cientes das falhas comumente encontradas nos livros de liderança cristã e compreender os fundamentos dos princípios bíblicos de liderança. Destaquei três desses princípios: seguir mais do que liderar, renunciar ao poder e usar a Bíblia para avaliar e moldar estruturas e opiniões de liderança.

Seguir esses princípios resultará num tipo de prática de liderança muito diferente da que o mundo utiliza. Isso ocorre porque, como afirma Dykstra:

As práticas cristãs são diferentes, e isso acontece porque a sua história é diferente… [nossa história é] que os braços eternos de um Deus gracioso e amoroso sustentam o universo. Portanto, a nossa tarefa básica não é o domínio e o controle. Em vez disso, é a confiança e a receptividade, em gratidão. Nossos modelos não são heróis. Eles são santos. Nosso epítome não é a excelência; nossa honra está na fidelidade.[25]

Notas finais

  1. “Ministério Estudantil Internacional”, Movimento de Lausanne, acesso em 11 de março de 2023, https://lausanne.org/networks/issues/international-students.
  2. Bill Hybels, Courageous Leadership (Grand Rapids: Zondervan, 2012).
  3. John Maxwell, 21 Laws of Leadership in the Bible: Learning to Lead from the Men and Women of Scripture (Nashville: Thomas Nelson, 2018), é uma revisão de:: John Maxwell, The 21 Irrefutable Laws of Leadership: Follow Them and People Will Follow (Nashville: Thomas Nelson, 1998).
  4. Richard Bolden, Jonathan Gosling, Beverley Hawkins, and Scott Taylor, Exploring Leadership: Individual, Organizational, and Societal Perspectives (Oxford: OUP, 2011), 20, 26.
  5. Veja, por exemplo: Ken Blanchard, Phil Hodges, and Phyllis Hendry, Lead Like Jesus Revisited (Nashville: Thomas Nelson, 2016), xi. 2.
  6. Tais como: Hybels, Courageous Leadership, and Blanchard, Hodges, and Hendry, Lead Like Jesus Revisited.
  7. Justin Lewis-Anthony, You are the Messiah and I Should Know: Why Leadership is a Myth (and Probably a Heresy) (London: Bloomsbury Publishing, 2013).
  8. Maxwell, 21 Laws of Leadership in the Bible, 163-164.
  9. L. Roger Owens, ‘Staying with God: Eugene Peterson and John Chapman on Contemplation’, in Pastoral Work: Engagements with the Vision of Eugene Peterson, eds. Jason Byassee and L. Roger Owens (Eugene, Oregon: Cascade Books, 2014), 132.
  10. Joel Rainey, ‘Great Man Theory’ and the Myth of Christian Heroism’, accessed 29 January 2022, http://joelrainey.blogspot.com/2015/09/great-man-theory-and-myth-of-christian.html.
  11. Russell Huizing, ‘Bringing Christ to the table of leadership: Moving towards a theology of leadership’, Journal of Applied Christian Leadership, 5(2), (2011): 69.
  12. Arthur Boers, Servants and Fools: A Biblical Theology of Leadership (Nashville: Abingdon Press, 2015), 41.
  13. Lewis-Anthony, You are the Messiah and I Should Know, 235.
  14. Huizing, ‘Bringing Christ to the table of leadership’, 69
  15. Christopher A. Beeley and Joseph H. Britton, ‘Introduction: Toward a theology of leadership’, Anglican Theological Review, 91(1), (2009): 3-10.
  16. Blanchard, Hodges, and Hendry, Lead Like Jesus Revisited, 25-26.
  17. [Samuel Wells, Improvisation: The Drama of Christian Ethics (Baker Academic, 2018), accessed 2 February 2022, https://www.perlego.com/book/2063126/improvisation-pdf.
  18. Juylan Lidstone, Give up the Purple: A Call for Servant Leadership in Hierarchical cultures (London: Langham Global Library, 2019), 72.
  19. Sherwood Lingenfelter, Leading Cross-Culturally (Baker Academic, 2008), accessed 12 February 2022, https://www.perlego.com/book/2039639/leading-crossculturally-pdf.
  20. Juylan Lidstone, Give up the Purple, 7-8.
  21. Juylan Lidstone, Give up the Purple, 87.
  22. Huizing, ‘Bringing Christ to the table of leadership,’ 62.
  23. Aubrey Malphurs, Being Leaders: The Nature of Authentic Christian Leadership (Grand Rapids, Baker Publishing Group, 2003), 10.
  24. Lewis-Anthony, You are the Messiah and I Should Know, chap.1.
  25. Craig Dykstra, Growing in the Life of Faith: Education and Christian Practices, 2nd ed. (Kentucky: Westminster John Knox Press, 2005), 76.

Author's Bio

Phil Thomas

Phil Thomas é fundador e diretor da Transformations Leeds, uma organização missionária que treina estudantes em liderança para que possam levar a transformação de Deus às suas nações. Ele tem mestrado em “Liderança em um mundo complexo”, pelo Redcliffe College, no Reino Unido. Criou e lidera o God's Apprenticeship Programme, que capacita líderes cristãos em todo o mundo por meio de treinamento e orientação online. Também iniciou a conferência anual híbrida “Transforming your World”, que inspira estudantes e graduados a promover transformação através de seu trabalho e de suas culturas.