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Quando Davi, o homem segundo o coração de Deus, estava prestes a enfrentar o gigante, o equipamento de batalha oferecido por Saul, além de inapropriado também não ajudaria Davi (1Sm 17.38-40). Embora a preocupação de Saul fosse válida, foi melhor que o próprio Davi, ao preparar-se para o campo de batalha, escolhesse ferramentas com as quais já estava acostumado. Esta ilustração intencionalmente nos leva a inferir a inadequação de “usar a túnica, a armadura e o capacete de outra pessoa” no campo de batalha espiritual da obra missionária mundial. Aponta também para a necessidade de que o missionário encontre e utilize suas próprias “pedras” culturais, que lhe sejam familiares e tenham relação com a sua origem.

Temos a necessidade de que o missionário encontre e utilize suas próprias “pedras” culturais, que lhe sejam familiares e tenham relação com a sua origem.

Movimentos missionários do passado e do presente

Precisamos estar profundamente conscientes do que Deus está fazendo no atual panorama das missões mundiais. Cada vez mais, os missionários do Mundo Majoritário se unem à força de trabalho global,[1] e não é raro encontrar nas organizações missionárias um nigeriano, queniano ou ganense da África, um coreano da Ásia ou um brasileiro da América do Sul. Algumas de suas estratégias missionárias, no entanto, são meras cópias revestidas da metodologia ocidental anterior, em vez de serem facilitadas e contextualizadas com os atributos culturais locais. A tendência atual da trajetória missionária é que os candidatos missionários cujas bases de envio localizam-se no Mundo Majoritário considerem mais vantajoso criar conexões próximas com pessoas de origens semelhantes em outras nações do Mundo Majoritário para onde são enviados.[2]

Todas as culturas têm uma valiosa herança com a qual podem contribuir para a causa da Grande Comissão. Graças à sua incomparável experiência e seu rico legado missionário, a igreja ocidental tem muito a oferecer ao Corpo de Cristo em todo o mundo. Em gerações passadas, a estratégia das missões ocidentais concentrava-se principalmente em alcançar um Mundo Majoritário “subdesenvolvido”.[3] Os obreiros que precederam o movimento missionário moderno dedicaram-se com zelo a iniciar centros missionários mesmo em aldeias e selvas remotas, como resultado de seu trabalho árduo e de suas incansáveis explorações. As sementes que eles plantaram cresceram e se espalharam pelo mundo, e hoje testemunhamos o crescimento de movimentos missionários na Ásia, América do Sul e África, fruto de seu esforço sacrificial.[4]

Mantendo os olhos no movimento missionário moderno (iniciado com William Carey), o próximo estilo de atividades missionárias exige abordagens fracionadas e microfocadas – devemos voltar nossa atenção mais às tribos e aos grupos menores que permanecem não alcançados do que às massas que já dispõem de acesso fácil ao evangelho. Gerações diferentes pedem atribuições diferentes na grande missio Dei. Paulo afirmou: “Eu plantei, Apolo regou, mas Deus é quem fazia crescer” (1Co 3.6). Ao levantar diferentes etnias para a obra missionária em diferentes épocas da história, Deus tinha um propósito específico: abençoar as nações por meio de povos com origens étnicas específicas que foram escolhidos por ele (Gn 12.2-3).

Traços de coreanos/asiáticos

Os coreanos, por exemplo, desenvolveram ao longo dos séculos três marcas culturais que se revelam principalmente em seus conceitos relacionais: chae-myun, kibun e nunchi.[5] Assim como acontece em outras culturas asiáticas, os coreanos enfatizam a importância do chae-myun (termo geralmente traduzido como “manter as aparências”), que valoriza muito a reputação, a influência, a dignidade e a honra. Eles consideram respeitável ocultar os verdadeiros sentimentos e manter uma atitude estoica. Os conceitos de kibun e nunchi são bastante exclusivos dos coreanos. Kibun pode ser indistintamente traduzido como “humor”, enquanto nunchi destaca a capacidade de avaliar o humor (kibun) dos outros. A herança cultural coreana e sua inerente orientação embasada na cultura de honra ou vergonha[6] possibilitam, inquestionavelmente, que seus elementos coletivistas e de preservação das aparências abreviem o processo de adaptação cultural às nações vizinhas e à Ásia de modo geral, onde são preservadas noções culturais paralelas. Embora esses “códigos” de honra ou vergonha possam variar e ser muitas vezes pessoais – o que é considerado honroso ou vergonhoso varia conforme o grupo étnico, a região e a geração – ainda assim os missionários coreanos precisam de menos ajustes culturais para se adaptar a outras culturas que sigam a mesma orientação.

Todas as culturas têm uma valiosa herança com a qual podem contribuir para a causa da Grande Comissão.

