Global Analysis

Reflexões sobre a economia islâmica para a obra missionária e o ministério cristão

O que podemos aprender com zakat, waqf e o sistema bancário islâmico

John Cheong ago 2023

No campo da economia, as questões microeconômicas, como dízimos, salários de funcionários, financiamento de edifícios de igrejas, sustento missionário, negócios como missão e ajuda assistencial cristã afetam a obra missionária e o ministério cristão. A análise das questões macroeconômicas, contudo, não é aplicada à perspectiva missiológica.

Creio que a obra missionária e o ministério cristãos no mundo de hoje (particularmente em contextos muçulmanos) podem ser renovados com o aprendizado de novas práticas econômicas a partir de um estudo da economia islâmica. Trata-se de algo particularmente importante devido à expansão do testemunho islâmico como religião progressista por meio da economia e dos bancos islâmicos.[1]

O que estou sugerindo é uma reformulação da obra missionária cristã de forma que possa engajar-se com as maiores forças socioeconômicas da sociedade e do islamismo, por meio do exame de três aspectos da economia islâmica: zakat (donativos/dízimo), waqf (dotações/fundos fiduciários [trustes]) e o sistema bancário islâmico (financiamento sem juros).

Uma visão geral da economia islâmica

Os sistemas bancário e financeiro islâmicos são geralmente vistos pelos ocidentais como a face mais gentil do islamismo, aquela que revela seu projeto de modernização (também fundamental para a obra missionária entre os muçulmanos).[2] No que se refere à economia e ao desenvolvimento, são muitas as diferenças entre as cosmovisões ocidental[3] e islâmica:

Tabela 1: Cosmovisões ocidental e islâmica[4]

 OcidentalIslâmica
Filosofia
social
• Secularismo, liberalismo, materialismo.
• Valores morais separados da esfera política e econômica
da sociedade.
• Liberdade humana absoluta para a busca de ganhos materiais.
• Crença e submissão a Deus (ou seja, o homem serve a Deus, Maomé é o modelo, os ganhos materiais devem levar à partilha e à justiça).
• Jornada espiritual/moral na convivência com realidades materiais.
Educação• Aumentar a produtividade humana.
• Maior renda produz melhor qualidade de vida.
• O dinheiro é a fonte da felicidade.
• Fator moral no desenvolvimento.
• Justiça econômica e social.  
Economia• Foco no interesse próprio e capitalismo
• Permite que os mercados livres maximizem o ganho pessoal
• Bem-estar material e espiritual na cooperação
• Exorta à cooperação entre mercados e pessoas
• O sacrifício pelo bem comum

Essas diferenças surgiram como resultado das seguintes posturas do islamismo: (1) insatisfação com os modelos e teorias de desenvolvimento capitalistas e socialistas, (2) rejeição da ideologia de “aproximação” com o Ocidente e (3) compromisso de discernir a natureza e o princípio de desenvolvimento econômico do ponto de vista islâmico.[5] Como exemplo, vamos examinar três aspectos da economia islâmica.

Zakat

Zakat (donativo para purificação da alma) é um dos cinco pilares do islamismo, uma porcentagem fixa de riqueza paga pelos muçulmanos para causas específicas. Está associado à oração e acredita-se que “purifica tanto os doadores quanto a riqueza que é doada”. Seu descumprimento resulta na anulação da eficácia da oração.[6]

Por meio do zakat, o doador se purifica “ao coibir sua ganância e insensibilidade aos sofrimentos dos outros. Quem recebe, da mesma forma, é purificado da inveja e do ódio dos ricos”.[7] O Alcorão não determina quanto e quando dar, mas especifica a quem dar: convertidos, escravos, devedores e os espiritualmente perdidos (Sura 9:60).

