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Introdução

Os pastores são treinados para oferecer a cura espiritual, não física. As pandemias, no entanto, exigem que eles auxiliem no cuidado do espírito e do corpo. A um custo tanto individual quanto coletivo, as pandemias podem paralisar comunidades, sociedades e até mesmo nações. A palavra “pandemia” vem do grego pandemos, em que pan significa “todos” e demos, “população”. Ninguém está imune, pois o patógeno responsável afeta indivíduos e comunidades inteiras.[1]

A pandemia revelou a deficiência de nossas premissas materiais e naturalistas a respeito da realidade.

A escassez de recursos médicos em alguns países tem elevado de forma excessiva o número de pacientes que morrem em casa, algumas vezes totalmente sós. Ela expõe não apenas nossa fragilidade, mas também a vulnerabilidade dos pobres, evidenciando as disparidades socioeconômicas.

Como crentes, enfrentamos nossas limitações à medida que buscamos discernir os propósitos de Deus. A Bíblia nos relembra do senhorio soberano de Cristo sobre todas as coisas; seu universo é pessoal, não é controlado por uma sequência aleatória de reações químicas. Somos reconduzidos às verdades essenciais do amor pactual de Deus, embora sejamos tentados a pensar, como Eva, que ele não está preocupado com nossos interesses. Não temos a força nem os programas capazes de manipular Deus para que ele aja conforme a nossa vontade. A pandemia revelou a deficiência de nossas premissas materiais e naturalistas a respeito da realidade.

O que a COVID-19 está nos ensinando quanto à forma como devemos reagir durante esses tempos de confusão e turbulência? Neste breve artigo, vamos identificar as disparidades entre as regiões ricas e as regiões carentes de recursos em todo o mundo e explorar as singulares oportunidades do reino que essas disparidades apresentam à igreja global. Começamos, contudo, com um lamento, reconhecendo nossa dor e a de outros ao nosso redor, enquanto nos apegamos ao nosso Deus, que promete: “… se sobre o meu povo [eu] enviar uma praga, se o meu povo, que se chama pelo meu nome, se humilhar e orar, buscar a minha face e se afastar dos seus maus caminhos, dos céus o ouvirei, perdoarei o seu pecado e curarei a sua terra” (2Cr 7.13b-14, NVI).

Desigualdades e disparidades

A pandemia da COVID-19 expôs muitas disparidades implícitas na área da saúde e na condição socioeconômica das populações, tornando mais evidentes as lacunas existentes entre as regiões ricas e as carentes de recursos em todo o mundo e em cada país.[2] As desigualdades básicas do sistema de saúde, do acesso ao conhecimento e dos determinantes psicossociais da saúde influenciam as diferentes taxas de morbidade, mortalidade e sequelas de longo prazo provocadas pela COVID-19 em várias comunidades. Os cristãos são especialmente capacitados para suprir algumas dessas lacunas, pois oferecem uma resposta integral às múltiplas dimensões da sociedade.

Os cristãos estão descobrindo oportunidades criativas não apenas de oferecer apoio aos sobrecarregados profissionais de saúde.

Sistemas de saúde

Os diferentes sistemas de saúde enfrentam desafios sem precedentes no que diz respeito à ampliação massiva dos testes de SARS-CoV2, ao rastreamento de infectados, à distribuição de equipamentos de proteção individual, ao tratamento e acompanhamento de pacientes e à capacidade das instalações médicas. Esses desafios são maiores e mais evidentes em locais onde os sistemas de saúde são frágeis. Há um número insuficiente de profissionais da saúde para cuidar dos enfermos, bem como para prover um rastreamento adequado de pessoas infectadas. Em áreas carentes de recursos, isso resulta em um número excessivo de enfermidades e até de mortes não relacionadas à COVID-19. Os cristãos estão descobrindo oportunidades criativas não apenas de oferecer apoio aos sobrecarregados profissionais de saúde, mas também de reforçar a ação dos sistemas existentes através das iniciativas de prevenção junto à comunidade e de cuidado dos enfermos. Os profissionais cristãos da área de saúde do Equador, por exemplo, arrecadaram recursos para cuidar dos pacientes com COVID-19, inclusive em fase terminal.

Acesso ao conhecimento

As disparidades no acesso ao conhecimento tornaram-se mais evidentes durante a pandemia. O nível de acesso à informação confiável por parte de profissionais da saúde, pacientes e indivíduos da comunidade varia bastante, dependendo do serviço público de saúde e dos recursos de cada país. Médicos e pesquisadores em países de baixa renda não dispõem de acesso aos protocolos ou à divulgação de pesquisas. É possível que os pacientes também não consigam participar de recentes estudos e testes de medicamentos. Além disso, algumas áreas podem ter uma capacidade limitada para circular informações de forma eficiente e precisa durante a rápida evolução da pandemia, agravando as fissuras existentes tanto na literatura como nas opiniões e no ensino da área da saúde. Cria-se assim um ambiente propício para a disseminação de mitos e afirmações incorretas sobre a COVID-19, o que pode desgastar ainda mais o tecido social. Mensagens cientificamente corretas e biblicamente embasadas por parte da igreja são de vital importância.