No entanto, tais práticas culturais locais podem ser vistas como enganosas se forem implementadas com a motivação errada. Por outro lado, elas podem servir como ferramentas úteis para ampliar a sensibilidade às necessidades da cultura anfitriã. Um excelente traço intercultural dos coreanos no campo missionário é a observação atenta de pessoas nativas e de sua conduta. Compreender e cuidar com sensibilidade das necessidades dos outros através dos olhos de kibun e nunchi pode demonstrar humildade cristã ao servir. Missionários não apenas coreanos, mas também de outros países asiáticos devem considerar a aplicação do conceito de chae-myun para motivar e encorajar cristãos locais que tenham características culturais semelhantes a crescer em maturidade espiritual e independência dos missionários. Com tais conexões culturais e benefícios naturais, os novos obreiros da Coreia e da Ásia em geral podem seguir mais confiantes em sua missão.

Traços de brasileiros/sul-americanos

O samba e o carnaval brasileiro são símbolos dos traços culturais de intensidade e alegria dos latino-americanos. A preparação entusiástica dos brasileiros e o grande investimento no evento anual do carnaval atraem a atenção de todo o mundo. Em vez de desejos carnais entregues à devassidão, esse mesmo traço cultural também pode produzir e incutir a excitação e a paixão pela vida do Reino. Essa paixão, ao ser canalizada para o compartilhamento do evangelho e a construção de relacionamentos, serve como testemunho de um alegre estilo de vida no Reino. Para os cristãos sul-americanos, a total devoção à adoração é fundamental. Sua adoração retrata e cria a atmosfera do céu aqui na terra. Nosso Deus, especialista em transformar cinzas em uma bela coroa (Is 61.3), tem usado esse traço cultural para levantar obreiros transculturais brasileiros que proclamem o evangelho às nações. Não é à toa que, em 2010, o Brasil ocupou a segunda posição no número de missionários enviados.[7]

Traços de quenianos/africanos

Neste capítulo da trajetória missionária, cresce o número de missionários da Nigéria, do Quênia, de Gana e da África de modo geral que alcançam outros africanos e evangelizam até mesmo a Europa pós-cristã.[8] Temos visto essa eficaz operação na Aliança Evangélica para Treinamento/Comissão de Pregadores (EAPTC) através do envio de missionários quenianos chamados para alcançar seu próprio continente com menos obstáculos culturais a enfrentar. No raiar do século 21, quando inauguramos nossa Escola de Treinamento Missionário em Nairóbi, essa orientação ainda era rara. Parece, contudo, que o Senhor se alegrou de nossa obediência sincera e do espírito resiliente de nossos missionários quenianos e nos concedeu algumas bênçãos e frutos nos anos seguintes. Foi através dos esforços daqueles obreiros transculturais do Quênia que nosso trabalho se expandiu em dezenas de centros de treinamento bíblico e centenas de novas igrejas em diversas nações africanas.[9]

Implicações para a missão mundial contemporânea

No momento da missio Dei em que vivemos, é estratégico para o Corpo global de Cristo desenvolver obreiros transculturais que cultivarão sua própria singularidade cultural, utilizando-a para o cumprimento da Grande Comissão e mobilizando-a para levar o evangelho aos grupos de origens culturais semelhantes que permanecem não alcançados. Não devemos apenas replicar métodos normalizados pelas missões ocidentais do passado, mas encontrar e promover abordagens culturais próprias que sejam adequadas às missões de hoje. Precisamos estar abertos à natureza multifacetada das missões, que não se limita a uma narrativa unidimensional para alcançar o mundo impulsionada pela obra missionária tradicional. Considerando a expectativa de que o mundo pós-pandemia se tornará mais diversificado e complexo, é hora de lançar mão de metodologias multidirecionais.[10]

é estratégico para o Corpo global de Cristo desenvolver obreiros transculturais que cultivarão sua própria singularidade cultural, utilizando-a para o cumprimento da Grande Comissão e mobilizando-a para levar o evangelho aos grupos de origens culturais semelhantes que permanecem não alcançados.

Para reduzir a burocracia, é necessário selecionar bem os candidatos a missionários: eles não devem temer a análise saudável de suas próprias culturas, devem identificar contextualizações transculturais do evangelho e buscar voluntariamente culturas circundantes ainda não alcançadas. Os processos de triagem missionária e os treinamentos que precedem o envio também podem incluir uma jornada que ajude o candidato a descobrir de forma aprofundada seus pontos fortes culturais. Esses pontos fortes culturais podem ser ajustados em “trajes missionários” personalizados por meio de uma absorção contextual adequada, em lugar do equipamento missionário tradicional que talvez não seja confortável. Todos nós iremos em nome do Senhor dos Exércitos (1Sm 17.45), mas devemos levar as “pedras” que conhecemos, e não depender da “armadura de Saul”. A igreja de cada nação deve avançar com uma estratégia missionária que esteja inserida em sua cultura local e, ao mesmo tempo, adaptada de forma relevante à cultura do campo missionário.[11] É essencial conhecer os pontos fortes culturais do outro e usá-los como vantagens transculturais firmadas sobre o princípio da encarnação de Cristo.