O Zakat equivale a 2,5% dos bens anuais de uma pessoa, mas as proporções variam conforme os diferentes tipos de riqueza.[8] Os muçulmanos cuja renda fica abaixo de certo limite estão desobrigados desse tributo, mas “exige-se que todos paguem anualmente um pequeno zakat al-fitr (fitrah) aos necessitados, no final do Ramadã”.[9] As esmolas dadas durante o Ramadã são “consideradas 70 vezes mais meritórias do que em outras épocas do ano”.[10]

Waqf: Trustes muçulmanos

Entre os islâmicos, um popular meio de transferir ativos é através do waqf (truste), uma doação religiosa estabelecida sob a lei sharia.[11] No islamismo moderno, o waqf é uma corporação — uma “organização autônoma que os tribunais tratam como pessoa jurídica”.[12] “Dependendo das faculdades de direito islâmicas, a administração e a execução dos waqfs variam, embora possam mudar com o tempo.[13] Não costuma haver barreira legal para incluir entre os beneficiários os não muçulmanos, com a ressalva de que não pratiquem adultério, embriaguez, jogos de azar ou usura. Caso contrário, seus direitos tornam-se nulos.[14]

Osfundos waqfs podem ser formados com a soma dos recursos de milhares de pequenos contribuintes, enquanto os fundadores de waqf podem ser governos e empresas. Os ativos que custeiam as atividades do waqf podem consistir em dinheiro e ações. Suas operações podem ser supervisionadas por mutawallis (gerentes ou curadores do waqf) atuando como um conselho e não individualmente.

O sistema bancário islâmico e o financiamento livre de juros

Há mais de 1.500 fundos islâmicos em todo o mundo, operados por 345 instituições financeiras islâmicas em 29 países, com cerca de US$ 200 bilhões em ativos administrados.[15] O sistema bancário islâmico nasceu da iniciativa privada entre revivalistas muçulmanos no Egito, Paquistão e Sudão na década de 1960, enfrentando oposição de regimes secularistas.[16] Hoje, o sistema bancário islâmico é encontrado na África, no Oriente Médio, no sudeste da Ásia e nos Estados Unidos. Os bancos refletem a percepção muçulmana de que o capitalismo ocidental falhou em lidar com as questões econômicas que afetam a ummah (comunidade muçulmana), tais como: (1) a desconfiança do sistema bancário moderno quanto à capacidade dos assalariados de baixa renda de contratar crédito suficiente ou pagar empréstimos, e (2) a objeção do islamismo a transações com juros (riba) como base para obtenção de lucro e serviços.

O riba (qualquer retorno predeterminado ou fixo em transações financeiras)[17] não é permitido no sistema bancário islâmico.[18] Emboraseja frequentemente ignorado pelos muçulmanos seculares, os bancos islâmicos “evitam” o riba implementando um princípio de participação nos lucros e perdas (PLS) de duas formas: mudarabah e musharaka.

O financiamento mudarabah (participação nos lucros) é quando o banco fornece capital enquanto o empresário contribui com esforços e exerce controle total sobre a atividade comercial. Em caso de perda, o banco não ganha nada ou recebe um retorno negativo sobre seu investimento, mas, em caso de ganho, os retornos são divididos em uma porcentagem de patrimônio negociada.

O financiamento musharaka (lucros e perdas) ocorre quando o empreendedor e o banco fornecem capital e gerenciam o projeto em conjunto. As perdas são suportadas de acordo com as contribuições do capital de cada parte, mas se houver lucro, as proporções são negociadas livremente.

O princípio do PLS é que as “relações entre o mutuário, o credor e o intermediário estejam fundamentadas na parceria e na confiança financeira”.[19] O leasing e o comércio do PLS são “permitidos no islamismo porque envolvem trabalho empreendedor, e não simplesmente empréstimo de dinheiro”.[20]

Além disso, os bancos islâmicos também fazem empréstimos Qard Hassan – empréstimos sociais ou de caridade a indivíduos e organizações que precisam de fundos ou ativos reais (materiais, suprimentos etc.), e o retorno dessas contas vem de um contrato de participação nos lucros com o banco.[21] Para mitigar grandes flutuações caso um banco registre uma perda, eles podem usar uma “reserva de lucro especial que lhes permita manter esses pagamentos relativamente estáveis e semelhantes às taxas de juros convencionais”.[22]

Reflexões sobre a economia islâmica para a obra missionária e o ministério cristão

É importante para todos os envolvidos na obra missionária e no ministério cristão entender os aspectos materiais e econômicos dos muçulmanos porque, para eles, as questões de dinheiro, finanças e economia situam-se em uma matriz moral e ética com fundamentos teológicos do Alcorão.

Vamos refletir sobre os princípios da economia islâmica e reexaminar a obra missionária e o ministério cristão – assim poderemos identificar possíveis novos espaços para nossa vida e nosso testemunho no que se refere às dimensões socioeconômicas da vida.