Determinantes psicossociais

Por último, as disparidades entre os determinantes psicossociais da saúde, como habitação, renda, educação, estresse, racismo e preconceito, influenciam o impacto da COVID-19. As comunidades afetadas de forma desproporcional pela pobreza e pelos contextos de tipologias de habitação de alta densidade podem ser incapazes de praticar o distanciamento social. A escassez de tecnologia em áreas de recursos limitados pode privar indivíduos da capacidade de manter a conexão emocional com a família e com os membros da comunidade de fé, bem como a rotina de estudos e as tarefas vocacionais. Os profissionais que são impossibilitados de trabalhar em casa (home-office ou trabalho remoto), não tendo como evitar ambientes com aglomerações, podem experimentar não apenas um risco maior de infecção pelo SARS-CoV2, como também níveis mais elevados de estresse e ansiedade. O racismo e o preconceito podem ser mais acentuados durante a pandemia, agregando tensão à uma sociedade já sobrecarregada. O evangelho nos capacita a abordar essas questões tanto em palavra quanto em ação.

Oportunidades do reino

Ministério de presença

Segundo o sociólogo Rodney Stark, o crescimento explosivo do cristianismo foi contingente à permanência de cristãos nos centros urbanos durante as epidemias de 165 d.C. e 251 d.C. Ao ministrar aos vizinhos infectados que enfrentavam a morte, os cristãos demonstraram amor e caridade aos seus amigos não cristãos. Hoje, a pandemia de COVID-19 oferece uma oportunidade semelhante. Embora a crise pandêmica tenha, sem sombra de dúvida, causado a muitos o sofrimento de grandes perdas, 25% dos americanos, segundo a Pew Research, afirmam que COVID-19 fortaleceu sua fé religiosa.[3] As pandemias possibilitam que o evangelho penetre os corações dos desfavorecidos de uma forma que normalmente não acontece nas nações ricas. A boa nova do evangelho pode preencher o vazio que tem o exato tamanho de Deus e que é inerente a cada ser humano por ele criado, seja rico seja pobre.

Na ausência de sistemas de saúde robustos, os cristãos podem cuidar dos enfermos em seus próprios lares e comunidades.

Na ausência de sistemas de saúde robustos, os cristãos podem cuidar dos enfermos em seus próprios lares e comunidades. A grande maioria dos pacientes de COVID-19 apresentará sintomas leves; a doença evolui em apenas 19% dos infectados, que desenvolvem sua forma grave.[4] Durante a peste bubônica de 1527, Martinho Lutero e sua esposa Catarina abriram em sua casa uma ala para os infectados, enquanto pregavam Cristo aos pacientes terminais. Modelos de atendimento de saúde nos lares oferecem cuidado e apoio a pacientes enfermos. Quando as alas dos hospitais estão sobrecarregadas, as igrejas podem cuidar daqueles que estão enfermos, especialmente os marginalizados. A igreja e seus membros podem complementar as iniciativas assistenciais existentes oferecendo o cuidado domiciliar compassivo em segurança, especialmente aos marginalizados e pobres – refletindo a cura física e espiritual demonstrada por Cristo em Mateus 9.35.

Criatividade com recursos limitados

A medicina moderna oferece uma gama extraordinária de ferramentas de diagnóstico, tratamentos farmacológicos e medidas de saúde pública. No entanto, os custos crescentes dos avanços tecnológicos servem apenas para acentuar as disparidades entre os países de baixa renda e seus pares mais ricos. Em vez de emular uma série de cuidados e tratamento adotados pelas nações ricas, os países de baixa renda podem buscar soluções inovadoras contextualizadas à sua situação. A criatividade permite que os cristãos expressem seu amor pelo próximo de novas maneiras. G.K. Chesterton afirmou certa vez: “A trombeta da imaginação é como a trombeta da ressurreição. Chama os mortos para fora de seus túmulos”.[5] Associando o evangelho a ideias criativas, os cristãos cumprem a Grande Comissão bem como o mandamento bíblico de realizar boas obras.

Os equipamentos de proteção individual (EPI) produzidos localmente, os kits de teste de diagnóstico rápido desenvolvidos localmente e as cabines móveis de testagem atendem as necessidades ao mesmo tempo que estimulam a engenhosidade. “A inovação impulsiona o avanço humano”, afirmou a dra. Matshidiso Moeti, Diretora Regional da OMS. “Sabemos que nossa esperança de um amanhã melhor está na descoberta de soluções criativas, inovadoras e de vanguarda”.[6] As medidas de prevenção de baixo custo, como o uso de máscaras faciais produzidas localmente pelo público em geral em todos os ambientes, podem ter um efeito significativo no controle da transmissão da COVID-19.