Considerando as estatísticas de que as áreas do mundo ainda não alcançadas estão entrelaçadas aos países de “acesso criativo” (CAR), onde o sentimento antiocidental é latente e o evangelismo em massa dificilmente acontece,[12] essa estratégia pode ajudar a guiar missionários e líderes de missões pelas águas desconhecidas da redenção. Essa é a razão pela qual Deus está levantando mais missionários do Mundo Majoritário neste momento, pessoas que estejam familiarizadas com um mundo menos próspero e muitas vezes em desenvolvimento. Os missionários do Mundo Majoritário têm elementos culturais que podem ser mecanismos vantajosos se forem utilizados de forma adequada. Esses elementos são recursos concedidos por Deus que os cristãos de todo o mundo, como mordomos de Cristo, são chamados a cultivar.[13]

Notas finais

  1. Rose Dowsett, Cape Town Commitment: A Confession of Faith and a Call to Action (Peabody, MA: Hendrickson, 2012), 2.
  2. Paul Sungro Lee, Disciples of the Nations: Multiplying Disciples and Churches in Global Contexts (Eugene, OR: Wipf and Stock, 2021), 79.
  3. Para um estudo mais aprofundado sobre o início do movimento missionário moderno, veja William Carey, Enquiry into the Obligations of Christians to Use Means for the Conversion of the Heathens (Londres, 1792), citado em Catherine Hall, “Missionary Stories: Gender and Ethnicity in England in the 1830s and 1840s”, Cultural Studies, org. Lawrence Grossberg, Cary Nelson e Paula Treichler (Nova York: Routledge, 1992), 247.
  4. Hwa Yung, “The Shift of the Center of Gravity of the Church from the West to the Majority World”, Transformation 39, no. 2 (2022): 77.
  5. Para uma discussão mais abrangente sobre esses conceitos culturais coreanos, veja Boye Lafayette De Mente, The Korean Mind: Understanding Contemporary Korean Culture (Clarendon, VT: Tuttle Publishing, 2018).
  6. Jayson Georges, “As boas novas para as culturas de honra e vergonha: Desvendando um valor central da missão de Deus”, Análise Global de Lausanne (Março 2017), https://lausanne.org/pt-br/recursos-multimidia-pt-br/agl-pt-br/2017-03-pt-br/as-boas-novas-para-as-culturas-de-honra-e-vergonha.
  7. “Christianity in Its Global Context, 1970-2020: Society, Religion, and Mission”, Center for the Global Study of Christianity, junho/2013, https://www.gordonconwell.edu/wp-content/uploads/sites/13/2019/04/2ChristianityinitsGlobalContext.pdf.Nota da Editora: Veja também “Highlights of Christianity in its Global Context, 1970-2020” de Todd Johnson e Gina Bellofatto na edição de junho/2013 da Análise Global de Lausanne, https://lausanne.org/content/lga/2013-06/highlights-of-christianity-in-its-global-context-1970-2020 [em inglês].
  8. Afe Adogame, The African Christian Diaspora: New Currents and Emerging Trends in World Christianity (Londres, UK: Bloomsbury Academic, 2013), 181-182.
  9. Este currículo de treinamento missionário está disponível online em inglês, espanhol, francês e português para compra na Amazon.com, e também em amárico mediante solicitação pessoal ao autor por e-mail. Veja Paul Sungro Lee, Missionary Candidate Training: Raising Up Third World Missionaries (Merrifield, VA: Evangelical Alliance for Preacher Training/Commission, 2008), 4.
  10. Paul Sungro Lee, Doing Missions in Difficult Contexts: Omnidirectional Missions (Eugene, OR: Wipf and Stock Publishers, 2022), 11.
  11. David Hesselgrave e Ed Stetzer, org. MissionShift (Nashville, TN: B&H Publishing Group, 2010), 144-153.
  12. Para mais informações, veja Karl Muller, Theo Sundermeier, Stephen B. Bevans, e Richard H. Bliese, org. Dictionary of Mission: Theology, History, Perspectives. Vol. 24. (Eugene, OR: Wipf and Stock Publishers, 2006).
  13. Nota da Editora: Veja “Os estrangeiros ainda são necessários na era da missão nativa?”, de Kirst Rievan, na edição de julho/2021 da Análise Global de Lausanne, https://lausanne.org/pt-br/recursos-multimidia-pt-br/agl-pt-br/2021-07-pt-br/os-estrangeiros-ainda-sao-necessarios-na-era-da-missao-nativa.

Paul Sungro Lee é o diretor internacional da Aliança Evangélica para Treinamento/Comissão de Pregadores (EAPTC), um ministério que treina líderes cristãos e facilita a plantação de igrejas em todo o mundo. Tem doutorado pela Omega Graduate School (ACRSS) e é membro adjunto do corpo docente da Bakke Graduate School. Estudioso-praticante de missões mundiais, o Dr. Lee é autor de vários livros, entre eles Doing Missions in Difficult Contexts. É casado com Eunice e tem dois filhos adultos.