Ramadã, zakat e práticas cristãs

O equivalente cristão do Ramadã é a Quaresma, enquanto o zakat pode ser comparado ao dízimo. No cristianismo, acredita-se que os cristãos geralmente ofertam e ministram aos pobres na época do Natal, mas, teológica e historicamente, a ligação entre jejum e doação tem sido forte também na Quaresma.

A Quaresma é um jejum de 40 dias, observado em fevereiro ou março, que culmina na Sexta-feira Santa e na Páscoa. Tradicionalmente, a Quaresma encorajava os cristãos a abrir mão de vários aspectos consumistas ou mundanos da vida. Hoje, a Quaresma pode envolver jejum de TV, mídia social ou da aquisição de bens não essenciais. Ela é observada principalmente entre as igrejas litúrgicas (por exemplo, anglicanas, luteranas, metodistas e presbiterianas), embora a maioria dos evangélicos não pratique a Quaresma por meio do jejum ou da solidariedade e empatia com os pobres. No entanto, a determinação bíblica para isso é clara:

O jejum que desejo não é este: soltar as correntes da injustiça, desatar as cordas do jugo, pôr em liberdade os oprimidos e romper todo jugo? Não é partilhar sua comida com o faminto, abrigar o pobre desamparado, vestir o nu que você encontrou, e não recusar ajuda ao próximo? (Is 58.6-7)

Se na Quaresma os cristãos pudessem resgatar esse vínculo entre o jejum, o cuidado com os pobres e a justiça social, eles teriam um forte ponto em comum com os muçulmanos, centrado no testemunho de amor cristão.

Waqfs, sistema bancário islâmico e a riba

Embora os waqfs muçulmanos desempenhem muitos papéis de amparo à ummah, talvez o equivalente cristão moderno sejam os fundos fiduciários [trustes] e fundações. No entanto, trustes e fundações são fontes pouco conhecidas de financiamento e sustento financeiro. Historicamente, eles desempenharam papéis fundamentais no combate a doenças e no custeio de programas de alfabetização e bolsas de estudo. As fundações cristãs, no entanto, financiaram organizações missionárias em seu trabalho de impressão, tradução e distribuição de Bíblias. Há, no entanto, um grande potencial para que os cristãos se envolvam na obra missionária de formas ainda mais relevantes.

Primeiramente, como atores independentes dos caprichos das forças de curto prazo atuantes no sistema de livre mercado, os cristãos podem lidar de forma mais eficiente com projetos estratégicos de longo prazo. Em segundo lugar, eles podem doar um valor inicial [seed money ou “capital semente”] para estimular doações entre cidadãos nacionais (por exemplo, subsídios equivalentes, fundos iniciais de reforço) a projetos que exijam grandes despesas de capital que estejam além da capacidade local, como seminários, salários de professores e recursos para bibliotecas. Em terceiro lugar, as fundações especializadas em projetos de combate a doenças ou desenvolvimento comunitário[23] poderiam ajudar financeiramente comunidades com tais necessidades em contextos de missão.

Finalmente, a Bíblia proíbe o empréstimo de dinheiro a juros (por exemplo, Êx 22.25, Lv 25.36-37, Dt 23.19). Embora os israelitas não pudessem cobrar juros entre si, isso não estava proibido aos estrangeiros, desde que os juros fossem cobrados de forma justa (Dt 23.20; 24.10-15).[24] A igreja, historicamente, já se opunha à usura antes do surgimento do capitalismo global nos principais sistemas econômicos, mas os cristãos de hoje ignoram essa história. Devemos abordar essa ausência e criar melhores plataformas de negócios em contextos muçulmanos que sejam moralmente atraentes. [25]   

Conclusão

Uma avaliação crítica das dimensões culturais e religiosas da economia levanta novas questões, mas também oferece novas perspectivas de como o ministério pode ser biblicamente fiel no ambiente econômico atual.