Uma base centralizada de recursos a serem compartilhados entre países facilita a colaboração ao mesmo tempo que preserva os ativos. É possível que os kits de diagnóstico, os leitos hospitalares e os respiradores de baixo custo não apresentem a mesma precisão dos produtos de alto custo, mas podem salvar vidas. Além de doações de EPI, alimentos e itens de necessidade básica, a transferência de tecnologia por meio de acordos de licenciamento permite que os fabricantes de genéricos invistam nas medidas e nos tratamentos de saúde a preços acessíveis. Programas de rastreamento de infectados implementados com êxito podem ser modificados para adequar-se ao contexto local. Os cristãos podem causar um impacto profundo em todas essas áreas oferecendo uma liderança que teme a Deus e atua na orientação preventiva e no cuidado comunitário daqueles afetados pela pandemia.

Jesus chama cada um de nós, especialmente os que estão em países afluentes, para alimentar o faminto, vestir o pobre desamparado e cuidar dos enfermos.

Unidade na colaboração

Embora as inovações tecnológicas ajudem os países de baixa renda a lidar com a pandemia da COVID-19, ações de colaboração global ainda são essenciais.[7] Tempo, recursos e capital são itens que estão sempre em falta durante surtos agudos. Ao cuidar dos destituídos, o corpo de Cristo atende ao apelo de Paulo por unidade, encontrado em 1Coríntios 12.24-26. Em lugares onde a perícia, o conhecimento e os recursos são insuficientes, como a comunidade global dos seguidores de Cristo pode suprir a lacuna? Jesus chama cada um de nós, especialmente os que estão em países afluentes, para alimentar o faminto, vestir o pobre desamparado e cuidar dos enfermos.

Prestadores de serviço de saúde que atuam como voluntários – sejam eles locais ou de outras nações – podem trazer alívio a profissionais exaustos. Enquanto Nova York sofria como o epicentro da COVID-19, a ONG Samaritan’s Purse montou uma unidade de tratamento respiratório no Central Park juntamente com a rede de assistência médica Mount Sinai. A organização SIM (Serving in Mission) tem suprido parceiros globais da igreja tanto com recursos para a proteção pessoal de profissionais da saúde quanto com o treinamento de leigos para o atendimento domiciliar onde os recursos são limitados. Quando cada parte da igreja global exerce sua função, o todo trabalha em unidade, permitindo que o reino de Deus floresça.

Estamos convencidos de que o Senhor está agindo conforme seus propósitos e, como uma igreja global, devemos fazer tudo o que pudermos para ser sal e luz, estendendo a mão de Cristo para suprir as necessidades de nossas comunidades durante este tempo de crise.[8]

Notas

  1. Stephen Ko, ‘Our Calling in the Coronavirus Pandemic’, Today’s Christian Doctor, 2020, 51(2): 8-11.
  2. Phillip Schellekens and Diego Sourrouille, ‘The unreal dichotomy in COVID-19 mortality between high income and developing countries’, Future Development, Brookings (May, 2020), https://www.brookings.edu/blog/future-development/2020/05/05/the-unreal-dichotomy-in-covid-19-mortality-between-high-income-and-developing-countries/.
  3. Amy Mitchell, J. Baxter Oliphant, and Elisha Shearer, ‘About Seven-in-Ten U.S. Adults Say They Need to Take Breaks From COVID-19 News’, Pew Research Center (April 2020), https://www.journalism.org/2020/04/29/about-seven-in-ten-u-s-adults-say-they-need-to-take-breaks-from-covid-19-news/.
  4. Zhonghua Liu, Xing Bing, and Xue Za Zhi, ‘The epidemiological characteristics of an outbreak of 2019 novel coronavirus diseases (COVID-19) in China’, CMA, 2020, 41(2): 145-51, doi: 10.3760/cma.j.issn.0254-6450.2020.02.003.
  5. G.K. Chesterton, Delphi Complete Works of G.K. Chesterton (UK: Delphi Classics, 2012)
  6. World Health Organization, ‘WHO showcases leading African innovations in COVID-19 response’, (21 May 2020), https://www.afro.who.int/news/who-showcases-leading-african-innovations-covid-19-response.
  7. David Boan, ‘Forming Church, Community, and Health Facility Partnerships’, World Evangelical Alliance (June 2020), https://covid19.worldea.org/wp-content/uploads/2020/06/Church_Community_Health_Facility_Partnerships_final.pdf.
  8. Nota da Editora: Veja o artigo de Carol Kingston-Smith, intitulado “Sedentos por boas novas em tempos de pandemia”, em Análise Global de Lausanne, exemplar de setembro/2020 https://lausanne.org/pt-br/recursos-multimidia-pt-br/agl-pt-br/2020-09-pt-br/sedentos-por-boas-novas-em-tempos-de-pandemia

Stephen Ko é médico, com mestrado em Saúde Pública e Teologia. Atua como pastor titular da New York Chinese Alliance Church e como professor adjunto no Alliance Theological Seminary.

Paul Hudson é médico, tem mestrado em Saúde Pública e é membro da ACP (American College of Physicians). Também atua como porta-voz do Ministério da Saúde para a SIM (Serving in Mission).

Jennifer Jao é médica e tem mestrado em Saúde Pública. Também é professora adjunta de doenças infecciosas na Faculdade de Medicina da Northwestern University.