Se nossa relação com a economia puder avaliar como o capitalismo moderno tem influenciado suas práticas, estaremos mais bem preparados para entender como resgatar um evangelho mais holístico que seja, de fato, uma boa notícia para os pobres. Para que isso aconteça, há mais trabalho a ser feito para integrar na missiologia as dimensões socioculturais e religiosas da economia. Que o Senhor nos ajude a crescer em sabedoria e entendimento nessa tarefa.[26]

Notas finais

  1. John Cheong, ‘Islamic Banking and Economics: A Mirror for Christian Practices in Mission in Muslim Contexts,’ in Christian Mission and Economic Systems: A Critical Survey of the Cultural and Religious Dimensions of Economies, eds. John Cheong and Eloise Meneses (Pasadena: William Carey, 2015), 43.
  2. Rodney Wilson, ‘Islamic Banking: Opportunity or Threat?’ Islamic City Forum, July 26, 2008, https://www.islamicity.org/forum/forum_posts.asp?TID=12871&title=islamic-banking-opportunity-or-threat.
  3. Chamado de “cosmovisão occidental/capitalism/economia/sistema bancário, tem sido adotado/praticado em muitas partes do mundo não ocidental.
  4. Shujaat A. Khan, ‘Two Pathways to Development: Capitalist versus Islamic Approach,’ Hamdard Islamicus 21, no. 2 (1998): 9-11.
  5. Syed Farid Alatas, ‘Islam and Modernization,’ in Islam in Southeast Asia: Political, Social and Strategic Challenges for the 21st Century, eds. K.S. Nathan and Muhammad Hashim Kamali (Singapore: ISEAS, 2005), 214.
  6. Jonathan Benthall, ‘Financial Worship: The Quranic Injunction to Almsgiving,’ Journal of the Royal Anthropological Institute 5, no. 1 (1999): 27, 29.
  7. Benthall, ‘Financial Worship,’ 29.
  8. Ibid.
  9. Ibid.
  10. Ibid.
  11. Timur Kuran, ‘The Provision of Public Good under Islamic Law: Origins, Impact and Limitations of the Waqf System,’ Law and Society Review 35, no. 4 (2001): 815, 842.
  12. Ibid, 866.
  13. Ibid, 871.
  14. Ibid, 852, 861.
  15. Doyinsola Oladipo, ‘Global Islamic funds market grows 300% in decade – report,’ Reuters, January 26, 2022, https://www.reuters.com/markets/funds/global-islamic-funds-market-grows-300-decade-report-2022-01-26/.
  16. Rajesh K. Aggarwal and Tarik Yousef, ‘Islamic Banks and Investment Financing,’ Journal of Money, Credit and Banking 32, no. 1 (2000): 94; Yaroslav Trofimov, “Borrowed Ideas: Malaysia Transforms Rules for Finance Under Islam,” Wall Street Journal, April 4, 2007: A1.
  17. Aggarwal, ‘Islamic Banks,’ 96.
  18. “Alá permite o comércio e proíbe o riba” (sura 2:275). Todas as citações do Alcorão são de Abdullah Yusuf Ali, The Meaning of the Holy Quran, 10th Ed. (Amana Publications, 1999).
  19. Fadzlan Sufian, ‘The Efficiency of Islamic Banking Industry in Malaysia: Foreign vs Domestic Banks,’ Humanomics 23, no. 3 (2007): 175.
  20. Trofimov, Borrowed Ideas, A1.
  21. Aggarwal, ‘Islamic Banks,’ 99.
  22. Trofimov, Borrowed Ideas, A1.
  23. Peter Frumkin, Strategic Giving: The Art and Science of Philanthropy (Chicago: University of Chicago Press, 2006), 221-223.
  24. No Novo Testamento, Jesus parece apoiar retorno de investimento por juros (Mt. 25.27, Lc 19.23). Os dados bíblicos sobre o tema são, portanto, variados, necessitando de um estudo mais profundo para entender todo o quadro.
  25. Dennis Rodkin, ‘Faith and Finance,’ Chicago Tribune, February 6, 2005, https://www.chicagotribune.com/news/ct-xpm-2005-02-06-0502060481-story.html
  26. Nota da Editora: Leia “Vendo o islamismo através da lente da Regra D’ouro”, de Colin Chapman e John Azumah, na edição de julho/2018 da Análise Global de Lausanne.

Author's Bio

John Cheong

John Cheong (PhD, Trinity International University) é professor adjunto de religiões e missões mundiais. Tem publicações sobre os aspectos sociorreligiosos e econômicos da globalização e migração entre os muçulmanos e sobre a dinâmica da missão na globalização e nas megaregiões globais emergentes. É especialista em globalização, islamismo, trabalho, dinheiro e missões e publicará em breve seu novo livro Emplacing Globalization: Mission in Contexts of People, Processes and Places (Regnum).